Hot e Oreia dão aula de como utilizar o humor no Rap. O Hip Hop deve ensinar a rir da estupidez e da ignorância, não das minorias e dos oprimidos.
“Nada descreve melhor o caráter dos homens do que aquilo que eles acham ridículo.” Goethe
A música lançada por Hot e Oreia na última segunda feira é a melhor facada que se poderia dar no nosso atual presidente Jair Bolsonaro, afinal é “rindo que se diz o severo”. E não seria essa a graça maior do humor, fazer alguém rir da estupidez do outro, fazer a plateia pensar com todo o corpo contra a opressão, reduzindo toda maldade ao ridículo?
A arte pensa com sensações e afetos, e ao sermos “contaminados” por ela passamos um parte de nossa existência pensando dessa forma. Vamos sendo aos poucos despertados do absurdo de certas questões se nos deixarmos nos envolver sob a perspectiva da arte. No Brasil dos últimos tempos, um humor cruel e sem graça de figuras como o ignóbil Danilo Gentilli, tomou conta e fez o papel de formador de um massa tão estúpida quanto.
O humor dessas pessoas tenta se vender como pura arte, como crítica inocente, liberdade de expressão e essas baboseiras que pessoas que não leram e não gostaram de Paulo Freire tentam utilizar como justificativa para agredir os que já são historicamente humilhados e ofendidos.
Como arte, o humor possui sim uma dimensão política – e o que não possui? – e artistas como George Carlin utilizam essa dimensão para discutir temas importantíssimos como aborto, por exemplo. A cultura negra americana possui uma larga tradição humorística com nomes como Richard Pryor, inclusive com apresentações clássicas lançadas em disco. Nomes atuais e grandiosos como David Chapelle e Chris Rock são experts em utilizar o humor como uma arma potente contra o racismo estrutural americano. A série Todo Mundo Odeia o Chris é já um clássico mundial. Felizmente aqui no Brasil, surgiram nomes e propostas como Porta dos Fundos, que entendem que os objetos de piadas precisam ser os opressores.
Os manos Hot e Oreia são parte integrante da DV Tribo, composta também por nomes como Clara Lima, Djonga e FBC. Um coletivo/grupo que surgiu e abalou a cena, colocando um a um dos seus componentes no hype do rap. Colocação que tem sido feita no esquema escada, cada um que chega puxa o outro e se ajudam mutuamente, o que demonstra facilmente o nível de consciência que essa galera partilha e o quanto esse caminho é salutar!
Hot e Oreia formaram uma dupla com a parada dos trabalhos coletivos da DV e o inicio dos trabalhos individuais dos seus membros. Os caras vem apostando em singles, geralmente com videoclipes e sempre numa estética que combina humor e política de modo maravilhoso e ao mesmo tempo inovador. Imprimindo assim um estilo único dentro do atual cenário do rap nacional, e se aproximando de artistas como Febem, nILL e ManoWill.
Num texto brilhante da Eliane Brum, Cem dias sob o dominio dos perversos, publicado no El País, a jornalista diagnostica as ações bárbaras do atual desgoverno e enumera algumas táticas que nós precisamos colocar em prática para resistir. Ela diz sobre o papel da arte e a necessidade de construirmos um “comum”:
“A arte é também um instrumento poderoso. Não foi por outro motivo que ela foi tachada de ‘pornográfica’ e ‘pedófila‘ pelas milícias da internet nos últimos anos. Não é por outro motivo que o bolsonarismo investe contra a lei Rouanet e desmonta os mecanismos culturais. A arte não é firula. Ela tira as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela junta os diferentes.”
Em seu último clipe Eu Vou (2019), com a direção de Belle Melo e Vito Soares, Hot e Oreia vão buscar inspiração num clássico do teatro brasileiro que se tornou um enorme sucesso quando transformado em mini-série e posteriormente em filme: O Auto da Compadecida. A obra de Ariano Suassuna, originalmente lançada em 1955, foi adaptada por Guel Arraes em 20oo e vem há duas décadas atravessando gerações. Prova disso é exatamente o clipe dos mineiros, que utilizam de elementos do filme para desferir uma crítica mordaz ao atual desgoverno, com um roteiro construído coletivamente por Hot e Oreia, Djonga e pelos diretores.
Eliane Brum elege o riso como uma das armas através das quais podemos e devemos enfrentar o atual estado de coisas: “Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por desaforo. E amar livremente.”
É fácil ver como essa postura indicada pela jornalista, vai totalmente de encontro ao que Hot e Oreia vem desenvolvendo em seus trabalhos. E como os caras vem quebrando com bastante qualidade a histórica sisudez do rap. Sim, grupos do underground como o Quinto Andar, já utilizaram o humor como elemento forte em suas músicas, mas ainda hoje é algo marginal dentro de uma cultura enorme como o hip hop.
O clipe utiliza o episódio da facada desferida no candidato (que não precisou defender por conta disso suas propostas em debates), e o resultado estamos sentido dia a dia na pele. A facada simulada no clipe, como fizeram João Grilo e Chicó, encontra em Hot e Oreia o seu duplo, para mostrar as violências que o fascismo tem imposto às minorias e a arte de modo geral.
O Brasil que nos últimos anos se transformou num palco de uma estrategia já conhecida como Guerra Cultural, invenção norteamericana que por lá angariou milhões de evangélicos de direita nos anos 80 para a eleição de Ronald Reagan. Partindo para a construção de uma visão de mundo baseada em “mitos” que buscam unir a sociedade sob um signo moral rígido, a guerra cultural é uma técnica de gerenciamento das percepções que foi utilizada pelos neoconservadores americanos: Irving Kristol, Paul Wolfowitz, Richard Pipes, Donald Rumsfeld, entre outros. Eles que foram alunos do filósofo Leo Strauss, que via no liberalismo um perigo para a democracia por conta de seu relativismo moral. Percebem as semelhanças?
Pois bem, a história aqui se repete como farsa e no lugar de um filósofo temos um astrólogo, no lugar de historiadores como Richard Pipes temos Carluxo como articulista. Eu Vou, mostra como a bolsa de merda que vazou fede mais do que poderíamos imaginar. Racismo, homofobia, machismo e todos esses ismos que estruturam nossa sociedade, inundam hoje o país como um rompimento da barragem de merda (assim como Brumadinho e Mariana) com apoio federal.
O humor cáustico que Hot e Oreia nos trazem nesse clipe serve de alerta, e é bastante salutar pois é leve e nos leva a rir juntos. Como vaticinou Eliane Brum, precisamos rir também do nosso atual governo e de suas medidas e aparições ridículas. Obrigado Hot e Oreia, e obrigado Djonga, é rindo que se diz o severo!
– Hot e Oreia: O Humor no Rap – Quando o Hip Hop Ensina
Por Danilo Cruz