Galf AC e Saggaz Beats lançaram o disco Trópicos, uma obra conceitual com diversas camadas de interpretação!
“Geografia Plena que se foda o Google Maps”
Galf AC em parceria com Saggaz Beats lançou o disto Trópicos, uma obra conceitual que aliando vivências, beats e rimas traça uma geografia espiritual ao longo de 10 faixas. Fruto da parceria dos artistas da Bahia e de Goiás, traz ainda participações dos MC’s Yellow e Renedy (Goiás) e Relvi (Paraná). Para quem já conhece os nomes acima mencionados, sabe que se trata do que de melhor o boombap nacional underground pode oferecer, apresentando desde a capa uma estética singular, um trabalho do Basedismo.
Ao longo dos últimos anos, Galf AC tem construído sua obra através de um nomadismo estético que tem buscado alianças com diversos produtores do underground nacional, visando romper barreiras e aproximar públicos. Já tendo trabalhado com produtores internacionais como Giallo Point (Inglaterra) e Maurício Martillo (Equador), e diverso outros nacionais dos estados da Bahia, do Paraná, Santa Catarina, São Paulo e agora adentrando o centro oeste (Goiás) neste trabalho com o Saggaz.
A poética de Galf AC vem desbravando e produzindo uma aula de geografia desconhecida do “público do rap nacional”, inclusive dos seus “intelectuais”. Em um ritmo intenso de produções que já abarca mais de uma dezena de discos nos últimos dois anos. Este impulso ético e essas aproximações estéticas encontram em Trópicos (2023) uma visão que rompe com a mera cartografia, entregando ao ouvinte atento uma verdadeira visão cosmológica, uma cosmovisão.
Basta que se atente aos títulos das faixas presentes no atual trabalho, mas que também não se perca de vista os títulos dos discos e EP’s, dos audiovisuais como os dois episódios da Live Session Maré de Março, para que se entenda que não se trata de um jogo meramente metafórico. Senão um esforço político de se manter resistente produzindo, formando aliados e estabelecendo pouco a pouco campos de trabalho em um país de dimensões continentais mas com um aspecto de vilarejo quando se trata de diversidade.
A indústria cultural tem nos últimos anos exaurido através dos algoritmos, a visibilidade de artistas que não sigam as fórmulas consagradas de repetição esvaziada de palavras de ordem, de cantilenas e sonoridades de um pop aguado. A lírica que Galf AC possui, seu acervo vocabular, sua qualidade e técnicas de rima e flow, enfim a sua obra poética em construção é fruto de movimentos existenciais radicais ao limite, mesmo entre vida e morte.
Neste sentido, o seu trajeto trilhado até aqui tem – a custa de muito esforço – registrado um movimento artístico pouco visto em termos de veracidade e síntese de um movimento underground que prima pela força política e pelo rigor estético em beats, rimas e flows. São a expressão de uma vida em movimento e em constante transformação, que segue se limpando das toxinas impressas no corpo pelo estado colonial e capitalista, transmitindo-nos ao mesmo tempo uma visão política acrática e uma espiritualidade sem igreja.
“A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.” Clarice Lispector
A sonoridade presente em Trópicos, trampo fino na produção de batidas do goiano Saggaz Beatz conduz o trabalho com timbres, samples e cadências que se adequam ou são adequadas aos temas amplos tratados nas faixas. Apresentando uma cumplicidade artística e um entrosamento entre dois artistas que parecem trabalhar há muitos anos. Certas inserções de loops, como no drumless “Tentáculos de Oya” por exemplo, encontra na lírica de Galf AC o par lisérgico, combativo e ainda assim espiritual – na utilização da ancestralidade do MC como imagem poética – uma das grandes sínteses do disco.
Uma característica muito marcante da lírica de Galf AC, para quem ainda não conhece o trabalho do artista baiano, é que ela se constrói sempre por adição e por uma visão ampla dos problemas que afetam a população negra, no Brasil e no mundo. Não é exagero dizer que em seu trabalho, Galf parte sempre de uma cosmovisão fruto de sua construção subjetiva para chegar em visões políticas de resistência. Exemplo disto está já na faixa de abertura, “Trópico de Capricórnio”:
“Trópico de Capricórnio, linha imaginária
vidas são interligadas pelos cosmos
átomos se despedaçam, a humanidade
aprisionada em algoritmos e códigos”
O refrão da primeira música, que conta com a participação do Rennedy somando realmente na faixa, nos dá uma pequena amostra da amplidão das conexões propostas pela poesia de Galf AC. O artista possui a capacidade de produzir imagens poéticas de impacto violento construídas através de barras que se ligam amplificando e atualizando problemas diversos. E esse método de construção possui uma explicação diretamente ligada a sua vivência e a intensidade de lançamentos, parcerias e conexões que o artista tem produzido em tão pouco tempo.
Reconhecido pelos seus pares como um dos grandes nomes da história do rap na Bahia, Galf AC passou anos sem construir uma carreira própria, imbricando-se em projetos coletivos – extremamente relevantes para construção do atual cenário local – e acumulando vivências através de experimentações com a música e a vida. Desde a adolescência fazendo parte do cenário de música extrema e da cultura de rua, foram de certo modo, um laboratório formativo que durou mais de uma década e meia até aqui.
Tendo superado essa fase e os obstáculos e vícios que este período cultivou, o resultado de todo esse percurso tem sido transformado no que de melhor o rap nacional tem nos últimos dois anos. Produzindo uma carreira solo de amplitude nacional e de uma singularidade única, aquilo que denominamos aqui de geografia espiritual obviamente dentro da cultura hip-hop. Muito além do game, essa falsa noção onde os peões se entregam e abençoam a opressão, reificando um sistema que vive ele mesmo da exclusão.
Com Trópicos, Galf AC em parceria com Saggaz Beatz constrói uma obra densa, forte e sobretudo calcada nos pilares da cultura hip-hop atualizados aos problemas, aos modos de fazer e às demandas do século XXI. Dentro de um cenário que se rende cada dia mais à globalização predatória, ao imperialismo cultural e aos jogos do neo colonialismo, a dupla produzem uma outra possibilidade geográfico subjetiva de entendimento do que pode o rap nacional diante de um cenário catastrófico, genocida e neo escravagista no capitalismo tardio.
O disco guarda em si um sentido que precisa ser observado e construído pelo ouvinte, longe das cantilenas que nada dizem em grande parte do rap atual no mainstream, aqui está um forte exemplo do que o underground guarda como superioridade estética e política. Músicas como “Pilotos da Bússola” com feats de Yellow e “Serra Leoa” com feat do Relvi, nos apresentam platôs, blocos de poesia e ritmo de onde se pode enfim sentir e pensar de modo potente. No ofertando uma visão de direção e da diversidade do mundo, das diferenças que ainda hoje estão sendo combatidas e eliminadas em nosso planeta.
São 10 faixas onde o que nos é oferecido é uma possibilidade real – desde que se dê o play e que se escute – de colocar nosso pensamento em movimento, sobrevoando as dores, as mazelas, os problemas, mas também encontrando ilhas onde a criação está para ser feita, em conjunto, a se pensar com, aqui a política e a arte são irmãs e rompem com visões medíocres de mero entretenimento. É papel do ouvinte ler, analisar e construir por si só o seu lugar a partir destes Trópicos que Galf AC e Saggaz Beatz criaram para nós como diagnóstico e possibilidades!
-Galf AC x Saggaz Beatz, Trópicos e uma geografia espiritual no Hip-Hop nacional!
Por Danilo Cruz