Faustino Beats, Um Monstro do Pântano – Sawa – Vibes, part. 2 (2020), terceiro disco do beatmaker e MC baiano nos coloca em perspectiva!
Há na música um pensamento que atravessa o seu desenvolvimento e que busca através de técnicas diferentes, de contextos distintos, e sobretudo inseridos em culturas diversas, uma busca de comunicar através da arte, idéias, sensações, percepções. Artistas diferentes, comunicam visões diferentes, isso deveria ser óbvio, mas não é. Num contexto onde o capitalismo precisa sempre transformar tudo em produto, artistas se curvam a fórmulas “vencedoras”, enquanto o público muitas vezes desejam “produtos” similares, não apenas em qualidade, mas na forma e no conteúdo ofertado.
Dentro da cultura hip-hop, há uma imensa divisão que ocorre na mesma proporção em que o rap aumenta em projeção no Brasil dos últimos anos. Há um certo modelo no qual se enquadrar para fazer sucesso, “virar” e diante de um cenário muito múltiplo em expressões, as formas e os conteúdos que fogem a essas fórmulas terminam ficando “nichadas”. Enquanto, talvez a maior finalidade da arte seja produzir um mosaico de visões, sentimentos, percepções que deem conta da experiência humana, nesse mesmo capitalismo que nos racha ao meio em nossas existências, numa sociedade dividida em classes, raças, gêneros e hoje globalizada.
A arte de Faustino Beats, guarda uma apelo emocional e está no caminho de desenvolvimento de uma arte que tem comunicado coisas muito novas, em termos de forma e conteúdo. O seu cantar/rimar/produzir tem expressado uma forma tateante – como todo artista que busca desenvolver um estilo próprio – de colocar pra fora suas vivências em ritmo e poesia, e tem alcançado resultados muito bons. A delícia de escrever sobre música é se aproximar de expressões diferentes e muitas vezes conflitantes com o gosto – esse tirano – e aprender a pensar e curtir artistas novos.
Conheci o Faustino como muitos, fazendo resenhas muito técnicas no youtube e rolou até um namoro para que ele entrasse no Oganpazan. Um pouco depois descobrimos que ele também era beatmaker e logo depois ele começou a soltar sons na internet. Salvador, a Bahia de modo geral possui uma cena muito rica musicalmente e no rap não é diferente. De 2016 até agora, o que podemos perceber é que Faustino Beats tem construído uma sólida carreira e sobretudo se inserido na cultura hip-hop através de um trabalho que se desenvolve se diferenciando do que estamos acostumados a ouvir por aqui.
Nós vimos o estouro de Nihil (2017), mas foi desde 888 (2016) que ele gritou-se Saitama preto e nesse meio tempo tem buscado na vida os desafios que estejam a altura do seu talento com as palavras e os sons. São quatro anos de uma correria que tem se mostrado elegante, fincada em sua terra e em suas vivências, O “nada” de seu primeiro sucesso nacional tem sido aos poucos preenchido com escura demonstração de amor a cultura, mas sobretudo com muita originalidade no que apresenta. Suas lovesongs não reproduzem aquele rami-rami chato, e sobretudo está sempre demonstrando uma visão política dos seus afetos, que dialogam muito bem com o momento do rap, acrescentando a “sua” receita sonoridades muito bacanas.
Há em Faustino um mix de sonoridades e sobretudo uma visão que transcende o rap e talvez parte disso venha de sua formação com o Metal, no qual já atuou em banda desde de 2011 nas bandas Sinnsyk e Flyde. Esse background em contato com o rap, r&b, trap, rock alternativo, pagodão e animes produz e nos dá algumas chaves para entender melhor as suas novidades. O seu primeiro trabalho cheio Kuro (2017) apresentava já um alguém com muita consciência de que sua busca, daquilo contra o qual sua luta estaria sendo travada, com a música. E como todo artista preto, a luta com os meios de expressão e por visibilidade encontram o racismo estrutural em nosso país seu pior adversário. Sem pisar em ninguém, conquistando as condições materiais, lutando com a saúde mental e sem utilizar isso como uma muleta, as verdades que lhe são caras, foram sendo ouvidas.
Uma pá de singles e um tempo após vem ao mundo o disco Vibes Vol.1 (2018) e é nessa ponte aqui que eu atravesso no entendimento da arte do Faustino. Parte de uma tetralogia, e meio caminho entre Kuro (2017) e Sawa Vibes Vol.2 (2020), é o Vibes quem nos ilumina para percebermos que estamos diante de uma artista interessado em produzir vibrações. Não aquelas good vibes oriundas de uma aproximação com brancos e com uma cultura fajuta de gratidão privilegiada, mas vibes que amplificam sua arte e suas vivências enquanto jovem negro dentro do rap.
Os amores, as visões sobre produção de arte, responsabilidade afetiva consigo e com o outro, perdas amorosas, a busca pelo diálogo, Vibes Vol.1 (2018) é o disco mais “meloso” do Faustino, apesar de “Kobe” e “Podepá” feat Duvini – por que a maldade também está presente sempre. Aqui ‘meloso” não é um adjetivo pejorativo, mas antes a percepeção de que é em Vibes onde Faustino melhor assenta sua visão melódica, onde melhor se pode perceber o cantor junto ao rimador e como esse artista está nesse momento conquistando seu próprio estilo, sem titubear!
Junto aos caras da Bonke Music, recentemente Faustino lançou dois EP’s que fazem parte dessa caminhada, e que mostra isso que acima mencionamos. Ouvir os dois trabalhos da Bonke, junto a Yan Cloud, Sico, Dactes e Nessa, mostra como o artista está consolidando seu estilo com muita singularidade, “sintetizando” suas vibes e mostrando elas com muita força. As fragilidades da vida de um jovem negro que busca romper padrões estéticos, profissionais, afetivos, mercadológicos, musicais, tem visto a fúria calma desse Samurai preto de Salcity.
Ouvir Faustino com calma, com respeito ao artista e buscando compreender o território que ele tem ampliado tem me feito muito bem, me impulsionou a perceber outras colorações de timbres e de melodias que não são/eram algo que me atraiam. Muitas vezes deixamos de ouvir algo não por considerar aquilo ruim, mas por não termos interesse naquilo. Tenho ouvido muito R&B nacional nos últimos meses, Alemar, Tay, Tatiana, e certos pontos da maravilhosa Bia Doxum, entre outros artistas. E essa aproximação foi fundamental para entender melhor o Faustino.
Todo esse trajeto nos trás até Sawa – Vibes, Vol.2 (2020) lançado recentemente pelo Faustinho e último ponto musical antes da conclusão de sua tetralogia. Esse “pântano” apresenta-nos o conjunto da biodiversidade que esse monstro tem construído, que aqui tem 7 faixas e as participações de Áurea Maria e Sico. A imagem do Pântano que a tradução do título nos informa não significa que você estará diante de sad songs, não consigo categorizar esse artista como um fazedor de música triste. Mas antes como alguém que entende que o mangue – nosso primo – dos pântanos são lugares pegajosos, charqueados, mas detentores de muita vida e de sua condição de reprodução. Sawa é isso!
E se ainda não dá pra falar em ponto alto, ou obra prima, por se tratar de obras complementares, é aqui que Faustino pisa com mais força nos corações. Essa pisada é feita com uma produção muito bonita, com basicamente tudo sendo feito por ele, com exceção da mix por Isaac Neves. Com exceção da faixa Kabuki – Visível feat Áurea, um grimezinho safado produzido pelo Hayllan Assis, onde os dois emulam uma divergência amorosa, com muita qualidade nas linhas e posições distintas, homem e mulher. Ouça a belíssima “Memória” e veja um cantor de versos singelos, emergir desse pântano, mesmo caso de Shinai – Casulo faixa que encerra o disco. Junto com Sico que abre o disco com audio numa conversa com o artista, fala-se de renovação, troca de pele, processo larvar, que muitas vezes parece interrompido ou não percebido por momentos de crise.
A faixa que abre o trabalho é uma aula e é extremamente convidativa a se conhecer melhor o trampo desse mano. Colocar fogo no Ego, falar em público das fragilidades que seu porte e tamanho não transparece, o beat produção sua, que foge do convencional um trap com batifum, tratar-se através da arte, isso lhe diferencia de quem usa a depressão e as próprias neuroses para vomitar nos outros o caldo sujo de si mesmo, como estratégia de marketing. A música Boro, Ego pt. 03, em termos de discurso deixa muito escuro em qual perspectiva Faustino se encontra e em consequência como sua arte se coloca diante da questão das doenças mentais e da arte.
A hipnotica “Foi o Q Ela Disse” fala-nos sobre diálogo sincero diante de problemas de relacionamento, outra produção que foge ao normal do que podemos ouvir no “nicho” em que produz o Faustino. Faixa que pode implicar confusões, “Demorou” fala sobre responsabilidade afetiva, em tempos de liquidez nas relações, e feridas abertas que podem se travestir de independência e liberdade. Em tempos onde muitos e muitas pregam uma liberdade que não assumem, ou dito de outra forma, uma liberdade que muitas vezes brinca com a alteridade. Em “Kevin – Cinza, Pt.3”, há uma espécie de complemento dessa questão, e trata de amadurecimento e de colocar as coisas em pratos limpos numa relação que se pretende saudável.
As produções do Faustino ao longo do disco são realmente desafiadoras, os beats e a mix e master que ficaram por sua conta, conseguem o feito de nos apresentar um trabalho transparente e ao mesmo tempo numa boa qualidade. A trilha que descrevemos acima, nos parece ser fundamental para compreender melhor o seu trabalho da mesma sorte que nos coloca na perspectiva de seu próximo trabalho. A valsa do Saitama Preto vai perdurar por muito mais tempo ainda, mas o que já existe é um excelente retrato em preto e branco dos tempos em que vivemos, e um postal bacana para entender a arte do Faustino!
-Faustino Beats, Um Monstro do Pântano – Sawa – Vibes, part. 2 (2020)
Por Danilo Cruz
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