Em seu novo disco Galf AC apresenta uma aula lírica de disrupção nos beats orgânicos e tortos do Sumani Beats…
Em seu novo trabalho, o MC baiano Galf AC se une a Sumani Beats para apresentar um EP de pouco mais de 19 minutos e o resultado se faz numa construção poucas vezes vista no rap nacional. Mantendo um alto teor crítico, a produção organicamente analógica de Sumani nos traz uma corrente elétrica de sons, melodias, batidas, interlúdios e samples como signos amalgamadas às poesias e idéias de Galf, levando “World Packing Money” para um lugar bastante solitário dentro do contexto do que se produz atuais e que desfaz as prateleiras no mercado do rap nacional.
Essa procura, esse caminho diz respeito a onde colocá-los em um game que tem se consolidado por uma linguagem musical hegemônica e muito parecida nas diversas produções apresentadas. A estética negra e periférica sempre às voltas com o mercado e com a aprovação de uma indústria cultural que se consolidou no século XX em um duplo movimento. Invisibilidade, seletivismo nas abordagens, geralmente não dão conta de estéticas radicais como essa aqui apresentada pelo beatmaker e pelo MC.
Há sempre uma busca quando estamos a observar com atenção artistas que se entregam a produções que rompem expectativas daquilo que já está consolidado. Buscamos o que não sabemos precisar, mas que artistas como a dupla Galf AC e Sumani Beats dão conta de realizar. Neste momento, é o espanto diante de algo inovador que nos faz entender o que nós almejamos, nos transformando automaticamente em adictos de um puro bloco de poesias e batidas.
Cantar Cocaína, eletrizar estimulando as correntes corporais e o pensamento!
Gerar produtos que agradem e entorpecem o público, domando os potenciais revolucionários e inventivos da música negra, não é algo cultivado por Galf AC. O seu rap é diferente, este que é o gênero musical mais produzido no mundo hoje, está no centro das negociatas do mercado, e da atenção do público. É o tal do “World Packing Money” abordado pelo Galf AC x Sumani Beats, o mercado da droga que serviu inicialmente para entorpecer e desmobilizar nossas quebradas, para na sequência criminalizar e exterminar os indesejáveis. É sobre isso, é dentro deste espectro crítico e semiótico que esse trabalho se apresenta.
Mais um pacote, embalado e vendido no mercado mundial integrado, porém buscando apresentar outros efeitos, pois aqui importa mais o como do que o que é apresentado. Livre em seus raciocínios, Galf AC erige desde o ano de 2021 uma obra digna de total e absoluta reverência, com uma avalanche lírica nunca antes vista na história do rap nacional. O artista que já possui uma longa caminhada dentro do underground musical, na medida em que se livrou das drogas ficou mais chapado do que qualquer substância foi capaz de fazer algum dia. É quase como se estivéssemos diante de uma espécie de bad trip nos moldes do filme Tenet.
Ouvir os trabalhos de Galf AC de 2021 em diante, nos faz perceber não apenas o poder de uma sobriedade louca do artista, mas antes, a loucura de um mundo chapado, violento, desigual, montado sobre uma estrutura matematicamente articulada para oprimir e matar. Isso está para além das denúncias estruturantes, é uma análise feita sob os pressupostos sob os quais nossas percepções estão calcadas. Uma sociedade caminhando para o fim do planeta como local capaz de suportar a vida humana, e que segue alegre e satisfeita em direção a um precipício já ali colocado em nossa frente, porém apesar de vermos, continuamos a caminhar.
A capa do disco de autoria do MC, assim como a sua esclarecedora contracapa, ilustram o consumo de cocaína fomentado pela branquitude, as estátuas com narizes sangrando, cada uma olhando para um lado, assim como a superfície eivada de pó, nos levando a ouvir o disco e pensar nos efeitos das músicas que nos viciam e nos cegam. É talvez um dos melhores exemplos da história das capas de disco, a denunciar e ao mesmo tempo nos clamar. Há um consumo louco e irrefreável de música no século XXI, facilitado pelos streamings, mas curiosamente há pouca reflexão sendo debatida publicamente sobre esse aumento. Dentro do espectro do Hip Hop, esse aumento tem se mostrado danoso, pois o que tem sido consumido é bicarbonato de sódio, a pura foi relegada ao “mercado negro”.
O rap nesta altura do século XXI no Brasil tornou-se um rentável negócio onde a “máquina fordista” apresenta sempre produtos iguais a vender-se para a classe média branca. Esta anacronia produtiva tem sido rompida literalmente e diuturnamente por esse artista. Com Sumani Beats, Galf AC mantém o fluxo produtivo mas com uma disrupção que apenas quem tem acompanhado seus trabalhos é capaz de perceber.
Como de costume em seu estilo lírico, Galf produz pequenos “pinos” de poesia onde consegue mesclar visões acerca dos problemas que são produzidos dentro de nossas quebradas e ao mesmo tempo sugere formas de nos desviarmos dos mesmos. “Temos escolha começa no nosso lar”. A produção de Sumani beats é lisergicamente calculada e os seus brinquedos analógicos longe de trazer uma atmosfera vintage para o disco, nos leva além do “Brahma”. De fortes acentos soul, os beats não poderiam ser mais quebrados e tortos, com viradas rítmicas, inclusões de samples, ocorrendo muitas vezes na mesma faixa.
É um trampo que apesar de supostamente se inserir no que ficou conhecido como Coke Rap, o faz mostrando como o capitalismo e a violência estatal que luta contra corpos negros para manter esse modo de produção cruel e opressor da maioria da população é o grande inimigo. Afinal, a guerra às drogas essa desculpa esfarrapada e ensanguentada por bilhões de litros de sangue negro, é uma invenção dos grandes negociadores da droga. São os que ganham, fazem fortuna sem precisar nem chegar perto do comércio e de suas guerras.
Abrindo o ano em alto nível, Galf AC e Sumani Beats nos apresentam um disco que é pura chapação, experimentalmente combativo.
-Galf AC x Sumani Beats – A disrupção percorrendo o seu corpo, World Packing Money!
Por Danilo Cruz