Ilessi e o canto da Dama de Espadas (2020), a cantora carioca arrebata com muitas influências em em seu 4º disco
Falar desta obra intitulada Dama de Espadas é algo de suma importância pois palavras nos faltaram ao ouvir o disco. A voz de Ilessi nos torna reféns de sua música e calados diante de tamanho talento em seu quarto disco.
Ilessi imprime um novo timbre à voz em nossa contemporaneidade em meio a tantos hits efêmeros que nos bombardeiam diariamente nas plataformas musicais.
O disco Dama de Espadas além de ter uma atmosfera sonora bem captada da banda tocando ao vivo, aborda uma exploração do canto, novos caminhos da improvisação na voz de Ilessi.
Segundo a própria Ilessi, o título Dama de Espadas remete à uma carta do tarô que é a Rainha de Espadas, do naipe de ar, no qual representa uma imagem de ideal, de ética e de justiça.
É o contraponto da imagem da rainha de espadas com o rei de paus, a mulher que tem o comando e que briga de espadas com o rei de paus. Um legítimo empoderamento feminino que ergue sua voz e não se deixa calar.
Um trabalho repleto de referências nas quais podem-se notar claramente a estética sonora presente nos discos de Gilberto Gil que podemos citar Expresso 2222, Revavela, Refazenda, também Gal Costa os discos Legal e Fatal, e claro, Elis Regina em Tranversal do Tempo.
E por falar em Gilberto Gil, antes do lançamento do disco, uma prévia do trabalho saiu com o single Oração pro Gil cuja canção carrega uma sonoridade africana nas silabações tais quais Gil nos apresentou em rítmicas cheias de balanço. Harmonicamente possui escalas alteradas, arabescas, notáveis no “entortar” das melodias que se referem em determinado momento à canção “Ê, povo ê” do disco Refazenda. E trazendo o ar espiritual o ijexá dos Filhos de Gandhy conduz o ritmo em uma verdadeira prece sem palavras, apenas como se fossem os “Ilás” dos orixás em um terreiro de candomblé.
Em “Mar de Te Amar”, a poesia presente na letra encontra uma belíssima harmonia que navega no mar de Dorival Caymmi e Johnny Alf. É notável a presença constante da influência de Elis Regina em voz e na dinâmica dos instrumentos. Um ponto importante para que este trabalho tenha alcançado uma sonoridade genuína foi o cuidado que a produção envolvida na gravação teve para captar a cor do som de forma fiel a cada faixa.
O Oganpazan esteve presente na pré estréia do disco numa reunião do Zoom e pudemos estar a par de conhecer de perto mesmo que virtualmente a raiz de onde surge o canto de Ilessi. Raiz que envolve a família musical e a arte da composição trazida por seu pai Gonzaga da Silva que aparece na faixa “Vagalume”, uma excelência em lirismo acompanhado por uma riqueza melodiosa.
Aliás uma característica deste primeiro trabalho de composições da Ilessi é marcada pela personalidade e necessidade de começar a conseguir falar de uma forma que não foi falada. Fugir do óbvio e tecer novas possibilidades com seu canto, pois assim como o canto, a composição é necessária para revelar o que está por trás das portas da imaginação.
Por mais que hajam semelhanças com discos da década de 70, são apenas referências que traz em sua bagagem e que não tiram a originalidade e a autenticidade da construção de uma obra bem pensada e que atravessa um tempo que corre, porém nos mantém imóveis ao ouvir este fabuloso trabalho feito de forma coletiva e aberta.
Pois bem, rompendo a barreira do momento de contemplação é na faixa “Vivo ou Morto” que ocorre uma quebra no disco, sai do lugar que tem o existencialismo, nos fazendo pensar qual o sentido da loucura que é a vida. A música de Thiago de Mello e letra de Edu Kneip fazem o samba e o hardcore darem as mãos numa roda de pogo existencial.
A faixa “Lírico” encontra inspiração no disco Missa Breve de Edu Lobo, principalmente na faixa Porto do Sol em que Ilessi buscou a luz para irradiar o esplendor em cada nota ecoada de sua garganta.
Sendo a mulher negra que é, a “Ladra do lugar de fala”, composta por Thiago Amud, dá o papo reto enaltecendo sua negritude envolvida em ngomas que tocam o ritmo Congo oriundo dos terreiros de Candomblé de Nação Angola e que se desenvolve hoje no chamado tamborzão carioca. Uma identidade que está completamente enraizada em nossa história que muitos tentam minimizar e tirar a importância desta ancestralidade. A voz negra e feminina de Ilessi é ativa e altiva e exalta a flor da nova abolição da manhã brasileira com muita força e axé.
O texto presente na penúltima faixa é oriundo e homônimo do documentário “Eu Não Sou Seu Negro”. Nos dá um tapa na cara e reflete sobre todos os anos de escravidão institucionalizada até 1888 e a escravidão social que sofremos até hoje. Nos faz recordar da canção de Dona Ivone Lara, Sorriso Negro que diz …negra é a raiz da liberdade… Que no caso é algo utópico, pois não há essa conotação de que estamos livres e sim que somos exemplo de luta por liberdade, igualdade, justiça. Ninguém irá apagar as manchas de sangue no chão, arrancadas de cada negro violentado e tratado como moeda de troca no período colonial e na pós colônia em que vivemos.
A tríade de canções que encerra o disco é uma espécie de suíte negra que nos mostra principalmente o orgulho de ser negro, a riqueza e beleza ancestral que resiste no coração de quem sofre ainda sobre as estruturas do racismo e hipocrisia em que estamos mergulhados. A voz de Ilessi ecoa acima desses preconceitos, traz o raio de Iansã em seu grito que sai da alma, onde o Ilê que inicia seu nome é sim casa de luz, força, negritude, resistência e que há de chegar aos ouvidos e corações com a magia dos ancestrais, com a beleza da melanina que envolve sua pele e espírito. Esta voz que ninguém cala pois ela é viva no mundo e cruzou o tempo, uma transversal do tempo.
Esta voz se chama Ilessi, apenas, Ilessi.
-Ilessi e o canto da Dama de Espadas (2020)
Por Raphael Garcez