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Galf AC x Entidathe x Nnay Beats em um “Ato Sacro”, um rito em Ritmo e Poesia

Galf AC

Com Ato Sacro, Galf AC convida os produtores de Blumenau (SC), para um rito onde a cultura hip-hop é louvada em toda sua potência!

 

Foto por: Mateus Lima

O MC oriundo da cidade baixa em Salvador, Galf AC acaba de lançar o seu terceiro disco em 2023, o sucessor de sua parceria com o experimental Sumani Beats em World Pack Money e do trabalho coletivo com o DJ e produtor Traumatopia e o MC paranaense Relvi. Composto de 17 faixas e contando com uma divisão em Lado A e Lado B, onde os produtores de Blumenau, Entidathe e Nnay Beats produzem cada qual um dos lados do disco intitulado “Ato Sacro”.

Existe uma mística difusa que afirma que o rap, que a cultura hip-hop salva. onde pela potência de inserção de jovens negros e periféricos é proferida como uma verdade. Algo que a própria realidade histórica da cultura e o próprio desenvolvimento mercadológico do gênero musical desmente. O cunho de religiosidade presente nesta afirmação é uma forma de expressão que tenta dar conta da força de uma cultura que sim, deu régua e compasso, que formou e abriu um campo para que muitos e muitas conseguissem se desenvolver como seres humanos. 

Em tempos de capitalismo cognitivo e de intensificação das políticas de segurança pública onde o genocídio do povo negro e o encarceramento em massa alcançam recordes históricos, não é a busca por uma salvação abstrata o que pode se contrapor. Apenas a luta, e somente ela pode de algum modo, através de práticas coletivistas e autogestionadas, informada e capaz de agenciar um povo atomizado como massa, bater de frente com o estado das coisas. 

O artista baiano Galf AC se coloca nesse status quo através de uma recuperação do conteúdo político firme em seus conceitos, espiritualidade e prática. Através de um trabalho convicto de sua missão, de fazer da periferia um centro ligado e desconectado das práticas do centro, o MC da Belamita (CBX), tem ao seu modo jogado sobre seus próprios termos, encontrado aliados e sobretudo produzido o que de melhor está sendo feito no boombap nacional. 

Com a ideia de que o seu talento se expressa melhor dentro da cultura hip-hop da qual faz parte há mais de 15 anos, mas que somente em 2021 se colocou como profissional. Com passagens pela cena rock e grindcore de Salvador, a subversão sempre foi um dos traços buscados, desde o começo de sua adolescência. Hoje, após a autovisão construída de que seu corre deve estar na frente de qualquer outra coisa – aquém da família – o MC vem construindo uma obra das mais interessantes do cenário Boombap nacional. 

foto por Mateus Lima

Neste sentido, o seu “Ato Sacro” é um prolongamento profano e constante onde o Hip-Hop e o rap – sua forma de expressão – é tratado com a devida seriedade, não apenas como um joguinho, que pela sua própria essência deve possuir vencedores e vencidos. Muito pelo contrário, o rap de Galf AC é todo feito dentro de uma perspectiva onde a realidade sangrenta na qual vivemos no sistema negro de qual somos parte, encontra uma atualização para o combate. Sempre na febre, Galf AC produz com a urgência que a luta pede contra um partido de esquerda que é hoje o administrador estadual da polícia que mais mata negros no Brasil, por exemplo. 

Ao mesmo tempo, o seu “Ato Sacro” se torna para os ouvidos mais atentos um relato poético e rítmico de suas próprias vivências que teve, transformações pelas quais passou e projeções daquilo que deseja. Esse movimento todo dentro da cultura hip-hop o levou a se centrar, entender quais as suas possibilidades e a partir daí – com o auxílio de parceiros como Tiago Simões – seguiu fazendo alianças com produtores onde tem vomitado tal qual a Regan Macneil do filme O Exorcista, clássico do diretor William Friedkin, versos plenos de sujeiras intermitente. 

Ao escutar de modo adequado e direcionar o seu “Daimon”, Galf AC lançou de 2021 até aqui 12 discos, entre EP’s e álbuns, contrariando as regras de que é preciso preparação marketeira e dinheiro para investir em publicações patrocinadas e ou pagar para ter publicações em sites e nos streamings. É um nível de produção e constância, além da qualidade estética que não possui par no cenário do rap nacional. Isso porque não estamos contando singles e audiovisuais…

O Ato Sacro e seu Lado A com Entidathe!   

Entidathe & Nnay Beats

A sujeira mesclada com críticas sociais e políticas – conteúdo – presente na lírica de Galf AC nos lembra o rap dos anos 90 com muita força, porém atualizado tanto na sua forma de construção poética quanto na forma onde ele embala esse combo que difere muito do que tem sido feito no cenário nacional. E para esse novo disco, o MC baiano se aliou para o Lado A de “Ato Sacro”, o produtor e MC Entidathe. 

Uma coisa fundamental no trabalho de Galf AC é como ele ataca osproblemas de modo radical, chegado sempre com poucos versos ou imagens poéticas na profundidade das questões de modo a deixar nítido para o ouvinte do que é que ele está falando. Sem deixar também várias visões subentendidas para aquele que escuta e pensa sobre o que ouvindo. As três primeiras faixas que abrem esse primeiro lado do disco, com produções de Entidathe é um fácil quebra cabeças para quem está na sintonia. 

Com as músicas “Protagonista”, “Cops Delivery” e com “Poética Mágica”, o MC versa sobre um conglomerado de questões que impedem que cidadãos sejam formados, por conta de uma política pública que coloca nas favelas apenas a força policial e genocida. E os beats seguem essa narrativa ora contrapondo ora apoiando rítmica e sonoramente as ideias presentes das faixas. A primeira faixa segue uma pegada mais marcada entre batidas e um sample de sax, onde a construção é elevada para cima, na mensagem: seja o protagonista. 

Em um segundo momento, o beat drumless se faz etéreo com loops de piano em suas teclas mais agudas, enquanto o MC versa sobre a prática de não oferecer saídas e depois invadir a favela para matar. Intercal-se isso com outro beat numa pegada mais oldshoocool, não nos timbres mas na construção e onde Galf AC segue rimando: 

“A poesia que livrou meus pensamentos que o abismo que minha mente acabou desenvolvendo, ser positivo altruísta sempre pleno, guardo na mente os ensinamentos”

Na quarta faixa do Lado A, Entidathe abre a caixa de ferramentas de samples com mais expansão e traz uma cantora para o dueto com Galf AC, e onde o BPM aumenta, típico bate cabeça em Salcity. A faixa chama-se “Joker”, onde o MC versa sobre os perigos da “diversão” pelas ruas da favela, “Vorazes (interlúdio)” mais uma referência soul completa essa sequência. Para abrir espaço na cabeça de quem está ouvindo perceber as “Vitimas do Crack” que é um problema de Saúde pública se transforma facilmente em questão da segurança pública. Para abater pretos e pretas e situação de rua.

A faixa que dá título ao disco – “Ato Sacro” e que é da lavra do Entidathe, é um dos pontos altos do disco, não apenas pelo contraste produzido pelo sample de uma cantora soul, com Galf AC trazendo o caos que vivemos em nível planetário. Nos apresenta o mote que tentamos apresentar ao longo desse texto: A gratidão do artista por estar conseguindo produzir no nível e com a qualidade que tem feito. Obviamente com a contribuição dos seus aliados. 

Muitos se perguntam bobagens ou meramente afirmam vivências que não possuem nenhuma substância, a música “Favela Keys” se transforma na melhor resposta a essas falsas questões. Aqui se mostra em um beat muito inspirado do Entidathe, de que modo um MC se forma e consegue dentro do jogo real da vida, conseguir as chaves para habitar e produzir desde a favela! A menção a Cassius Clay aka Muhammad Ali e sua esquiva, de modo cifrada nos versos, pode ser uma saída para quem quer aprender. 

O interlúdio “Começo do Fim” com um sample que nos parece ser do Barry White e a sequência em loop de recortes do Soul-Funk americano dão conta do que é a tônica dessa primeira metade fruto do Entidathe em termos musicais. Beats mais swingados e ou com fortes batidas. A primeira metade se cumpre sem vontade de parar de ouvir…

Nnay Beats, e a cara metade diferente no Lado B!

Foto por: Mateus Lima

Quem está lendo esse texto longo, pode imaginar que as músicas são longas, o que não é verdade. O Lado B abre com um drumless do Nnay Beats que recebe um tratamento “brilhante” musicalmente através dos timbres escolhidos. Galf AC retrabalha isso em suas faixas de pouco mais de 2 min e pouco, “O Rapto Da Esfinge” é uma faixa a mais a trazer a questão da espiritualidade africana ao centro de uma luta, raptar a esfinge é apropriar-se de uma forma de oráculo que o rap nacional desenvolve a sua forma e sem necessariamente se vincular ao IFÁ, que o nosso oráculo no candomblé.  

Talvez seja impressão, mas as produções do Nnay Beats neste trabalho está mais ligado ao jazz rap, e em “Alma Livre” isso meio que se reforça. Galf AC segue na mata do quadro em branco desmatando e dando forma a uma poesia que é coletiva, que é luta está muito longe de ideias individuais. Contra as quimeras que muitos dos adolescentes – jovens e velhos – do rap abraçam. O “Corre das Notas”, quase um grindcore em forma de rap, traz um Galf AC rueiro muito bem instruído com a questão racial que atravessa todo o trabalho: 

“Doidão pro mundo, minha luz aqui é sunshine, vagabundo nato na missão do freestyle, mais amor pros puto nesse clima instável, nosso conteúdo é nocivo pras Paty, Boy de condomínio seu domínio é Freefire”

Nesse corre vertiginoso das notas, Galf Ac contou com beatmakers e produtores capazes de lhe dar o encadeamento rítmico necessário para plasmar seu “Ato Sacro”. Isso fica evidente com “Zona de Risco”, onde ele consegue concretizar poeticamente em modo bastardo seus versos que impulsionam outros a conseguir suas formas de expressões. Não peça nunca o possível e sim o impossível, é outra lição que Galf AC nos ensina!

Com a voz da conterrânea Gal Costa, que nós recentemente perdemos o Nnay Beats segue a toada, com Núpcias (Interlúdio), mas abre a fase final com um “Neon” pesado em suas construção musical e mesmo nas críticas que o MC mete os versos. Ser positivo dentro da obra de Galf AC não tem nada haver com ser good vibes. E isso fica muito bem rimado com a penúltima faixa do disco “Buy & Bye”, onde o artista esmerilha nos versos sobre impulsos sintéticos e visões coletivas!

O disco termina com uma colagem beat do Nnay Beats que bebeu da fonte do cinema baiano, com o clássico “Super Outro”  de 1989 do diretor Edgard Navarro. O que não poderia ser mais adequado a um MC que lança mais um disco onde não propõem nada parecido com outros de sua mesma cultura. No final das contas o Galf junto a outros tem gritado:

Acorda Humanidade!

-Galf AC x Entidathe x Nnay Beats em um “Ato Sacro”, um rito em Ritmo e Poesia

Por Danilo Cruz 

 

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