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Fúria Consciente e a continuidade da Saga Pan-Africanista!

Fúria Consciente lança o seu segundo disco nos dando de comer e alimentando o espírito da  cultura hip-hop !

“Cabeça erguida, bicão na diagonal, pros racistas entrar em danger é fundamental”

O grupo baiano Fúria Consciente nos ensina muito, e em seu novo lançamento nos auxilia a pensarmos o atual estado de coisas dentro da cultura hip-hop baiana e nacional. Haverá muito o que refletir ainda nas relações entre música e cultura hip hop em tempos de redes sociais, algoritmos, absorção e cooptação pelo mercado. Uma cultura de rua que neste momento busca se adequar, se adaptar aos ditames destes ambientes muitas vezes de modo cego, numa luta de todos contra todos, necessita de reflexão. A história, as bases teóricas e sobretudo os mais velhos, devem neste momento nos balizar de modo a constituírem e a nos orientar de modo crítico; através de muito pensamento crítico capaz de desvendar as armadilhas desses novos tempos.

Não se trata de uma volta ao passado, mas de uma avaliação dos erros, acertos, das contingências históricas que nos fizeram chegar até aqui, e de que forma podemos enquanto cultura organizada lidar com os novos desafios. O novo disco do grupo baiano Fúria Consciente traz no bojo das suas 14 faixas uma trajetória de mais de duas décadas de caminhada e luta. A Saga Pan-Africanista Prossegue (2021) chegou nas plataformas de streamings no dia 17 de junho, apresentando o longevo grupo com músicas que conjugam novas roupagens musicais sem perder o conteúdo lírico combativo, conquistado ao longo dos anos.  

São mais de duas décadas de vivência e construção político musical e cultural dentro da cultura hip-hop de Salvador, onde o Fúria Consciente conjuga como poucos a atuação dentro da cultura com a produção musical. Desde o começo como parte fundamental do movimento hip-hop organizado na Bahia, participando das reuniões da Posse Orí/Rede Ayê, o grupo do bairro da Itinga região metropolitana da capital baiana, fundou na sua quebrada a PCE (Posse de Conscientização e Expressão). Uma movimentação fundamental para a expansão e afirmação da cultura hip-hop dentro de sua comunidade e arredores, um trabalho que hoje colhe frutos significativos como modelos de militância pan-africanista, incubadora da cultura hip-hop e homens pretos.  

Toda essa caminhada gerou expertise e conhecimentos que são cada vez mais afinados em suas produções. E aqui nesse novo lançamento apresenta um tema motriz fundamental para pensarmos os processos de embranquecimento e opressão em nossas quebradas. Já na capa, há uma homenagem/denúncia de uma perda que tem se operado nos bairros periféricos de Salvador, com o imenso crescimento fascista de uma parcela dos evangélicos neopentecostais e sua cotidiana demonização das religiões de matriz africana. 

“Ordem é embranquecer, Bahia é desse jeito vidas negras não importam, artilharia pesada é disso que o Rui gosta”

Através da arte do grafiteiro Dufs e do designer de Ramon Thl, a capa faz menção ao famoso caruru de 7 meninos. Uma tradição ofertada por pessoas ligadas ou praticantes do candomblé, que ao longo de séculos fez parte das tradições e que hoje vem perdendo força. Mesmo a oferta de doces, às crianças no período das comemorações de Cosme e Damião, santos católicos que por conta do sincretismo, se tornaram associados ao culto dos Ibejis, tem sido amplamente combatido pela intolerância racista religiosa.  

Já aí, podemos notar como a arte visual do disco dialoga de modo inteiro com a cooptação e esvaziamento da cultura hip-hop que está no hype, no mainstream com poucas exceções. Yogi Nkrumah, Duendy I e Din são MC’s basilares na cultura hip-hop baiana não apenas pela qualidade artística, mas também por sua caminhada que ao longo de duas décadas percorreu literalmente todas as quebradas da cidade. Junto ao DJ Ivan, a dupla forma uma tríplice aliança das mais poderosas que a história do nosso hip hop conhece. Hoje o Fúria Consciente é formado, por além dos nomes acima citados, por Gean que fortalece no Backing vocal. 

Esse segundo disco que sucede a pioneira mixtape Manifestividade (2000) e o seu primeiro disco cheio Na Busca da Ampla Visão (2013), chega pesado, longo e todo trabalhado em novos timbres. O disco que começou a ser gravado no final de 2018, teve um longo percurso pela frente, o que ao nos depararmos com o resultado final, fez valer a pena. Processo que acresceu o albúm em participações e consequentemente em expansões de toda espécie.  Algo que a feitura rápida pique linha de montagem, certamente não possibilitaria. Ainda durante o processo de feitura do álbum, os caras lançaram o video clipe da faixa Blackout, que foi noticiado aqui no Oganpazan, leia aqui.   

Soltaram também esse vídeo da faixa É Hora de Levantar, confira:

São tempos estranhos esse em que vivemos, estamos diante de um momento onde a rapidez associada a vacuidade, a repetição de fórmulas de representatividade já devidamente cooptadas e esvaziadas de potência, dão muitas vezes o tom do sucesso. O que o Fúria Consciente nos apresenta é uma bacia de caruru, temperada com todos os anos de pesquisa, leitura e atuação dentro do hip-hop em chave panafricana. Quem tem mão que se alimente, pois o esquema fast-food não é a brisa aqui, são músicas para se divertir e sobretudo prestar atenção nas linhas. A atenção não linhas, nos beats, em como os coroas dialogam com novas sonoridades, servirão para que se entenda o que até aqui tem constituído a Saga Pan Africanista e como esta prossegue. 

“Bate cabeça vai, supera a demência, Bate cabeça evoluir sem perder referência”           

Em meio a muita relativização epistemológica, a escapismos circunstanciais e oportunos, a representatividades a trabalhar dentro da ausência de substância com palavras de ordem muito bem “embaladas”, o Fúria Consciente apresenta a “tensão afrocentrada”. Um disco de rap que não é feito para agradar o gosto médio, que visa orientar, provocar, criticar, pensar contra o que está em voga. Sem sinal algum de tiozinho do rap frustrado que critica o novo, o procedimento utilizado pelo Fúria Consciente é o de comunicar dentro da caixa de ferramentas atuais, sem perder a artesania conquistada enquanto mestres da nossa cultura. 

Ao longo de pouco mais de uma hora, o grupo vai na raiz do rap baiano e ição como Menelik (Júri Racional), Mr. DKO (Epidemia Clan), Donna Liu (rainha do nosso R&B), Funk Buia (Záfrica Brasil), Tom Bdp (Clan Periférico) e Born (S.A.N. Só Afrodescendente Nervoso). Porém, enquanto bons “mais velhos” nos trazem também as novas forças do rap baiano em nomes como: Wall Cardozo, Kaos MC, Natanael e Bulldog, crias da Batalha do Caranga em Itinga. Em um excelente intercâmbio com o sul da Bahia, o Fúria Consciente traz Mr. Lagos e Estela, pro disco.  Além de chamar pra jogo as palavras fortes daquela que deveria ser a nossa prefeita: Vilma Reis, uma das militantes fundamentais nas últimas décadas das lutas político-raciais em nosso estado e uma liderança inconteste – quer dizer, menos para a branquitude da esquerda baiana e para o artilheiro-mor.

Além de muita luta e crítica, muita gangueiragem de rua real, o disco também abre espaço para o amor preto no melhor estilo, crônicas de nossas comunidades, embalado em sonoridades, que passam por beats reggae, trap, samba-reggae, r&b, reminiscências do G-funk, tudo produzido pelas mãos do produtor Peter Doc B que é o responsável por materializar as ideias musicais do Fúria Consciente. Ideias que não são meros clichês de repetições de frases prontas, e prova disso é a música que nos apresenta o pouco conhecido “Levante do Joanes”. Uma das rebeliões feitas pela população negra no que hoje é a região metropolitana de Salvador, há mais de 200 anos atrás.          

O Fúria Consciente é sem dúvida alguma uma das ‘manifestividades” mais importantes da cultura hip-hop nacional, incorporando nossa história em diáspora, buscando conhecimento de nossas origens na terra de onde fomos sequestrados e apresentando tudo isso em altíssimo grau de intensidade e de conhecimento. São duas décadas de combatividade apresentando sem glamour algum nas  quebradas, em diversos estados, sua arte com uma força que o mercado e a rapidez dos ligeirinho não alcançam. 

“A Saga Pan-Africanista Prossegue, Vermelho Preto e Verde no Tag”

Comida temperada no ancestral, local de aproximação da comunidade, de fortalecimento mútuo, espaço onde nosso povo pode encontrar acolhida e alimento para o corpo e o espírito. A Saga Pan Africanista Prossegue é um disco que honra por demais a trajetória do grupo, ao mesmo tempo que acolhe, combate e joga a frente o atual momento de confusão mercadológica do rap nacional em geral, apresentando caminhos. O Fúria consciente colocou a bacia no meio do pano estendido no arraiá da cultura hip-hop, quem for mais esperto “vança” primeiro nos pedaços da galinha de xinxim, depois mete mão no vatapá, no caruru, no feijão fradinho, na cana, no milho branco, da banana frita, na farofa de dendê, os bolinhos de acarajé, tudo junto e misturado. Assim, estará alimentado e forte para prosseguir!

-Fúria Consciente dando continuidade a Saga Pan-Africanista!

Por Danilo Cruz

 

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