Quimera e Pocas são dois EP’s de transição do Matéria Prima, lançados em 2014 e 2016, respectivamente, guardam excelentes pérolas!
Dando prosseguimento a sua carreira solo, Matéria Prima lançou dois EP’s que podemos considerar trabalhos de experimentação e sobretudo de transição ao que viria a ser o seu álbum de estréia. Dois anos depois de Material de Estudo (2012) vem à luz um pequeno EP composto de apenas três faixas: Quimera (2014) com produção do Coyote Beats. Pequeno no tamanho mas um trabalho muito interessante que veio também complementar intenções que não foram executadas no primeiro EP.
Nessa altura, tendo participado timidamente do primeiro disco da Zimun, Castilho & Zimun, o poeta sentiu a necessidade de colocar algumas coisas pra fora. Ano de extremos no país, com um contexto político que só iria degringolar, nos parece que a imagem do monstro mitológico com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, é bastante exata para marcar os absurdos que iríamos a presenciar.
As produções deste trabalho ficaram por conta do então jovem Coyote Beats, ainda um jovem desconhecido no cenário que naquela altura tinha começado a produzir. Nesta toada, a vontade de colocar ideias para fora casou-se com experimentações em cima das produções do Coyote e tivemos assim o nascimento de Quimera (2014). Sobre a escolha do Coyote para o trampo o Matéria Prima nos conta:
“Coyote era um maninho que andava de skate com a gente e é filho de uma amigo nosso das antigas do skate o Doca, e ele começou a fazer beats uma época e tava bem no começo. A gente começou a experimentar os trabalhos dele e conseguimos depois de muito tempo fazer um registro depois daquelas músicas que temos no Material de Estudo”
Reconstituir um obra como a do Matéria Prima é um exercício muito intenso, pois mesmo em trabalhos “menores” há uma riqueza ìmpar, pois conjuga arte, vida e política de um modo muito próprio.
“Para ver o mundo sem crise que eu quisera, para parar de ficar pensando quem dera, e isso deixar de ser uma quimera, pra que se acabe toda a miséria!”
A faixa que abre a tríade e nomeia o trabalho: “Quimera” segue firme a linha de baixo, incrementada com as batidas de um boombap seco e mais reto, preenchido por samples muito bem sacados. Linhas políticas, letra atual e ao seu modo prenunciando os absurdos que vivemos hoje, conjuga também um forte desejo de mudança. Expressão de um momento político conturbado em nosso país, do desejo de mudanças mais profundas do que as que vinham sendo “progressivamente” implementadas, sem contudo mexer nas estruturas.
A poesia declamada sobre base atmosférica “Fossa” é um retrato muito bem feito e novamente prenunciando uma “reação em cadeia” que tomou as ruas do país e seria cooptada. A fossa que é denunciada na poesia ao invés de se transformar na força de mudança desejada, dali em diante transbordaria. Hoje, nadamos nos rescaldos dessa fossa que hoje nos colocou em queda livre dentro de um poço sem fim. O EP se encerra com um remix da faixa “Alucinações” lançada dois anos antes no Material de Estudo (2012) e que ainda hoje faz todo o sentido!
O trampo solo do Matéria Prima nesses primeiros anos, vinham de dois em dois anos, Material de Estudo (2012), Quimera (2014) e por fim Pocas (2016) fecha a tríade de EP’s. Do ano seguinte em diante, veríamos um disco por ano, com um produtor assinando todas as produções. Podemos perceber que nesse período que vai de 2012 até 2017 era o período onde o trampo com o Zimun fluía intensamente. Em “Pocas” temos um trabalho sui generis, feito com um proposta definida e visando desafogar a veia criativa.
Como o título do EP sugere Pocas (2016) é um projeto constituído de versos livres, conversando com o artista ele nos conta de como surgiu a idéia do projeto:
“Eu tava sem escrever há muito tempo, aí eu vi um som do Don L chamado Giramundo que era um verso livre, e eu tinha vários versos livres escritos, e eu pensei, não vou esperar esses versos se tornarem uma música de três minutos!”
Ao longo das 6 faixas Matéria Prima consegue imprimir sua marca singular e nos traz de presente inserts muito bem sacados do grande poeta Miró da Muribeca. Os beats são do El RTNC, produtor americano que o Matéria Prima descobriu no bandcamp e utilizou suas bases! Sobre essa escolha ele nos conta:
“Eu resolvi fazer o EP e nesse período tava muito difícil ter beat, tava muito difícil a minha comunicação com os beatmakers, aí eu peguei uma mixtape do Mf Doom chamada Special Herbs, testei alguns sons nos beats dele e não consegui encaixar os versos ali. Aí apareceu um produtor o El RTNC que tinha uns discos no bandcamp que era um bagulho tudo tortão que eu aprecio bastante. Comecei a testar e tudo bateu, e nesse EP tem beats desse produtor e do Flyin Lotus.”
“Dominando a palavra antes que a palavra me domine”
Os temas do EP giram em torno de uma humanização critica, as visões do Matéria Prima parece-nos estão sempre nessa linha de reconhecer-se como um ser em movimento, afastando-se das armadilhas. Armadilhas que podem variar mas que visam sempre rebaixar a dignidade humana, seja o racismo, seja a opressão econômica, as desigualdades sociais, as más administrações políticas, seja o controle tecnológico. Ouvir a sua poesia é buscar uma reprogramação linguística capaz de nos levar a outras formas de pensar e consequentemente de agir.
O trabalho que Matéria Prima imprime em suas rimas possuem uma qualidade que vai além das denúncias, que supera em muito as frases de efeito. Sempre indo no cerne do pensar e com isso nos permitindo perceber jogos de linguagem que utiliza, combater o cérebro eletrônico e os vícios, clichês que utilizamos para pensar a realidade. Jogo engraçado e exemplo divertido desse expediente é a faixa “Tabu”, ouça e entenderá!
Depois de Pocas (2016) viria a tona, o seu disco de estréia: Dois Atos, no anos seguinte, mas aí já é o papo do próximo texto!
-Estudando Matéria Prima – Quimera e Pocas, EP’s de transição
Por Danilo Cruz