Hamilton de Holanda conversa com Guilherme Espir sobre o diálogo com os mestres da música brasileira como método de composição e criação.
As raízes da cultura popular se ramificam em diversos braços que se revelam berços de inestimável riqueza histórica. A música brasileira sempre se renova, revisitando seu passado – mas sem esquecer do presente – para delinear o futuro do som.
Em décadas de cultura popular, muitos mestre surgiram e se foram. O que fica é a obra do artista, mas também os caminhos que ele ousou percorrer, valorizando a arte do encontro.
É isso que Hamilton de Holanda faz como poucos. Ele revisita, cria, colabora e ajuda a relembrar a força da nossa própria história. Aos 44 anos de idade, o músico – que só de bandolim tem quase 40 anos (!) – continua inabalável em sua odisseia criativa para exaltar a cultura de um país sem memória.
Nesse sentido a prolífica produção do carioca segue em 2020 – com ou sem pandemia – dessa vez com 2 registros da série “Canto de Praya” (lançados pela DeckDisc), onde o ás do bandolim promove grandes encontros.
Em junho saiu o volume 1 com um show em duo ao lado do João Bosco (no estúdio Da Pá Virada). Já no mês seguinte, em julho, o convidado foi o Mestrinho (em novo show intimista, gravado na Casa da Glória).
Apesar das diferentes abordagens, esse projeto consegue cumprir a difícil tarefa de sintetizar o quase poético equilíbrio que esse cidadão tem na hora de valorizar não só o moderno, mas também o que é tradição, sem jamais se esquecer da música de agora.
O Oganpazan conversou com o músico pra falar um pouco mais sobre esses 2 trabalhos, além de abordar outros tópicos sobre a longeva carreira do artista e sua incessante busca por novos sons.
1) Tem um lance num músico que eu admiro que é a capacidade de extrair som. Por exemplo, o Heraldo do Monte começou no clarinete e foi para o violão pra conseguir mais opções – sair do arpejo e ouvir os acordes simultâneos. O bandolim “tradicional” tem 8 cordas e você ajudou a popularizar as 10 cordas. Pensando nisso, como você analisa essa busca natural do músico por expansão, esse anseio por novas sonoridades – no seu caso o estudo da harmonia e polifonia – pensando no estudo como uma forma de conseguir sempre mais do seu instrumento.
O ser humano é exposto à diversos estímulos ao longo do tempo, ao longo da vida. Se você pegar uma canetinha, por exemplo e começar a pintar, a nossa mente pega esse estímulo visual e começa a misturar tudo aquilo pra criar o que a gente imagina.
A imaginação é a mágica que acontece dessa mistura de coisas que a gente é exposto e com som é a mesma coisa.
Eu ouvi muito choro desde pequeno. Meus pais são pernambucanos e desde cedo ouvi muita música brasileira, claro, música nordestina também, mas ao mesmo tempo ouvi muitos sons da natureza, sabe? Sons da rua, barulho de gente falando, os animais… Os sons estão na minha cabeça e no meu coração o tempo todo e o instrumento, como o próprio nome diz, é um instrumento pra gente chegar no som, ele não é o próprio som.
Então essa busca é constante e o bandolim de 10 cordas me deu a possibilidade de encontrar mais sons, esse que é o grande lance. Ele me deixa encontrar os sons que eu imagino, que eu sonho, ouço e que as vezes eu nem percebi que ouvi. Quando vou tocar falo: pô, mas de onde saiu esse som? E ai eu percebo que foi de alguma gravação ou um passarinho que ouvi cantar na minha janela, sacô?!
Dessa forma a música se funde com a realidade do que a gente vive, então eu vivo isso diariamente.
Você diria que o desafio é se manter orgânico?
O desafio é conseguir encontrar o equilíbrio pessoal. O equilíbrio entre o que é intuição e o que é conhecimento, ou seja, eu tenho que aprender pra caramba, mas eu não posso deixar de seguir a minha intuição. É importante achar esse equilíbrio entre cabeça e coração.
Até por que nós não somos nem só cabeça, nem só coração e inteligência, somos as duas coisas. No final das contas é a emoção humana, mas se a gente tem tempo dedicado à pesquisa e estudo, na hora de tocar, na hora do vamo vê, a emoção que vai prevalecer.
O lado do estudo complementa a questão criativa.
Sim, exatamente, ele alimenta a criatividade.
2) Hamilton, você já tocou em diversos formatos, desde duo até orquestra. Portanto, como você enxerga a questão da configuração influenciando a sua música, pensando na experiência que você adquire vivendo situações diversas musicalmente falando.
Atrás de cada instrumento tem um coração. O que eu quero dizer com isso? Isso significa que cada formação vai ganhar a sua característica de acordo com o coração das pessoas que estão ali em volta e isso me encanta. Essa questão de poder misturar os meus sentimentos com o de outras pessoas e encontrar uma outra música.
Por que a gente imagina a música, senta pra compor e quando o negócio dá certo, fica melhor do que o que a gente imaginou e isso só acontece por que cada pessoa coloca a sua emoção ali. E com a experiência que eu tenha dessa minha vida toda dedicada à música, eu vejo que que quanto mais gente eu conhecer, mais bonito a minha música vai ficar.
3) Com a série “Canto de Praya” são 2 discos. Assim, no primeiro volume você harmoniza com o violão do João Bosco e no segundo com a sanfona do Mestrinho, mas apesar do formato, não quer dizer que a dinâmica seja a mesma. Dessa forma, como foi passear por um vasto repertório de releituras ao lado do Mestrinho e relembrar uma fase de ouro da nossa MPB ao lado do João Bosco?
Foi bem diferente. Eu e o João Bosco já tocamos juntos tem um tempo. Ele é um compositor que tem um lastro muito grande, com um repertório que muita gente conhece e sabe cantar. A gente entrou no estúdio e registrou uma síntese de tudo que já fizemos juntos até aquele momento, então teve uma carga emocional muito forte, por que eterniza a emoção de vários anos.
Foi uma hora de gravação, mas a carga emocional era de várias apresentações.
E os vídeos ficaram muito bonitos, nos 2 trabalhos. Um tom bem intimista.
Sim, o vídeo é lindo por que você vê a reação das pessoas e dá pra notar como elas se emocionam com a gente ali na hora. Foi uma troca muito especial.
Já com o Mestrinho foi o oposto. Nós nunca fizemos um show juntos e essa foi a primeira vez.
Quem escutar o disco nunca vai imaginar isso (rs)
Sim, mas foi a primeira vez! Nós sentamos e definimos um repertório de músicas que a gente gostasse, músicas que fossem comum a nós 2 e aproveitamos pra explorar esse norte da música popular. O Mestrinho tem essa veia nordestina-forrozeira né, pra mim ele é o sucessor imediato do Dominguinhos.
O Mestrinho é incrível e foi uma emoção diferente por que a gente ia se surpreendendo com as coisas que estavam acontecendo. Foi super emocionante também, mas foi uma sensação diferente, de surpresa mesmo, por ver como as coisas funcionaram tão bem.
4) Pensando na música como um diálogo – que ela é – quais são os desafios musicais que você já encontrou pra conseguir estabelecer esse diálogo, sempre com uma interação que busque a troca entre os instrumentos?
O maior desafio é conseguir mostrar a minha música, aprendendo elementos da música do meu parceiro – eu sem passar por cima dele e ele sem passar por cima de mim – ou seja, a música que vai passar por cima da gente! (risos).
Nesse sentido, o importante é que o resultado seja musical.
Sem que seja algo imposto.
Exato, as vezes você vê um tipo de trabalho que existe uma imposição. Quando eu vou tocar – principalmente em duo – onde as coisas ficam mais expostas, acho que esse é o grande desafio, conseguir dialogar, escutar o que o outro está tocando e colocar a minha voz naquele contexto, mas de uma maneira complementar. Acho que esse é o desafio.
5) Você vem da escola do choro, como você observa essas conexões musicais – que acho que é o grande lance da música – a mistura – no seu caso, do Samba, com Bossa, Frevo e que chegou até o Jazz?
A gente nasceu num país miscigenado, então essa característica vai estar sempre presente na minha música. O próprio choro já é a mistura da música africana com a música europeia. A pureza que o ser humano busca – de querer encontrar uma coisa única – na verdade ela só existe por que é uma mistura de uma porção de coisas.
Por isso, quando a síntese dessas coisas apresenta uma novidade, alguém aparece e já mistura essa novidade com outra coisa. Eu tenho esse espírito também, mas não é misturar por misturar.
Claro, você encontra afinidades, promove conexões.
Exatamente, é pela necessidade das conexões. Não é só chegar e misturar. Em geral, é pra encontrar uma conexão e buscar uma novidade. Eu tenho um lema que eu coloco na capa de todos os meus discos. “Moderno é tradição”. Por que o moderno, se a gente fizer hoje, daqui há uma semana já vai aparecer alguma coisa mais moderna. A tradição já foi feita e é maravilhosa, então o que é importante?
Dessa forma o importante é o hoje, o agora, o encontro entre o moderno e a tradição. À partir disso eu posso misturar o Jazz, por exemplo, com o choro. Pra mim o Jazz é primo do choro, a origem deles como movimento é bastante parecida e tem essa veia do instrumental, da improvisação e, além disso, eu me consagrei no mundo por contas dos festivais de Jazz.
A minha música é muito bem vinda nos festivais de Jazz, então sempre vai ter um pouco de Jazz sempre, em alguns momentos mais, em outros menos.
E você também está sempre colaborando com a galera do Jazz, com certeza isso também acaba influenciando.
Claro, por que o Jazz é a música instrumental do mundo. Como resultado, a improvisação se universalizou e ultrapassou a barreira do país pra virar uma linguagem universal, por isso que eu sempre tento fazer um cruzamento – e ao mesmo tempo um paralelo – do choro com o Jazz, por que essa junção é muito rica.
Como você vê a composição e a improvisação se cruzando nesse cenário?
Eu tenho me desenvolvido cada vez mais nesse assunto. Criei um método chamado: “Princípios da improvisação na música brasileira” e tenho, desse modo, dedicado cada vez mais tempo pra explicar as coisas que eu consigo fazer.
Estou fazendo isso por que as vezes acaba saindo alguma coisa por intuição ou até por experiência e na hora de explicar pra outra pessoa é necessário encontrar as palavras corretas. A improvisação e a composição são as principais atividades criativas na música, vamos dizer assim, mas existe uma diferença básica entras duas que é o tempo.
A composição você pode parar. Vai lá, faz uma frase e depois volta, toma um café e depois para. Já a improvisação, ela não dá tempo pra você pensar. Pra improvisação a gente precisa se preparar aprendendo muitas músicas, tomando conhecimento da harmonia, praticando escalas, os arpejos e tudo isso ajuda na composição também.
Mas na composição existe a questão da forma, de encontrar um bom balanço entre as frases, as contradições, contrastes entre as partes da música, a questão estilística que também é muito importante – tanto na improvisação – quanto na composição.
Isso quer dizer que um compositor nem sempre vai ser um improvisador e vice versa, mas é mais fácil pra um improvisador ser compositor, porque a cabeça pensa mais rápido. Só que ao mesmo tempo eu conheço muita gente que improvisa bem e não gosta tanto das composições, prefere improvisar.
A liberdade é relativa nesse contexto.
Exato, acaba sendo relativo por que nem sempre quem pensa rápido consegue pensar numa estrutura maior, uma música com 3 partes, por exemplo. As vezes o cara tem capacidade e facilidade de pensar a troca dos acordes e escalas rapidamente, mas não consegue fazer essa trabalho de amadurecer uma composição.
Eu particularmente gosto das duas coisas e pratico ambos diariamente. E aí, o que acontece: quando estou improvisando, quero compor uma música nova naquele momento, sacô?! E quando eu estou compondo, eu estou compondo.
Só que esse ano, estou compondo uma música nova desde janeiro.
Então, eu vi no Instagram, ia perguntar sobre isso junto com o processo criativo.
Parece que a pandemia me ajudou nesse sentido de ficar mais em casa, mas pelo contrário, piorou, por que quando a gente vive, a gente viaja, abraça as pessoas, enfim, você vê novidade toda hora.
A cabeça fica arejada né, você está vivendo.
Exato, você está vivendo! O maior alimento é viver, as escalas são importantes, mas viver faz toda a diferença. Eu tô comendo dobrado, mas ao mesmo tempo também estou ouvindo mais música, descobrindo mais acordes e escalas… Agora tenho um tempo musical mais produtivo.
No primeiro momento do ano eu escrevia e gravava. Num segundo momento eu comecei a escrever no Finale e passar para o Logic Pro. Comecei a achar sons eletrônicos, misturando o bandolim com levadas e agora entrei numa fase de me arriscar a compor uma música imediata.
Eu já tinha feito isso num passado recente, inclusive no meu disco “Íntimo”(2007), uma das faixas eu fiz assim. Apertei o REC na hora e não teve outra versão. Agora eu estou aproveitando – já que estou com tempo – e nessa última leva de 15/20 músicas que fiz esse mês, todas surgiram assim. Eu apertei o REC, peguei o bandolim, o violão, violão tenor também e as vezes até com a voz mesmo e gravei. Tá pronto a música.
É uma maneira de compor. Vai além da troca rápida de acordes e pensamentos.
Sim você quer ver como você se comporta nesse cenário.
Exato, eu quero ver como eu me comporto e qual é o resultado disso, e olha, tá saindo cada coisa legal.
No fundo acho que esse era um desejo que eu tinha, de fazer um show inteiro compondo na hora, tipo o “Köln Concert” (1975) do Keith Jarrett, sabe? Não é uma coisa de hoje, muitas pessoas já fizeram isso, mas é um barato.
Eu gosto de descobrir sons. É uma busca constante. Qual é o som do momento? Qual é o som de hoje?
6) Tem uma questão muito forte no seu trabalho, Hamilton, que é a coisa da memória. Porque o Brasil é um país de memória muito curta e o seu trabalho resgata muita coisa, como a série do Jacob do Bandolim que você fez em comemoração aos 100 anos dele. Dessa forma, como você conduz esse trabalho de estudo que no fim das contas acaba funcionando como um resgate histórico muito bonito e importante pra preservação do legado de grandes artistas da nossa música?
Eu faço as duas coisas ao mesmo tempo, vou registrando a minha obra, mas ao mesmo tempo exalto a história do meu país. Na verdade, o ser humano só é inteligente por que ele tem memória. O discernimento e a capacidade de raciocínio só existe por que temos memória.
Um país, pra se transformar numa grande nação, ele precisa cuidar da sua memória. Por que eu existo como músico? Por que o Jacob fez o que ele fez, o Jobim e tantos outros, entende? É natural aprender com quem vem antes.
Até porque, como você disse, vai virar tradição.
É, e eu não faço música pensando num legado, claro que eu sei que é uma contribuição, mas penso mais como uma continuação. É necessário continuar aprendendo, da mesma maneira que um dia aprendi com meus professores e como os meus alunos aprendem comigo. Isso é uma maneira da gente se manter inteligente.
7) E sobre afinação, o fato de você ter passado pelo bandolim de 8 até chegar em 10 cordas fez você repensar essa questão?
O bandolim de 10 tem uma corda grave a mais. Um dó a mais. Ele tem a afinação do bandolim, somado a esse dó mais grave, que seria a mistura do violino com a viola.
Eu já fiz experiências mudando a afinação. Afinando a corda dó em si, aí tem uma afinação que eu faço as vezes, mudando a sol e a ré, mas não é uma coisa que eu tenho uma obsessão. Eu gosto da afinação normal e 95% das coisas que eu faço é com essa afinação. Uma coisinha ou outra que eu ache que deva soar diferente, ai eu mudo a afinação.
8) Pra fechar, queria saber um pouco do seu processo criativo. Assim, gostaria de entender um pouco como você concilia o estudo e está sempre compondo e gravando dessa maneira tão intensa e prolífica.
O processo criativo está acontecendo agora. Eu estou conversando com você na minha varanda e aqui tem umas hortaliças, o vento está batendo e isso aqui já é uma canção. A antena está ligada o dia todo, pode ser até uma buzina, mas já é o start pra mais uma música.
Quanto mais a gente viver, mais ideias vão aparecer e outra coisa, se faltar ideia, vai buscar nos mestres. As vezes eu faço isso, visito os mestres, pego um pedaço de uma harmonia e desenvolvo a minha ideia, sabe? O processo criativo funciona também mudando os instrumentos.
Quando eu penso no bandolim vem de um jeito. Se eu sentar com o o violão ou ao piano – que é um instrumento que eu toco menos – aparece de uma forma também.
Pensar com a cabeça de quem ouve outros instrumentos é muito importante.
Exatamente, por que o instrumento, ao mesmo tempo que ele leva às alturas, ele também prende. A música não é apenas o instrumento. Eu gosto muito de fazer isso, começar uma composição com instrumentos diferentes – as vezes cantando – por que a melodia cantada tem uma energia muito forte… As vezes uma frase muito difícil, mas que tenha musicalidade, também é muito forte, então eu estou sempre alerta com o processo criativo.
Na sala tem instrumento no sofá, no quarto dos meus filhos, no meu quarto tem um bandolim também, então não falta inspiração e, se faltar, eu vou lá ouvir os mestres pra conseguir inspiração e voltar a criar novamente.
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