Entrevistamos Eumir Deodato após seu show no Bourbon Street no último 21 de maio, quando o mestre mostrou que continua com o domínio absoluto do groove.
O músico brasileiro definitivamente mudou as regras do Jazz. O plano de fundo para esses acontecimentos era o prolífico (e visionário) cenário jazzístico do final dos anos 60 e começo dos 70… Nessa época, instrumentistas como Nana Vasconcellos, Airto Moreira, Luíz Bonfá e Hermeto Paschoal – e tantos outros – contribuíram em algumas das gravações que definiram os rumos do Jazz, seja ele com Funk, Fusion, Disco ou Bossa.
Discos fundamentais como o “Live Evil” – épico registro ao vivo, também com gravações em estúdio – lançado em 1971 por Miles Davis, carregam o nosso DNA, e não é só por que contam com a percussão de Airto Moreira ou as linhas de teclado do Hermeto, o homem de gelo. Colocar esses nomes na mesma frase e citar gravações como “Jacarandá” – clássico absoluto de Luiz Bonfá, lançado em 73 – significa adentrar um universo onde toda a miscigenada cultura brasileira encontrou um território neutro (Jazz) para experimentações.
Foi um período de grande liberdade criativa e que possibilitou uma mudança de perspectiva muito grande. O Jazz como linguagem expandiu de tal maneira que era difícil conseguir classificar os discos, tamanho o seu leque de influências e o caráter globalizado de gravações que promoviam encontros entre nomes como o do baterista panamenho Billy Cobhan e o austríaco Joe Zawinul.
Foi um período que representou um dos picos criativos do estilo e que devido ao seu grande caráter exploratório, impactou diversas vertentes. E a maior prova disso é que mais de 50 anos depois esse assunto segue relevante e talvez seja um dos motivos pelo quais mestres como o Eumir Deodato ainda lotem salas de concerto em todo mundo.
Um dos maiores compositores, arranjadores e produtores da história do som, o carioca Eumir Deodato fez muito pela música. Os uivos do seu lendário Fender Rhodes Mark I arrepiam a espinha de muitos admiradores desaviados do groove.
Sua aguçada percepção o fez trabalhar com uma gama de músicos e diferentes estéticas. E mesmo após mais de 50 anos de carreira, sua lírica segue tão relevante como o trabalho de Frank Sinatra, Aretha Franklin e Wes Montgomery, apenas alguns exemplos dos mestres que já requisitaram seus arranjos.
E para celebrar uma carreira brilhante, o músico foi a estrela do Bourbon Street Jazz Nighsts. Em show realizado no dia 21 de maio de 2019, Eumir Deodato fez sua estréia nos palcos do Bourbon Street e conduziu um belíssimo espetáculo ao lado de seu quarteto.
Line Up:
Marcelo Mariano (baixo), Bernardo Bosisio (guitarra), Orlando Bolão (percussão) e Renato Masssa (bateria).
Foram 90 minutos de rara beleza. Um momento que reuniu pessoas com aspirações musicais e não musicais muito diferentes entre si, tudo ali, sob o mesmo teto do Bourbon e seus mais de 25 anos de história. Olhei para o lado e um dos espectadores mais perplexos era o DJ do Racionais, KL Jay. Só isso já mostra um pouco do privilégio que é ver o Eumir Deodato ao vivo.
Por que mais do que o seu extenso currículo – que segundo o próprio “está perto de romper 500 gravações” – assistir o seu show é sempre um riquíssimo exercício de percepção que parece encurtar as distâncias entre os estilos… Na terça-feira do dia 21 de maio, Eumir Deodato mostrou para o KL Jay, que o Hip-Hop está logo ali.
Primo do Funk que ele tanto groovou ao lado do Earth, Wind & Fire e do Kool & The Gang, o roteiro do show foi tão desafiador quanto o sempre atual repertório do tecladista. O tempo passou mas ainda assim é a mesma coisa: quando temas como “Super Strut” começam a tocar não resta pedra sob pedra. Está pra nascer um meliante que não ouse bater o pezinho enquanto as curvas de sua versão de “Rhapsody In Blue” – do compositor americano George Gershwin – começam a reverberar.
Sua banda acompanhava e recriava seus intrincados arranjos enquanto Eumir Deodato destilava o marfim malhado com uma calma digna de um monge budista. Entre pausas pra falar sobre a sopa de feijão preto de sua avó, o mestre ainda relembrou alguns momentos de sua carreira e até citou alguns trabalhos realizados ao lado de artista como Bjork e Marcos Valle.
Está pra nascer um músico que segure esse groove aos 75 anos de idade e ainda faça isso com a mesma facilidade que esse gigante da música brasileira. Foi uma noite memorável e tão soberana quanto as linhas de baixo de Marcelo Mariana, filho do também arranjador e pianista César Camargo Mariano. Nas guitarras, Bernardo Bosisio mostrou muito feeling e controle de seu instrumento para recriar as texturas do repertório mais endiabrado de Eumir Deodato, enquanto a percussão e a bateria promoviam contrapontos rítmicos para o riquíssimo Jazz do arranjador.
É até difícil ter que se despedir do Eumir. Residente nos Estados Unidos há décadas, seu talento agora reside na Flórida e nós aproveitamos sua passagem por São Paulo pra trocar ideia sobre groove, Jazz e entender um pouco mais sobre o infinito particular de um dos maiores nomes da música.
Entrevista
Guilherme Espir: Eumir, a contribuição do Brasil no Jazz foi muito importante. Quais características que músicos como você e o Airto Moreira, por exemplo agregavam ao som e que despertaram esse interesse internacional pela nossa música?
Eumir Deodato: Boa noite. Então, Guilherme, com o fim do vinil, apareceu o CD. Uma película de plástico fino… As definições exatas eu não sei passar pra você, pois nunca trabalhei com isso, caso contrário eu explicava, mas em suma, hoje a indústria está ruim.
Os presidentes das companhias não investem mais. Acho que até mais do que esse pessoal que você citou – que inclusive são todos amigos meus – é falta de investimento, então acaba que a situação fica da maneira que está. Mudou o governo e não existe mais investimento em cultura para o grande público. O Brasil é um país muito grande e diverso, você tem desde o Sertanejo até o Forró, mas parece que mostrar isso agora não é importante.
O mundo está muito estranho. O Airto Moreira que você mencionou é um grande amigo. Depois ele foi pra Califórnia com a Flora (Purim) – sua esposa – e não soube mais dele. Mas acho que a maior questão é o investimento que hoje já não é o mesmo de antes e que só se mantém graças a empresas sérias como o SESC e por que nós – Airto e etc – sempre nos preocupamos em fazer coisas que remetessem ao Brasil.
Você vê, apesar de tanto tempo trabalhando e morando fora, eu não troquei minha nacionalidade. Acho que essa é a grande diferença.
Espir: Ainda nesse contexto, os Jazzístas gozaram de uma liberdade criativa muito grande no período. Como que foi esse período de experimentação quando vocês chegaram nos Estados Unidos? Tem até uma história engraçada envolvendo os experimentos da época. O Zappa queria que o George Duke utilizasse sintetizadores, mas ele terminantemente contra. Mesmo assim, o Zappa foi lá, comprou os equipamentos e acoplou nos teclados do George e ele disse que não usaria. No dia seguinte bem cedo o bigode chegou no estúdio e o Duke estava virado com os brinquedos novos hahaha
Eumir Deodato: Sim (risos)! o George Duke era muito bom. Um estilo muito bonito, coisa de Jazzista mesmo. Ele era meio estranho, mas era muito bom e fazia um trabalho muito rico e interessante, principalmente com influências da música brasileira que ele tanto admirava.
Eu conheci ele num festival que tocamos juntos. O James Brown também estava no meio e eles adoraram o conjunto. Quando eu saí do Brasil eu encontrei o Hip- Hop né – é assim que eles chamam – e englobava o Funk também, foi um período muito interessante para os músicos.
No Brasil teve esse movimento com bandas como… É muito nome pra lembrar (risos)
Espir: Banda Black Rio?
Eumir Deodato: Sim, eles tocavam Funk, mas falavam que era Jazz! E sabe por que, Guilherme? Principalmente por que vendia muito. O Odisseia no Espaço foi assim. Outro exemplo disso é “Aquarela do Brasil”, do Ary Barroso. O Lyrio Panicali – maestro, arranjador e pianista carioca – também, meu padrinho musical, é outro exemplo.
Espir: E como você vê o atual momento do Jazz moderno, Eumir? Você tocou no Floripa Jazz, conseguiu ver alguns shows dessa galera? O Joshua Redman (saxofone) tocou por lá, também.
Eumir Deodato: Não sei, eu tenho dificuldade com o Jazz moderno. Não assisti ao show do Joshua Redman. Eu to bem rouco ao telefone, deve estar difícil pra você ouvir a minha voz, mas isso aconteceu por que eu fiquei gripado e tudo isso foi bem perto do show, então não consegui vê-los, mas eu não sei.
Falam de Jazz moderno e eu lembro do Keith Jarret (pianista). Ele está tocando melhor agora, mas eu tenho medo desse Jazz. Sabe qual é o melhor lugar pra escutar Jazz, Guilherme? No cemitério, sabe por quê? Por que vai estar escrito lá, aqui Jazz fulano, aqui Jazz ciclano, sabe? (risos)
Espir: É o castigo do Jazz moderno?
Eumir Deodato: Talvez hahaha
Espir: E como que foi sua chegada nos Estados Unidos, Eumir, como surgiu esse convite?
Eumir Deodato: O Luiz (Bonfá) que me chamou. O filho dele, inclusive, o Otavinho, está na Califórnia. Nessa época tinha gente tirando música dele. Botaram advogados pra pressionar… Eu arranjei muita coisa pra ele e a mulher dele, a Maria Helena. Nossa, que pessoa maravilhosa, uma ótima cantora também e que o Brasil aceitava bastante.
Na época então ele me chamou e eu fui. Fizemos grandes coisas juntos.
Espir: Sim, eu ficava impressionado com a qualidade dos músicos que tocavam nos discos.
Eumir Deodato: Sim, tinha muita gente boa.
Espir: O Jacarandá foi um disco muito importante pra mim.
Eumir Deodato: Sim, uma grande gravação. Ele só tocava com os melhores, caras como Stanley Clarke (baixista) que também foi meu baixista uma época, enfim, era um grande violinista.
Espir: Pra fechar, gostaria de agradecer pela oportunidade e pelo tempo.
Eumir Deodato: Que isso, eu que agradeço, Guilherme e desculpa pela minha voz, mas eu estou rouco então espero que você tenha conseguido me escutar bem (risos).
Espir: Eu como grande admirador do groove e do Funk, queria que você falasse um pouco do seu trabalho arranjando bandas como o Earth, Wind & Fire e o Kool & The Gang.
Eumir Deodato: O Kool & The Gang, bom, eles ouviram meus discos e tentaram falar comigo. Eles adoraram e pediram pra eu produzir, mas nessa época eu estava gravando meu disco e nós estávamos no mesmo estúdio, mas sabe, eu não tinha como fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Falei pra eles que precisava esperar, mas eles falaram que não e que estavam querendo um som mais Jazz. O guitarrista deles era bom (Clydes Smith). Tinha um balanço, sabe? Aquela coisa que os americanos chama de “layback”, aquele sabor. O problema deles era o líder da banda o saxofonista (Dennis D. T. Thomas), ele era muito bom, mas queria Jazz o tempo todo.
O baterista deles (George Brown) estava falido. Ninguém podia falar nada por que eles estavam envolvido com mafioso. E eu tinha que acabar meu disco, ai você vê, foi uma grande confusão. No final das contas eu acabei trabalhando com eles por 5 discos, mas era bem difícil fazer o guitarrista e o saxofonista se entenderem.
Os botões do sax que você aperta são afinados num certo tom. As orquestras sinfônicas e etc, seguiam isso, mas o guitarrista sofria, coitado, por que assim você perde o som das cordas soltas. O problema era a nota e o tom do sax, imagina isso?
Ninguém aguenta, aí eu botei ordem nas cordas, imagina o trabalho que deu. E a gente não podia reclamar né, imagina você reclamar pra um mafioso (risos).
– Eumir Deodato: “eu tenho medo desse Jazz moderno”
Por Guilherme Espir
Fotos de Welder Rodrigues