Gustavo Pontual lança Annette (2020) e é 100% amor nessa guerra. Um disco classudo, suave, navegando em cima dos beats com a força da leveza
Existem experiências distintas ao se ouvir um disco, porém em 10/10 das vezes gosto de escutar sem saber o que o autor queria, quais eram as influências dele, ou seja, sem um pressuposto pseudo teórico que guie a audição. Com o primeiro disco do Gustavo Pontual essa experiência foi completa, graças ao parceiro Gaijin, que no primeiro dia do ano me deu um verdadeiro desejo de feliz ano novo, ao mandar o link do disco no whatsapp. Indicações como essa vindo de quem veio, fazem com que tenhamos que lutar para que estejamos à altura do recebido.
Tínhamos um solo mínimo para esse recebimento que era o fato de sabermos que o Inquilinus é um dos grupos mais importantes do rap nordestino. Já tem um tempinho que não escutamos, mas sabemos a nossa história, por mais que queiram que não saibamos. Porém, falando a verdade não acompanhamos a carreira solo do Pontual, não tínhamos ouvido um single solo se quer do cabra. E eis que recebemos Annette (2020) nos peito, um disco que foi feito pela nata da música pernambucana, e onde o Gustavo Pontual dá um passo sólido pra mostrar não apenas suas rimas de alta qualidade técnica, mas mostra sua visão da arte e uma concepção musical totalmente pensada e produzida em Hellcife.
O artista pernambucano curte o anonimato mas sabe que precisa tranformar os problemas em poesia, seja no boombapão, seja nos flertes descarados com o brega, com o rock alternativo e até num trapzinho safado… Seu bacamarte musical e poética soa como um estalinho amoroso, mas provoca o mesmo estranho da potente arma nordestina. Mudam-se as tendênias mas a missão permanece a mesma, impulsionar o amor através do seu flow maloqueiro, curado nas ruas do Recife, mantendo sua identidade e aumentando o espectro de experimentação de sua arte.
Quando dizemos ali em cima que Annette (2020) primeiro disco solo do MC é 100% amor nessa guerra, é por percebermos claramente esse ímpeto no disco. Em tempos de topo, de ficar rico ou morrer tentando, de mega exposição e levantamento de falsos problemas, tretas montadas nos bastidores para chegar no hype, o MC aqui em questão chega pleno… E vai buscar inspiração no genial e pouco conhecido disco da cantora Annette Peacock, o mega experimental e delicioso I’m The One (1972), que por sua vez utilizou diversas linguagens para compor o seu disco.
A Annette (2020) transmite-nos uma plenitude que o disco transmite nas batidas, rimas, flow, na seleção das faixas e como essas se encadeiam ao longo do disco, nas participações, na auto afirmação do lugar de partida e de desenvolvimento inicial de sua arte. A faixa de abertura do trabalho é exatamente uma demarcação e ao mesmo tempo uma declaração de amor a sua cidade. “Visse” (prod. Sativo Beats) traça sobre as batidas do boombap um panorama sobre sua caminhada e lugar. “Acontece” é elegância pura, em cima de uma construção orgânico/eletrônica com teclados groovando na classe, criando aquele clima propício para declarações de amor. A faixa conta também com o excelente refrão da Ana Talita, que emprestou sua linda voz em algumas faixas..
O álbum de estréia desse veterano de modo geral é uma aula de elegância, “Vai Porque Quer” (prod. Sativo Beats) declara-se sobre uma base trap com uma ambiência atmosférica muito bem construída, eletrônica e seduzente, com doses de melancolia. E é aí que o MC desfila suas linhas sobre perda/saudade daquele amor/paixão que nos deixa após uma noite de estripulias, mas vai embora pela manhã e ficamos amuados.
Annette (2019) conta com uma bandaça, um dream team que sob a batuta de Yuri Rabid constroem uma cama sonora potente e original: Irandê Naguê (bateria e MPC), o próprio (Baixo), Marcus Jerivá (Guitarra), Diego Drão (Teclado e sintetizador), Samuel Negão (Percussão), DJ Charles (scratch). “Meu Frevo” é mais uma que conta com produção orgânica/eletrônica e aqui Gustavo Pontual manda linhas de caráter existencial sobre suas preferências, ideias, caminhada. Tudo na suave, groovinho moderado da banda, e ele sossegado dando o papo, com toques de introspecção.
O ratonato baiano Dois As é convidado para fechar no feat da faixa “Faroeste”, onde a dupla adentra a sujeira naquele estilo freestyle sujão, pesado mais ainda aqui, Pontual reafirma que é o amor pela arte do hip hop o seu combustível para as linhas e o flow. Parceria e dixavação, encadeamentos de ideias e experimentações com as palavras mais do que os falsos conflitos que dominam a cena. É preciso encontrar formas de seguir, é necessário criar métodos e fundamentos para continuar caminhando neste mundo insano, onde o normal é o monstruoso, e cada vez mais.
É bom que se diga que o tema do amor percorre todo o disco mas não estamos falando aqui de um amor abstrato. Não estamos aqui falando do amor de novela, o amor que Gustavo Pontual nos impóem com sua poesia, é um ponto de chegada. É o horizonte sob o qual sua poesia quer se estabelecer, sem negar os nossos outros aspectos humanos, por exemplo a raiva. Ter a raiva como o motor ou combustível bruto é deveras salutar para que nos impulsionemos na criação. Porém essa criação, mesmo que vise a destruição tem como projeto uma amorosidade reconstrutiva, e isso visa diversos âmbitos. É preciso, ter visão que ser amoroso não é ser fofo, hipster ou algo do gênero, mas tratar a criação, o outro diferente de nós mesmos, com respeito e dignidade!
Em “Porque Eu Sigo”, com mais um belo refrão da Ana Talita, encontramos as pistas através das quais o artista recifense toma como bússola para não se perder em meio às bobagens e crueldades atuais. Um brega oldschool forma a base musical, onde o rapper produz linhas que captam a poesia regional como um soco de Todo Duro. Humildade, amor, pensamento e poesia em primeiro plano.
Pelo menos pra mim a apresentação de Kaeli no feat de “Minha Onda” foi uma grata surpresa, rimando seguro e num flow bacana a pernambucana segura muito bem a onda. A produção musical do disco ficou por conta de Gustavo Pontual e Yuri Rabid (Academia da Berlinda) e é difícil não atribuir à sua mão os balancinhos safados e tão gostosos, que permeiam diversos dos arranjos. Em “Panificadora” que tem a participação da paulista Tila, temos um exemplo lindo. A guitarra abre e fecha muito bem os trabalhos em “Sem Drama” que tem um refrão simples e muito necessário: “Se for pra algo bom me chama, se for pra coisa ruim me erra”, e conta também com a participação do mineiro de BH, Abu.
Com “Desacontece” encontramos a última faixa do disco, e encerra-se a obra com um clima de serenidade. Ao longo das 10 faixas que foram gravadas, mixadas e masterizadas pelo mestre Buguinha Dub no Estúdio Mundo Novo, percebemos um artista do hip hop, note, não um mc ou um rapper, mas um artista da cultura, maturado por uma caminha de 20 anos completados no ano passado. E essa madurez nos é trazida, ofertada com uma concepção de amor que abarca a realidade como um campo de criação, de afetos, de encontros, de postura, algo que anda bastante em falta.
Gustavo Pontual soltou o disco no youtube no último dia do ano passado, e para nós é uma honra fazer essa premiere, de um trabalho que certamente eleva muito o nível do hip hop nacional e nordestino em 2020, para quem se permitir a disposição de conhecer esse excelente trabalho, aprenderá uma dura e doce lição, pode até não existir amor em SP, mas em Recife e no nosso nordeste, tamo transbordando.
-Gustavo Pontual lança Annette (2020) e é 100% amor nessa guerra!
Por Danilo Cruz
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