Fuzzuês lançou recentemente seu primeiro álbum, Iluminando a Madrugada, um grito de revolta preta ancorado na ancestralidade afro-brasileira.
É preciso ter uma pedra no meio do caminho
Se você é negro ou negra experimenta desde a mais tenra infância a sensação de não pertencimento a este mundo. Você passa por essa fase de descoberta se sentido confuso (a), perdido (a). Você não entende o porque disso, mas sente que sua presença de algum modo, por algum motivo, incomoda as pessoas na sala de aula, no seu local de trabalho, na praia, no bar, no teatro, no cinema. Os programas de televisão, os filmes, as músicas, tudo parece ser feito para pessoas que nada tem a ver com você.
Percebe que quaisquer tentativas de garantir acesso de pessoas como você à cursos universitários, à melhores empregos, até mesmo acesso ao consumo, gera revolta daquelas outras pessoas.
Rapidamente começa a ouvir que pessoas como você estão sendo privilegiadas por um governo comunista. Estas mesmas pessoas começam logo a desejar outro arranjo político.
De repente bate aquela nostalgia gostosa dos tempos de antigamente quando era tudo lindo e maravilhoso. Porque a farda verde oliva e os coturnos determinavam a moda de governantes vendidos como salvadores da pátria, mas que não passavam de reles golpistas, reles sádicos, que só conseguiam ter uma ereção torturando e assassinando pessoas.
Você segue vivendo, segue acreditando que há algo errado em e com você. Segue se esforçando sempre pra ser aceito, segue tentando se encaixar, você vai tentando mudar seu jeito de ser, seu modo de se comportar diante das pessoas que se incomodam com sua presença para enfim se encaixar no mundo. Você vai percebendo não haver esforço suficiente o bastante para fazê-lo ser aceito por estas pessoas.
E você vai seguir pelo resto da vida se martirizando, buscando meios de ser aceito, se auto violentando física, emocional e psicologicamente para ser visto como igual, mesmo que cada maldita tentativa termine em fracasso.
Isso só vai parar se no seu caminho aparecer uma pedra, se aparecer uma pedra em seu caminho. E pro jovem preto (a) da periferia, essa pedra que vai tirá-lo (la) do transe é a arte feita na sua comunidade. Ou pelo menos, a arte feita por pessoas que nem eles, que nem elas e que nem vocês, nascidas na mesma condição sociocultural.
Porque não se trata de qualquer arte, é arte com teor político, é arte combativa, ácida, crítica, agressiva e subversiva. É a arte que vai fazer você entender que a cor da sua pele e o CEP do seu endereço determinam como você é visto e compreendido neste mundo que parece não querer você nele. Ou melhor, quer você nele numa condição de subserviência e aceitação passiva do papel que aquelas pessoas cuja cor da pele e o CEP são o opostos do seu.
Apenas a arte de seus irmãos e irmãs, que já “tropeçaram” numa pedra no meio do caminho pode te ajudar a entender o mundo no qual você vive. Em que pessoas de pele clara e CEP “nobre” o dominam, o controlam, o administram. Por isso mesmo constroem um arranjo social onde eles estão confortáveis e nós sempre nos sentimos de fora.
Dentro deles só estamos para obedecer, servir e sermos descartados quando perdermos esta utilidade.
O artista preto não pode se dar ao luxo de falar de amor
Enquanto houver racismo artistas negros e negras não podem se dar ao luxo de falar de amor. Claro, esta frase se trata de uma provocação. O amor é um tema tão desgastado pela indústria cultural de modo geral, que no tocante ao seguimento musical, tornou-se um tema tão banalizado nas letras das músicas, que representa um tipo de música cujo propósito é o consumo rápido, no melhor estilo fast food.
Quando artistas pretos e pretas se rendem por completo à indústria do entretenimento, abrindo mão de criticar a realidade racista na qual estamos inseridos, deixam de mostrar pra quem os escuta, a ininterrupta promoção da violência, por parte do estado, contra as pessoas negras e periféricas.
Deixam de denunciar um aparato de dominação, muito bem urdido desde os tempos coloniais, exercendo controle sobre elas, determinando onde vão morar, onde vão estudar, quais trabalhos poderão exercer, quando as deixam viver.
Enquanto pessoas pretas forem alvo da violência institucional e estrutural existente em nosso país, artistas pretos e pretas não podem se dar ao luxo de baixar a guarda. Poque se o fizerem, correm o risco de não contribuírem em nada para a luta pela mudança da realidade de seus irmãos e irmãs.
Fazendo um fuzzuê na vida dos racistas
Se você der uma “gugada” na palavra fuzuê vai encontrar como significado “festa, farra, função”. Mas também, “conflito, briga, barulho, confusão”.
Mariô Onofre e Uly Nogueira, os integrantes do duo preto punk ancestral Fuzzuês, estão na linha de frente na luta contra o racismo. Portanto, pros racistas, Fuzzuês leva ao conflito, a luta.
Pros irmãos e irmãs negros e negras das periferias Fuzzuês leva à celebração, à farra e à festa. De preferência para celebrar cada derrota que infligimos aos nossos inimigos.
Fuzzuês traz em sua música a força ancestral, pertencentes às raízes dos ritos mais antigos, quando reis, rainhas e seus guerreiros e guerreiras celebravam conquistas, vitórias e a derrota imposta aos inimigos.
Sua música traz a verve própria de quem sabe o que tá rolando e o que precisa ser feito. Marcam a presença dessa atitude combativa no comportamento, no jeito de se vestir, na forma de falar, compor e arranjar suas músicas.
Há um tempo atrás lançaram o single Voodoo Trabalhando, que resenhamos aqui no Oganpazan e já deram logo a ideia sobre o tipo de música que estavam invocando. Cerca de três anos após o lançamento do single, os caras lançam o álbum cheio Iluminando a Madrugada.
Tratam-se de nove faixas que não foram compostas, mas invocadas. Ouçam o álbum e vocês entenderam o que quero dizer. Ouvindo as músicas você imagina um cerimonial voodoo, da santeria, do candomblé, envolvendo forças atemporais, presentificadas por cantos, danças próprios de um ritual sagrado preservado através das gerações.
Fuzzuês rompe com a ideia do artista fazendo sua obra de fora. Ouvindo os caras, tenho a impressão que Fuzzuês é a própria obra. Não tem fora, porque não há indivíduos realizando algo.
Há apenas algo, que é Fuzzuês, formado a partir do momento no qual o ritual se inicia. Ritual que consiste em manifestar a música através da materialidade de corpos, instrumentos e sons.
Existe uma matéria prima, claro, não sou um lunático goodvibes achando ser possível materializar energias sobrenaturais fazendo uso do poder da mente.
As histórias pessoais, envolvendo a música pop negra, o punk rock, o garage, as músicas ritualistas negras, dos atabaques dos terreiros ao berimbau da capoeira são os elementos constitutivos da sonoridade dos Fuzzuês.
Tudo isso se cristalizou na personalidade de Uly e Mariô ao longo de suas vivências até aqui. Vocês podem saber um pouco mais assistindo a entrevista concedida pelos cara ao canal Registros. Clique aqui e confira!
A estética sonora de Iluminando a Madrugada está sustentada em elementos rítmicos e melódicos africanos trazidos por nossos ancestrais escravizados. Preservados geração após geração através da luta permanente de manter viva sua ligação com a Mãe África.
Cada geração acrescentou novas características, transformou os sons, os movimentos, as danças, o gingado, chegando aos nossos dias no toque do berimbau que leva os corpos a gingar na capoeira. Que conduz as cerimônias nos terreiros do candomblés no toque dos atabaques.
Esses elementos musicais fazem parte da matéria prima constituinte das músicas compostas por Uly e Mariô. São ressignificados nos parâmetros musicais contemporâneos, nos revestimentos dos efeitos eletrônicos. No fuzz, no reverb, no ethos do faça você mesmo. Na preservação da essência ancestral pautada pela simplicidade.
Um setlist de combate, celebração da cultura afro-brasileira
Os caminhos da madrugada são abertos por Ogum Onirê. Faixa de abertura do álbum que rende tributo a Ogum Onirê , representação antiga do orixá guerreiro. Temível por sua habilidade de combate, seu temperamento explosivo e arrebatador, Ogum Onirê precisa ser devidamente reverenciado por aqueles (as) que o chamam.
Por isso Uly e Mariô usam um oriki (o yorubá, ori = cabeça e ki = saudação) que faz reverência a Ogum proferido no refrão da música: Ogum Ajó Ê Mariô. Ao fazerem essa saudação a Ogum, garantem que o guerreiro virá em paz, na intenção de protegê-los em sua jornada.
A música apresenta um arranjo pautado na melodia do canto e no ritmo apenas. Pense em algum instrumento de corda rudimentar antigo, mas eletrificado. Quando ouvimos o riff parece ser um instrumento dessa natureza em execução. A voz acompanha a linha melódica do instrumento, emitindo seu agradecimento a Ogum pelas dádivas concedias nas vivências de ambos.
Desse modo trazem para o ouvinte o ethos próprio das religiões de matriz africana, em particular do candomblé, já que somos brasileiros. Porque nos terreiros se aprende o respeito e a reverências às forças vitais, sustentáculos da existência, representadas pelos orixás. Para organizar a luta é preciso se conectar às raízes ancestrais africanas. E qual é a nossa herança cultural mais umbilical com tais raízes que não o candomblé?
Voodoo Trabalhando, segunda música do álbum, recebeu uma análise cuidadosa quando foi lançado seu single, sugiro que leiam aqui. Trata-se de uma música de pegada ritualística, fortemente pautada pelo country blues. A slide guitar com efeito fuzz bem sujo gera uma atmosfera densa.
A melodia vocal é carregada, revestida por um timbre cerimonial. A letra fala sobre a purificação do corpo através do banho de folhas que age sobre ele. Um procedimento que remota ao passado, à tomada da consciência de que “o que vem de mim vem de antes … o que vem de mim vem de antes …” um mantra que conduz ao transe, à condição para o voodoo trabalhar.
Em Revolta Preta o riff cru da guitarra associado à marcação do pandeiro meia lua e as quebradas na caixa, geram um clima nervoso para linha melódica vocal surja carregada de ira. A letra avisa, “Estou de volta para pegar o que é meu/ Você roubou tudo o que me pertenceu“.
É uma música de combate, que revela uma tomada de consciência por parte de quem foi usurpado e teve sua mente formatada pela ideologia do usurpado europeu. A consequência é a revolta preta, ou as revoltas pretas, ocorridas ao longo de toda a história do nosso país, apesar desses fatos não serem disseminados, permitindo a consolidação da ideia de que os negros brasileiros são ordeiros.
Palmares, caso mais conhecido de luta contra os colonizadores europeus, por africanos feitos escravos e trazidos para o Brasil, resistiu durante mais de um século às investidas dos portugueses, mercenários e senhores de engenho.
Entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835, escravizados de Salvador tentaram tomar a cidade e libertar seus irmão e irmãs do jugo da escravidão. A ação ficou conhecida como Revolta dos Malês.
Só aqui na Bahia da primeira metade do século XIX, mais de 30 revoltas de pessoas escravizadas ocorreram. Vejam uma lista resumida de algumas revoltas pretas que ocorreram na história do Brasil. Mariô, como preto e baiano, honra seus ancestrais guerreiros e guerreiras com essa música, chamando ao resgate do orgulho e da reconquista de todo legado preto responsável por fundar nosso país.
Ancestrais usa a slide guitar de forma pesada e a bateria soma ao riff viradas frenéticas nessa música que busca alinhar as gerações pretas atuais com sua ancestralidade. Desconstruindo a ideia colonialista de que estes seriam escravos e não reis, rainhas, guerreiros e guerreiras escravizados pelos europeus.
A faixa 05, Digerido Lentamente, é uma balada disfuncional, ruidosa, beirando ao incômodo. Esse aspecto sonoro casa bem com a letra, uma auto reflexão acerca da relação entre o sujeito e o mundo.
Parece um sentimento de culpa por não conseguir encontrar um caminho para conhecer a si mesmo e saber das possibilidades reais para agir. Uma revolta por digerir a experiência lentamente ao invés de atuar na sua construção. A revolva por não conseguir atuar ativamente sobre a realidade, apenas receber a ação vinda de fora.
Seguimos para Embrião, grito de resistência, soa como uma música de combate, aquele grito no campo de batalha que estimula e garante a energia necessária para não sucumbir e permanecer lutando.
E aí chegamos até a música que invoca o exu paranaense Lucian Satan. Parceiro de longa data de Mariô e Uly, Lucian imprimi sua pegada bluseira do Mississipi convertido na experiência afro-brasileira da macumba e dos rituais das nossas encruzilhadas.
A penúltima música empresta seu nome para o título do álbum. Iluminando a Madrugada dá mais relevo aos elementos primitivos e ritualísticos característicos da sonoridade da banda. Descreve um ritual iluminado sob o céu da madrugada, ao redor de uma roda de fogo, pedindo a benção dos mais velhos e iluminando a madrugada.
Fecha o álbum a faixa Música do Poço. Balada xamânica moderna usada num ritual ancestral adaptado à massiva urbanização destrutiva das características culturais originárias dos povos trazidos cativos ao Brasil e daqueles aqui sempre presentes.
A letra remete à ideia de personificação espiritual de antepassados já desencarnados, invocados num ritual para alertar a respeito de como se proceder no mundo para os que ainda estão neles.
A primeira frase é um aviso “Vá por mim, esse poço é fundo”. Cada verso se inicia pela expressão Vá por mim, indicando a orientação de como proceder diante do mundo.
Infelizmente do nosso lado da trincheira faltam recursos pra jogar o jogo das grandes plataformas de stremaing e das redes sociais fazer os algoritmos trabalharem a nosso favor. Continuamos sendo o lado mais franco naquela luta desigual iniciada desde os primórdios do colonialismo.
Porém, continuamos a luta, porque sem ela resta a loucura, a depressão ou a subserviência passiva. Nós que temos na música uma ferramenta de luta precisamos difundir artistas preocupados em fomentar a resistência, a ação e nossa parte é apresentar ao maior número de pessoas possível a existência de artistas como Mariô, Uly, Lucian, bandas como a Fuzzuês.
Ninguém vítima de racismo passa batido por músicas como as feitas por estes caras. Porque ajuda a canalizar a revoltar para o lugar certo, ajuda a entender seu lugar através do reconhecimento de suas raízes sociais e culturais.
Levemos Fuzzuês aos corações e mentes afro-brasileiros, para que os racistas tremam diante do som da nossa música e da nossa história de luta!
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