Pervasivo (2022) é o EP do MC e beatmaker Gil Daltro, contando com 9 tracks, seu novo trabalho é um verdadeiro coquetel molotov!
Tem quem pense que no atual estado de coisas que o mundo atravessa, a flexibilização de perspectivas de luta seja algo produtivo. Gil Daltro não tergiversa em sua arte, entre o hardcore e o rap, sua ética e a sua política é a de radicalizar. Tomar as coisas pela raiz, nos leva a insubmissão diante dos poderes que trabalham incansavelmente pela nossa exploração e ou extermínio.
De todos os afectos que a arte é capaz de suscitar, a insubmissão é o sentimento pelo qual eu nutro maior admiração, pois sempre me impulsiona a refletir sobre minhas próprias práticas dentro das estruturas nas quais estou inserido. Com Pervasivo (2022) Gil Daltro lança o seu segundo ato de um trilogia que começou com Subversivo (2022) que contou com produção do inglês Giallo Point.
Em Pervasivo, além de rimar, o artista soteropolitano também ficou responsável por todos os beats. Gil Daltro surgiu no cenário baiano fazendo parte do “Wu-Tang Clan com dendê”, Fraternidade Maus Elementos e está desde 2018 cultivando solo, a nobre arte do boombap em sua carreira solo, com o lançamento do intenso Narrando a Era da Psicose (2018). Além de ter composto o projeto Vapor junto ao seu parceiro Galf AC, onde juntos os caras trabalharam com diversas sonoridades.
Essa caminhada, o fez se infiltrar, penetrar aos poucos no cenário do Hip-Hop baiano, construindo uma obra que cada vez mais se espalha e ajuda a difundir a força de rebelião que é um dos traços mais fortes da história do rap baiano. Pervasivo (2022) é sua masterpiece até então, seu trabalho mais bem acabado dentro de uma obra acima da média. O trampo traz participações dos maus elementos: Tiago Negão, Galf AC e Oddish, além do rato nato Dois As e do mano Samora Machel.
Aqui, Gil condensa de modo exemplar seus anos de atuação sindical, sua formação acadêmica em sociologia, a agressividade cultivada no hardcore, em um disco de rap que busca pensar a transversalidade entre questões de raça e classe. Isso fica bastante nítido nas inserções do discurso de Abdias do Nascimento e no recorte final de Anansi (da série American Gods). E tudo isso embalado dentro de uma estética onde o boombap segue se renovando e resistindo às modas hegemônicas.
Já na capa encontramos o trabalho da excelente Sófia Canário, figura importante para o cenário Hip-Hop de Salcity e uma designer gráfica que tem feito trabalhos impactantes em capas de disco. Pixadora e estudiosa do letrado, vocês podem conhecer mais do trabalho dela aqui. As vozes do trabalho foram captadas na Cremenow Studio, Estúdio Marighellah e De Quebrada Records, a mix e a master do trampo Dill Perreira.
“Sem fazer média irmão, nós nem disfarça, pode ir pra casa da desgraça, pra casa da desgraça”
Já na introdução com Guaxinim (Intro), o MC rima calmamente em um tom soturno extraído das noites de produção e escrita, maquinando, tramando novas criações que possuem inimigos “claros”. A frase acima, nos parece nesse sentido uma das declarações mais bonitas e possíveis em um tempo onde o ódio aflorou descaradamente das bases coloniais e burguesas que nos constituíram como nação.
Mandar a burguesia branca de origem colonizadora para a casa da desgraça, expropriar latifundiários e empresários que depenam o país e destroem nosso meio ambiente e nossas vidas, se constitui como uma declaração bonita e amorosa. “Colônia” vai nesse sentido cartografando nosso cenário da era neofascista brasilis, onde a extrema direita emergiu com todo vigor no atual governo do genocida Bolsonaro. Miséria, destruição e fake news, Gil Daltro rima com toda potência revolucionária que almeja, referenciado também por Malcom X e o cinema com: Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (Guy Ritchie) e Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino).
A sujeira descontraída, por que não se faz revolução sem alegria é a pegada de “Esquiva”, que traz o rato nato Dois As e toda a sua perturbação mental transformada em poesia irreverente, sem hipocrisia, escaldando tudo. Os beats que Gil cozinhou para esse novo trabalho é um show a parte, a faixa “Mata-Leão” é um desses exemplos. Aqui a reunião dos maus elementos com Tiago Negão (real OG do rap baiano) e o enfant terrible “Galf AC” gerou um audiovisual foda com produção da Ifé, que segue produzindo pedradas no audiovisual baiano:
A cultura hip-hop que conheço é exemplificada por Abdias do Nascimento, que nos ensina que cultura não é apenas um ato de erudição, um conjunto de técnicas e hábitos artísticos separado dos acontecimentos políticos, mais sim um ato revolucionário, uma luta permanente dos povos oprimidos contra os seus algozes. É nesta consciência que Gil Daltro trabalha, seja como educador, seja como beatmaker e MC.
Em um disco muito acima da média do que está dentro do jogo no mainstream, “Horror-Lounge” é a música mais importante e impactante lançada em 2022 até aqui, que por nós foi ouvida. Um drumless bonito de rachar, todo construído com samples super elegantes, onde Gil Daltro se superou ao criar um contraste entre música e poesia que faz um tempo não me impactava tanto. A beleza do instrumental é recheada com uma melancólica descrição poética dos elementos de controle tecnológicos de ponta sob os quais estamos sendo diuturnamente massacrados, subjetiva e fisicamente.
Se em “Esquiva” a referência a latinidade ia ao méxico em um pique mariachi, aqui em “Bandoleira” o mambo é a base musical sob o qual Gil Daltro e Samora Machel rimam. A faixa acabou de ganhar um audiovisual pesado gravado em Porto Alegre e se encontra no final do texto. Contra o enorme “Obelisco” da mediocridade erigido em nosso país nos últimos anos, os convidados dessa track são Oddish e novamente Dois As.
O ateísmo é o tema que subjaz nos versos dos três MC’s como uma ética descrente das performances de um cristianismo morto e que segue fedendo quando observamos o que hoje é o evangelismo hegemônico no Brasil. Um antro de produção de preconceitos da pior espécie tornados palavra de deus, uma gangue que se compraz em controlar subjetivamente a população carente através do medo e assaltar seus bolsos.
O disco se encerra com o potente discurso do personagem da série American Gods, Anansi. Fechando e dando o sentido final deste novo trabalho. Pervasivo (2022) é um disco feito pra queimar, queimar todo o navio da história colonial, todos os latifúndios, porque não há motivos para não perfilar a elite da extrema direita deste país em um paredão. Não existem motivos racionais para que não sigamos queimando todo e qualquer racista, misógino, LGBTQIA+fóbico e burguês, simbolicamente ou não!
-Gil Daltro é pura insubmissão em seu novo EP Pervasivo (2022)
Por Danilo Cruz