Eu escuto Bill Evans e vejo bailarinas. Um ensaio poético sobre os discos do trio formado por Bill Evans, Scott LaFaro e Paul Motian
Vocês também imaginam coisas enquanto escutam música?
Não deu a louca no editor não, é só uma perspectiva.
Se liga: agora faz um dia lindo e eu admiro a janela enquanto batuco as teclas. Está claro, o vento refresca um fim de tarde bem azul e o céu está econômico, com poucas nuvens. (Quem vê até pensa que sou a Maju Coutinho).
O dia surgiu com aquele brio capaz de energizar o meu atabalhoado quarto, imerso em copos, cinzeiros, folhas de papel e petiscos estrategicamente posicionadas na gaveta da mesa.
No play rola um Bill Evans – e ainda que sempre impactado pelo ambiente externo de alguma forma – sou levado pelas nuances enebriantes, num passeio tim-tim por tim-tim, por todo repertório que Bill eternizou ao lado de Scott LaFaro (baixo) e Paul Motian (bateria).
Na mente imagino uma bailarina, valorizando cada passo em sua elaborada e gentil coreografia.
Enquanto ela segue seu cronograma, o piano parece insinuar seus sutis, porém complexos movimentos. A bateria dá ritmo a esse pulso e o baixo cadencia os respiros entre um passo e outro.
É entre um plie e quiça um relevé que o colorido do pianista inunda o cenário e conforme os discos entram pela tangente do Jazz, o que era apenas uma miragem se transforma num verdadeiro espetáculo filmado pelo Scorsese.
Ouvi o “Portrait In Jazz” (1960) – primeiro disco de Bill com esse trio – e vi não só uma bailarina, como pude vislumbrar meia dúzia. Ouvindo “Autummn Leaves” você entende por que os corpos não só podem, mas devem flutuar.
A poesia em movimento, fazendo um tributo dividido em atos capazes de ilustrar tamanho oásis imagético. Quando o ouvinte repara já estamos em 1961 (ao som de “Explorations”) e as bailarinas dessa vez balizam seus corpos – com sexy escárnio – frente as teorias de Newton, num misto apaixonante de graça e destreza.
Faz você sonhar. Acordar com aquela aura cativante e singela que torneia o caminhar de “Israel”. A bateria suprema na vassourinha (alô puristas!), e o rabecão de timbre imponente, profundo, sustentam a excelência do Jazz e um novo patamar criativo para um trio no contexto do groove.
O sentimento, a melancolia, leveza…. A sensibilidade dos grandes compositores, capaz de fazer o ouvinte prender a respiração ou até mesmo dar um branco na sequência desse ballet sinestésico.
Bill sempre parece atingir o cerne do ser humano. Aquelas notas que pegam fundo, mas com uma abordagem tão serena quanto uma pena bailando ao vento. Pode ser ao vivo no Village Vanguard (“Sunday At Village Vanguard, lançado em 1962”), ou em estúdio, tanto faz.
Com Bill, Scott LaFaro (baixo) e Paul Motian (bateria), Evans criou um universo particular. Nas gravações ao vivo ele ia aos céus e voltava. As bailarinas podiam dançar em qualquer palco do mundo, bastava apenas imaginar. O ao vivo no Village é um Santo Graal.
Na meca (o set gravado dia 25 de junho de 61), mostra o trio tocando como se tivesse descoberto tudo sobre a vida. Você sente a paixão e o pesar, emoldurados com a malandragem e o sentimento que lhe faz perder a fala. A expressão é magnífica e o encanto termina – ainda que com um final trágico – totalmente inserido no último ato desse ballet Jazzístico.
Dramático e real, “Walts For Debbie” (1962) fecha esse ciclo de plenitude musical, misturado com o Jazz e o auge da humanidade. O baixista Scott LaFaro morreu 11 dias após a data do já citado show ao vivo no Village. Acidente de carro fatal, ocorrido no fatídico dia 06 de julho de 1961, ali pelas quebradas de Flint, Nova York, apenas 4 dias depois de uma gig com o Stan Getz no Newport Jazz Festival.
Bill ficou meses sem tocar depois do ocorrido. Nessa hora as bailarinas param de dançar.
Mas é possível reconhecer, ainda que em silêncio – e um pouco de luto – como essa música é libertadora e lúdica. Esses 3 senhores foram brilhantes e ainda que “Waltz For Debbie” seja um adeus, ele é contundente, emocionante e tão definitivo quanto um tratado, assim como os outros 3 trabalhos que esses senhores registraram juntos. A interação, a cooperação… É quase telepatia. Não tinha jeito melhor de finalizar essa quadra de trabalhos fundamentais: ao vivo é onde tudo acontece e aqui o set é novamente sob o palco do Village.
Nessa hora a plateia aplaude e as bailarinas surgem esgotadas – mas com a mesma luz própria que Bill eterniza “My Foolish Heart”.
Com os corpos doloridos, recebem palmas vibrantes e aquela energia quase cósmica da interação com o público parece estabelecer o mesmo elo inexorável da cozinha, formada por Scott e Paul.
Elas saem do palco, prontas para descansar após uma noite triunfal.
O palco está vazio agora.
Eu… Bom, eu acho que estou ouvindo muito Bill Evans.
Mas vai falar que você não viu nenhuma bailarina? Nem mesmo a silhueta?
Talvez eu precise desenrolar uma ideia com a minha terapeuta, acho que deu Jazz. Menino Bill Evans que o diga. É quase uma formação de quadrilha. Eu, Bill Evans, Scott LaFaro, Paul Motian e mais 12 senhoras do ballet Bolshoi. 2 trabalhos de estúdio e duas pedras preciosas ao vivo.
Polainas in Jazz.
Agora eu entendi o fascínio do Degas.
-Eu escuto Bill Evans e vejo bailarinas
Por Guilherme Espir