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Eu queria ser Mestre Cabo Del da Timbalada! “Oh timbaleiro cadê o timbau?”

Cabo Del foi um dos grandes nomes dentro do exército de timbaleiros, que esse ano completam 30 anos de história, nossa homenagem!

 

“Eu giro o mundo
E o mundo gira o vento
Eu sou
Eu giro o mundo
E o mundo gira o tempo
Eu vou
Eu giro o mundo
E o mundo tem um som
De um toque do tambor
Que rufou
No Candeal do peito meu
E mostrou
No ritmo o sangue e dessertou”

Os anos 90 foram essenciais para minha formação e a Timbalada, uma expressão fundamental para que eu entendesse meu lugar no mundo, em pleno começo da adolescência. Se hoje, meu corpo vibra e se arrepia ao ouvir tambores e sou capaz de seguir a groovada dos meus alunos, sem passar muita vergonha nas festas da escola onde trabalho é por já ter me emocionado daquela forma, é por causa da experiência com os discos e apresentações da Timbalada, que me deixou marcas profundas. Se você viveu os anos 90 em Salvador em qualquer idade que seja, os tambores da Timbalada provavelmente se configuraram em experiência indelével na sua vida, também. 

Minha primeira experiência de ler ficha técnica de discos foi com o disco de estréia da Timbalada (1993) tentando gravar e identificar os nomes daquela grande quantidade de músicos presentes no disco, nomes de Fialuna, Mestre Pitada do Bongô, Coelhinho, Augusto Conceição, Alexandre Guedes e mais uma pá de super artistas que estiveram naquele momento construindo a Timbalada. Ouvir o disco de estréia, pouco depois poder acompanhar alguns ensaios da banda no espaço onde se construía então o Cidade Jardim, pela tarde, me deu uma sensação de querer participar de algo sem necessariamente ser a estrela de destaque. 

 Nesta altura eu já estava devidamente familiarizado com o samba junino, e mais do que o vocalista, eu começava a gostar do bloco percussivo que era construído pela junção linda de muitos pretos talentosíssimos, com sessões de instrumentos diferentes em uníssono e o mais importante, groovando de modo irresistível. 

Somente depois de muitos anos, quando abandonei a “carreira artística” pelas diversas voltas que o mundo dá, é que pude entender que muitos dos músicos e talvez a própria configuração rítmica que Brown criou com a Timbalada, muito vinha dos sambas juninos. Sim, o samba junino é o rico território onde Carlinhos Brown recrutou grande parte dos timbaleiros, seja com os percussionistas seja com o grande vocalista da banda, o homi que fazia o bagulho ferver de verdade: Ninha!

“No bagaço da cana, oração oxalá, êêê A, sou menino de rua esperando o sinal”

Eu conhecia Lu de ver passar, era um preto bonito já meio coroa para minha visão de uma criança de 12 anos, tio dos meus parceiros Márcio, Nino e Mauro. Pouco tempo depois, Lu virou Lombinho, para mim pelo menos, integrante da Timbalada e meu primeiro professor de percussão. As aulas se configuravam com a gente vendo Lombinho malhar as convenções no timbau pintado com frutas no quintal da casa deles, com uma toalha em cima para abafar o som e depois tentávamos repetir no muro da casa onde morava. E meio que já nos achávamos, não apenas por ter acesso a informações privilegiadas e em primeira mão, mas também porque já tocávamos as músicas direitinho. Em tempo, Márcio (Harmonia do Samba) e Mauro se tornaram percussionistas profissionais,  

Mas toda soberba será castigada e tomei minha primeira porrada em se tratando de ver grandes músicos, não muito longe dali. Era festa de período junino e  como eu e meu broder Gel, que morava na mesma rua e estudava na mesma escola que eu, tocávamos timbal, meteram a gente pra tocar numa festa pra fazer um samba duro, bateu certo, enquanto uma rapaziada tentava subir num pau de sebo. Favela estava em festa!

Nessa brincadeira gostosa, a dupla que dividia um timbal metendo um groovinho e pensando que éramos sucesso puro na favela, até que chegaram dois neguinhos iguais, eram irmãos gêmeos: Dú e Jó. Os pivete entupiram a gente metendo só os groove sinistros no timbal, enquanto eu e Gel nos entreolhamos sem acreditar naqueles alienígenas 4 anos mais novos do que a gente estavam acabando com nosso brinquedo, destruindo a nossa empolgação e de certa forma nos aposentando pra sempre. Depois descobrimos que esses dois gênios,  eram filhos do dono do Samba Mulato no Alto do Saldanha. Infelizmente o Jó não vive mais entre nós, mas será sempre o grande percussionista que eu vi anos depois na casa de um tio meu em Aracajú tocando com Caetano Veloso junto com seu irmão e pensei: já fui parceiro de gig desse mano!

Pouco tempo depois, minha mãe me levou para uma competição nas cajazeiras, que era um desfile foda com os samba juninos da época. Cada grupo apresentava sua música bagaçando no groove e depois tinha o julgamento, pelo que lembro. Eu não lembro quem ganhou mas nunca esqueci da galhofada no busu e muito menos das apresentações. Gente preta feliz, garrafa passando de mão e mão e eu ali, presenciando essa força imortal, comunidade preta!

“E, saudade me traz você, tá na rodinha vem namorar, nesse pisar de barro vou raiar, vou raiar na Timbalada”

A Timbalada crescia em popularidade em Salvador, e o disco Timbalada (1993) tava estourado demais. Ao ponto de no primeiro dia do ano escolar de 1994 eu estava com meu bonde na escola tocando Beija Flor num carro infeliz por ter estacionado na frente da escola, que certamente ficou cheio de mossas. Era muita moral, saber tocar as convenções, e puxar os grooves, no fundo do busão então, as cadeiras e a estrutura nos proporcionavam um kit completo de percussão. 

Minha sorte e grande inspiração ainda estava por vir, e ela se deve muito a um parceiro que começou a estudar neste mesmo ano lá na escola, infelizmente não lembro o nome dele. O fato é que o pivete morava no Candeal e além de ter mais informações privilegiadas de quem era da comunidade, de quem vivia o bagulho real e de pertinho, ele tinha um chamado secreto que não sabíamos, que não aprendemos nas malhações de Lombinho. E foi esse chamado, o ponto decisivo, a abertura que me faria guardar o nome de Cabo Del pro resto da vida. 

A Professora Tânia, uma das melhores professoras que eu já tive, inventou de que tínhamos que fazer uma apresentação na escola sobre a Timbalada. A gente passava vários minutos na sala batucando e isso atrapalhava as aulas, mas não da professora Tânia Maria de geografia, que dava uma de mestre de bateria e guiava o groove, e assim controlava a bagunça. E como todo novato o mano que citei em cima ficava na dele, mas ele terminou no sorteio sendo escolhido pro mesmo grupo de apresentação que eu. 

No dia do ensaio ele deu a letra: “Pivete, essa convenção do início de Canto pro Mar é do Cabo Del!” e é assim, e largou o doce no timbal. As bocas caíram e rapidamente aprendemos a convenção e porra, botamos pra fuder na apresentação. Ele trouxe camisas com a mesma estampa que os timbais tinham, os desenhos de frutas. A gente, finalmente brilhava sem disputas desiguais pra nos fazer calçar as sandálias da humildade.   

“Toque de Timbaleiro sacudindo o mundo inteiro, foi criado na Bahia, saudados os orixas, tambor, ijexás, candomblé, reggae, magia”

Meu sonho era ir no ensaio da Timbalada, mas o que rolava na época era ligante e tiro de vez em quando no chão de barro onde rolava os ensaios no Candeal. Eu tinha apenas 13 anos e minha mãe não deixava nem com a porra que eu fosse, porém o que seria a adolescência sem desobediência né? Um dia a prova acabou cedo e esse parceiro mais uma vez abriu um portal: véi, vai rolar ensaio da Timbalada daqui a pouco, umbô? Oxi, corremos pra lá, pra ver um ensaio da banda inteira. Descemos a ladeira da Cruz da Redenção e chegamos na parte de baixo do Candeal onde ainda se construíam os prédios que hoje formam o Cidade Jardim, por quem chega pela avenida ACM.

Da esquerda pra a direita: Cabo Del, Xexéu, Patricía, Augusto Conceição e Alexandre Guedes

Nesse dia eu pude ver o Mestre Cabo Del, comandando mais de 150 timbaleiros, certamente meus olhos brilhavam, o boné de jogador de vôlei de praia, os comandos, e eu de parte vendo aquilo tudo e vidrado, achando tudo lindo e a partir dali querendo ser ele. Cheguei em casa e dei a sentença: “Mãe, eu quero ser timbaleiro!”, não rolou aquela sequência de risadas como no clássico episódio de Todo mundo odeia o Cris, mas foi mais seco: “Oxi menino, deixe de coisa”.

Em 1995 eu fui morar no Parque São Cristovão, o que conjugou estranhamente o momento mais feliz e o mais triste da minha adolescência. A equação era a mais deliciosa do mundo, jogar bola de manhã, de tarde e de noite, tomar banho na represa do CIA e depois acabar com as mangueiras da região para matar a fome. Mas junto a tudo isso, exatamente na rua onde fui morar tinha uma banda de percussão – “olha a minha grande chance aí, pensei na hora”. Zé Colmeia, Tripa, Junior, Beto, Arrastão, Cesar, Everaldo Cabeção, Mário e Pingo, Simone e o mestre Boca Mole, que adorava cantar Morena Tropicana de Alceu Valença nas apresentações e era vítima de chacota da ala mais radical da banda. 

Nessa época,Cada Cabeça É Um Mundo (1995) era o disco recém lançado pela Timbalada, e que eu e Pingo tiramos de cabo a rabo, desta vez no meu quintal, com meu timbal e sem toalha. A banda porém, se aplicava em reproduzir as células do samba reggae mais clássico, Olodum basicamente, o que obviamente eu também amava, mas tanto eu quanto Pingo que era uns 8 ou 10 anos mais velho, queríamos tocar aquelas músicas, fazer aquelas viradas, etc. Nunca conseguimos convencer Boca Mole a incorporar timbais na banda, porém, fazíamos umas arruaças na rua com dois timbais, e uma marcação e nos divertíamos.

“Timbalada, leva eu, timbalada, leva eu com meu amor”   

Havia as apresentações em Mussurunga, nosso único palco externo ao Parque, e era maravilhoso, as paqueras, tomar paraíso (uma bebida que rolava) e ficar disfarçando pra não chegar em casa com bafo de cachaça. Uma espécie de paraíso na terra, feito de futebol, música, caruru de sete meninos, roubar fruta, favela sem guerra de tráfico, somente de mamona e jureba no badoque. A alegria que a Timbalada vinculava, o seu groove intrincado, suas poesias eram nossa trilha sonora e de algum modo o próprio ritmos de e variações, improvisos de tudo que vivíamos, sofrimentos inclusos. A velocidade rítmica e o bom humor de “Camisinha”, talvez seja a música tema desse começo de juventude , desse período onde os mergulhos na roleta eram dados para descer em Piatã e curtir uma praia com os parceiros. 

Minha mãe morreu pouco tempo depois de um período de um ano nesse contexto delicioso, me empurrando para outros caminhos, distantes de Salvador. Mas a percussão vive em mim, assim como minha mãe, e me empurram, me incitam a viver a cada dia e a improvisar quando querem quebrar meu ritmo. E de certo modo, a vida tem sido vivida como a música, onde o tempo não cronometrado é o que importa, onde a duração necessita dos outros para dar certo e não sair do ritmo, em certo sentido, em um processo de desindividualização apra fazer parte de algo que pulse mais forte e junto.

Esse ano, a Timbalada está comemorando 30 anos, e certamente essas são as principais lembranças que tenho do lindo trabalho inicial deste grupo que foi fundamental para a renovação da música percussiva em nosso país. De lá para cá, se passaram muitos anos, e a própria banda mudou muito, hoje o mestre Cabo Del não faz parte do grupo, e eu sigo aprisionado nos anos 90 da Timbalada, é lá que eu vivo melhor a potência musical que naquele momento explodiu com uma força inaudita.

De lá pra cá também, o mestre tocou e ajudou diversos nomes da música baiana com sua experiência e expertise, e segue levando seus batuques à frente, cultivando a ancestral arte dos tambores, mais especificamente do timbal. Um dos muitos mestres que possuímos em nossa cidade e meu modelo maior. Um dos nomes fundamentais da Timbalada, mas que em nosso país não é valorizado, pois não se cultiva o hábito de saber quem são os músicos que tocam nas bandas. A Timbalada possuia e ainda possui diversos excelentes percussionistas, e dentre escolhi o mestre Cabo Del para ilustrar minha homengam aos 30 anos da banda.

Deito respeitosamente minha cabeça nos seios de Patrícia e durmo, sonhando com aquela época, por um momento tudo são risos e choro de alegria e saudade, a memória chega com a força de 300 timbaleiros sacudindo minha cabeça. 

Sigo querendo ser o Cabo Del!

-Eu queria ser Mestre Cabo Del da Timbalada!

Por Danilo Cruz

 

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