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Estudando Matéria Prima – Dois Atos (2017) o canto da rima!

Em seu disco de estréia Matéria Prima surpreende e solta Dois Atos em 2017, colocando para fora a visceralidade do canto de suas rimas!

O disco de estréia do MC mineiro Matéria Prima foi um daqueles acontecimentos imprevisíveis, fruto dos seus encontros com outros artistas e produtores e sobretudo de sua vontade de cantar. Lançado após a trinca de EP’s Material de Estudo (2012), Quimera (2014) e Pocas (2016), Doius Atos surpreende e nos oferta uma proposta realmente nova!

Artistas verdadeiros não estão muito preocupados com o que quer o público, e dada a sua qualidade, percepção e intenção eles soltam o que vossos instintos e técnicas, assim como seus sentimentos produziram. E nesse sentido Dois Atos é um salto sem cama elástica!

Ouvir esse disco após três anos do seu lançamento e dada a qualidade deste álbum e sua extemporaneidade, lhe converte em um documento fantástico para se pensar na aproximação do rap com o formato canção.  Podemos aqui já marcar o Matéria Prima como um cantor e compositor além de MC, alguém que realmente sabe cantar, e que em Dois Atos (2017) colocou todo essa potência para fora. Note-se que em seu disco de estréia não há por parte do artista nenhuma tentativa clichês de clivar sua arte ao formato classe mediano daquilo que se considera bom gosto em termos de música.

A produção de Gui Amabis, coloca as 10 faixas que compõem o disco sob programações que intrincam o canto da rima do Matéria Prima de modo original e singular. Não há aqui os violõeszinhos medíocres da moda, nem cajun, para produzir essa mescla ridícula onde MC’s desafinados encetam cançõezinhas românticas pop. A famosa MPBtização que tem estragado as possibilidades de diálogo do rap com outras sonoridades na medida em que servem de critério para as produções, e com isso limitam experimentações singulares. Essa coisa porca de emular Legião Urbana com rimas desgastadas e cantos que não mereceriam esse nome.       

Na correria, Dois Atos (2017) é fruto de um edital para gravação de disco e apresentação e foi pensando, começou a ser incubado por uma vontade de produzir um show com “luz própria”. Ao mesmo tempo, é também incubado pelo contato do Matéria Prima com o grupo de teatro Espanca! Daí talvez, possamos começar a entender porque um dos mestres da rima nacional produziu esse monstro híbrido.

É um disco que também não pode ser incluído dentro da carcomida categoria de MPB, apesar de ser música popular brasileira. O canto de um MC preto e periférico, mas que está longe de poder ser enquadrado dentro de uma forma hoje tão careta! Matéria Prima nos oferta no seu disco de estréia solo, o canto da rima, uma expressão singular em formato melódico e com harmonias dos seus mais altos sentimentos.

Um disco introspectivo, carinhoso, problematizador e sobretudo um álbum onde a poesia do MC Matéria Prima encontra um canto, um forma e um sentido do cantar que expressa as milhares de possibilidades de ser de um artista negro. Um artista negro que não se limita às caixas que a cultura hip-hop associada ao mercado e a preguiça intelectual podem gerar.

E dessa forma, talvez possamos contestar qualquer tentativa de que esse disco seja colocado no rol da MPB, pois é o canto de um rimador. Não um canto que quer ser o de um MC que precisa ser reconhecido como “cantor” ou fazer de sua música rap algo “digno”. Mas um “canto menor”, construído hiphopicamente, através de pesqusia e talento, da vontade de se expressar com total liberdade.

Entre o orgânico e o eletrônico as composições e as rimas do Matéria Prima passeiam com uma sensibilidade incomum, literalmente sem par. Não existe disco algum parecido com Dois Atos (2017) dentro do hiphop nacional. Temos visto muitas tentativas de cantar dentro da cena rap, mas nada se iguala a isso aqui. é curioso como talvez esse seja o disco mais bem recebido do artista pela mídia nacional. Esse marcador da possibilidade de enquadra-lo como um artíficie da MPB parece ter chamado a atenção dos hipster, sempre atrasados ao novo, e ávidos pela novidade!    

Como um disco incidental, Dois Atos dialoga mais com uma teatralidade do que com a forma Mpbística de se fazer música. O MC aqui mais incorpora as máscaras do teatro se provando e se mostrando como um cantor do que propriamente assumindo uma carreira dentro dessa vertente, e isso se prova pelo abandono desta forma nos trabalhos seguintes. Mostrando que a possibilidade de expressão não precisa vir com uma visão de mercado desonesta, apesar de poder receber tranquilamente os louros destes.

1º Ato – O Canto da Rima!

Como afirmamos acima, o Dois Atos do título do disco não é à toa e faz-se íntegro na divisão do disco e na condução da proposta estética concebida por Matéria Prima e por Gui Amabis. A primeira quina de canções é cirurgia de peito aberto, delicada, expondo com muita visceralidade os afetos que Matéria Prima então queria comunicar. O trabalho de baixo do Regis Damasceno é ponto importante numa condução segura, produzindo linhas condutoras, que junto com os teclados e programações do Gui Amabis, da guitarra do Dustan Gallas e da bateria do Samuel Fraga, formam a banda por trás do disco. 

Em “Visita Onírica”, o nosso crooner cria um ambiente de acolhimento, de cuidado e de partilha muito bonito, com uma ambiência musical que “representa” um encontro entre duas pessoas em vias de se resolver. Um afeto de amizade e de amor, transbordam dessa faixa, com uma gentileza, uma hospitalidade que é característica do povo mineiro. O título remete-nos ao campo dos sonhos, mas nos parece que o que a letra da canção nos transmite é uma fabulação desperta que é também um componente do ethos desse artista, no trato pessoal! 

O produtor Gui Amabis!

Se colocar em cena com um corpo novo, uma nova persona, é também parte da nossa missão enquanto seres humanos que buscam um devir sempre novo, “Sorriso Nu”. vai um tanto nesse sentido. Fala-nos do teatro, mas nos fala também das preparações para as nossas cenas, da necessidade de estarmos atentos para as cenas que precisamos eternizar em nossas memórias, com seus odores, suas cores, suas luzes próprias, seus personagens. Menos no sentido da representação do que no de vivermos de modo integral os encontros e de nos entendermos a nós mesmos, como personagens singulares do teatro do mundo.

O primeiro ato, é composto por 5 das 10 músicas do disco, e a sonoridade dessa primeira metade corre caudalosa, carregando as cenas, os personagens, transmitindo as tonalidades da alma do artista e de suas personas. “Feito de Barro” é uma das melhores músicas que o Matéria Prima já fez e certamente estaria presente em seu concorrido greatest hits. A inserção de cordas em contraste com a letra, assim como o trabalho excelente das guitarras e de todos os outros músicos, apresentam o tom trágico que a faixa carrega. ao apresentar a miséria do moralismo. A moral, esse bicho aprisionado dentro de nós por milênios de cristianismo, que corrói a muitos de dentro pra fora, mas que também não cessa de causar vítimas. 

“Que as bocas se espumem mal dizendo meus erros/ Que as mandíbulas se quebrem de tanto me odiar aos berros/Porque você é feito de barro me atirando lama, também faz parte de mim”  

A partilha de afeto, a empatia diante do outro, não a anulação de si mesmo mas a busca pelo compreender todos os outros. “A Dor do Outro” vai de encontro ao desejo ególatra muito fruto dos tempos atuais, da busca em fazer com que seus problemas sejam vistos como os principais, e uma corrida por atenção que muitas vezes se coloca através da “militância”. A amplificação das vozes e o aprisionamento ou mesmo, a divisão das pautas políticas identitárias que tem colocado muitos em rota de colisão, é o tema dessa faixa!

Ali, fechando esse primeiro ato, o professor de inglês e cantor Matéria Prima manda “Waiting For The Bus”, a mais groovada dessa primeira metade e que prenuncia o segundo ato.

2ºAto – A Rima do Canto

Depois de uma aula magistral de canto e poesia, aquilo que chamamos de Canto da rima, Matéria Prima imprime outra metade de seu ser, com A rima do canto. Pesado, sujo, técnico até não poder mais, sem ser redudante, ou mesmo hermético. Pelo contrário, comunica com a mesma qualidade anteriormente aplicada, porém retornando ao seu habitat natural. Esse retorno, nos impacta por dois motivos, primeiro porque nos mostra como enquanto bicho artista, Matéria Prima é um dos ou talvez o mais completo da cultura hip hop, e isso não quer dizer melhor. 

Mais completo no sentido de ser capaz de transitar com muita legitimidade por diferentes registros, ou alguém duvidaria, que ele é capaz de lançar um disco de jazz? Mas, esse retorno também nos denota um apreço grandioso e de extrema generosidade a cultura hip hop. Como falávamos acima, provavelmente a canção talvez fosse um caminho mais lucrativo, ainda mais se pensarmos em como a indústria reage hoje, se ele seguisse mesclando um canto com umas rimas. Mas não é esse a conduta artística que vem se caminhando a mais de 20 anos, e sendo assim, o interlúdio “Sufoco” já chega coloca todas as suas inquietações na ponta da caneta!

Um visão muito escurecida do que se quer, Matéria Prima não sobreviveria a coisificação, aos padrões impostos de fora, antes preferindo seguir a sua trilha de luta e originalidade! De perrengues e vida criativa, de pouca grana e muito talento. E obviamente instilar a revolta é também o papel dos MC’s que possui o mínimo de visão, e Matéria Prima situa muito bem as questões raciais, as opressões e o genocídio em “Porque”. Através de um trabalho fino com a linguagem, “Mutação Fonética” apresenta o método que lhe é ímpar, e que não se traduz propriamente por uma busca por conscientizar. Antes, Matéria Prima segue pela primazia da forma instigante e do conteúdo que coloca dúvidas e levanta questões. 

Essa forma de produzir as suas rimas de um canto do pensamento contestador, ancorado no hip hop, nos leva a buscar retirar, a fazer com o que é indesejável saia a força. “Sai na Marra” é essa faixa, um storytelling que joga ao mesmo tempo com a história do rap nacional, com elementos da cultura pop, trabalhando o nosso contexto, através de metáforas da cultura japonesa, tradicional e pop. Sem aliviar, sem palavras de ordem, abre o seu imenso glossário e nos comunica com riqueza de detalhes, ou sai do crime na marra, ou sayonara! 

Fechando o disco mas seguindo na missão de abrir mentes, “Quente” é uma pedrada que nos mostra o quanto alguns sãos brasa imorríveis, enquanto outros são meros fogo fatúo. Corpos orgânicos apodrecidos que emitem explosões pela emissão de gás metano, mas dado o grau de apodrecimento são reflexos dos dejetos produzidos. Matéria Prima, possui a rara qualidade de seguir queimando em vida, sem fazer média, sem buscar fórmulas fáceis. e mantendo a chama acessa. Dois Atos é esse disco sui generis, que apresentou para o público outra possibilidade dessa metalúrgica da palavra, do ritmo e do flow, engendrando ao seu bel prazer um canto e uma composição das mais bonitas de nossa história! 

Escutem!

-Estudando Matéria Prima – Dois Atos (2017) o canto da rima!

Por Danilo Cruz 

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