Dando prosseguimento a série “Estudando Lurdez da Luz”, neste segundo capítulo vamos adentrar a sua “filmografia”.
Recentemente a Lurdez da Luz lançou o seu EP Devastada, projeto que de acordo com a artista em entrevista ao Gringo’s Podcast será o Lado 1 de um futuro vinil que terá o seu Lado 2 com lançamento inicialmente previsto para o mês de julho de 2023. Aqui no Oganpazan, aproveitamos essa recente deixa para propor um “estudo” da grande e importante obra da artista, que teve início com uma entrevista, onde tentamos minimamente passar a limpo um pouco de sua discografia.
Em um tempo onde o imediatismo e ou o presente contínuo que vivemos nas redes sociais e em uma vida de conectividade total, parece cada vez mais nos propor o esquecimento da tradição e o revisionismo histórico, se torna fundamental buscar as raízes. Dentro da cultura hip-hop, como MC e cantora, Lurdez da Luz possui uma importância essencial no underground nacional pensado em termos estéticos.
Tendo feito parte do “clássico” Mamelo Sound System junto com Rodrigo Brandão, Luana (nome civil da Lurdez da Luz), e com uma carreira solo recheada de discos e EP’s que transitaram por sonoridades diversas, a artista com mais de 20 anos de carreira no rap nacional, precisa ser mais conhecida. E neste sentido, sua carreira dentro do audiovisual é uma deliciosa viagem pelo tempo na recente história do rap nacional assim como podemos notar a deliciosa inventividade de sua arte. Sendo assim, vem com nós neste passeio:
Lurdez da Luz feat Stefanie – Andei
Dois nomes que são de extrema importância para quem curte barras e flow, para quem ama uma lírica que une o suave feminino à astúcia da levada das ruas, o clipe da música “Andei” une duas das mais importantes MC’s do Rap Nacional. O feat entre Lurdez da Luz e Stefanie vinha à luz há 12 anos e alcançava o top 10 da antiga MTV, quando esta era um dos principais – senão o principal veículo – onde tínhamos acesso a novos lançamentos.
Single audiovisual do não menos clássico disco de estréia da MC paulista, o homônimo Lurdez da Luz (2010), que no ano passado recebeu uma edição em vinil, a faixa 3 recebeu um excelente vídeo clipe. Com direção de João Solda que captura o grande elenco – DJ Mako e Eduardo Brechó (Aláfia) entre eles – em movimento como pede a canção pelas ruas de SP, “Andei” conjuga uma semiótica hip-hop interessantíssima.
Aqui a rua como plano constituinte do devir das MC’s, se coaduna perfeitamente na junção de letra, ritmo e imagem se juntando a uma direção de arte (Luciana Maia) muito certeira ao “samplear” instrumentos feitos com recicláveis como ponto de chegada. Se você assiste isso aqui e não balança o pescoço e não chapa na música e no vídeo volte todas as casas e comece de novo!
Lurdez da Luz feat Rodrigo Brandão – Ziriguidum
Uma das grandes características da arte de Lurdez da Luz é uma inquietude presente na busca por sonoridades que fogem do óbvio. Segundo clipe do seu disco de estreia, “Ziriguidum” traz outro feat, desta vez uma “velha parceria” com o seu companheiro de Mamelo Sound System, Rodrigo Brandão. A faixa que no seu disco segue-se a “Andei”, diferentemente da anterior, traz um break beat nervoso contrabalanceado por um sopro cool jazzy sampleado, ao mesmo tempo em que as rimas versam sobre o molejo músico-afetivo.
Unindo sua herança nos rolês de skate, ao breaking em bonitas imagens de sol estalando e entardecer, o clipe tem direção muito consciente da Gabi Jacob e uma fotografia bem bonita do Fred Ouro Preto. À modernidade sonora presente na música e na letra, recorre-se a um certo contraponto vintage do rádio – com inserção de trecho do mestre Rodrigo Ogi – do orelhão de ficha, fita cassete, DJ Mako com câmera super 8 em mãos, Rodrigo Brandão de boombox nos ombros.
Aqui temos um excelente exemplo de como a Lurdez da Luz estava ali em 2011 no “topo” da inventividade no rap nacional, sem de nenhum modo perder as raízes da cultura hip-hop. Um audiovisual como documento histórico que inclusive registra mais uma vez o Eduardo Brechó, porém aqui traz a belissíma e então desconhecida cantora Xênia França que juntos farão num futuro próximo parte da excelente banda Aláfia. Segura esses flows aqui e procure similares, será que acha facilmente?
Lurdez da Luz – Levante
Diversidade sonora muitas vezes é um jargão utilizado em textos jornalísticos, mas na carreira artística da Lurdez da Luz é um caminho muito bem trilhado ao longo de sua obra. Faixa “fantasma” em sua carreira, o single “Levante” é uma ponte de fundamental importância para o entendimento das mutações presentes na carreira da MC. Aqui, vemos uma migração das produções mais analógicas e que trabalhavam em sua carreira com um approach mais analógico do boombap under, no jazz rap e no rap mais alternativo, para uma pegada que buscava então mergulhar no digital.
A produção musical ficou por conta do Alexandre Basa, produtor e multi instrumentista que trabalhou com o Mamelo Sound System no início do grupo. Como a Lurdez explicou recentemente no Gringo’s Podcast, a música era sua vontade de flertar com elementos da música eletrônica, com o subbass e com elementos do trap que então começam a ser feitos, note-se estamos falando de 2012, ano de lançamento do clipe.
Se por tudo dito acima, a faixa é uma música ali pensada para pista, a lírica intrincada da Lurdez segue combativa mais nunca quadrada, seja no flow ou nas rimas, ela consegue conjugar o balanço do corpo dançante com ideias anti-sistema, no máximo de potência que essa palavra possa ter. O clipe é também um elemento de passagem de fases, a artista é focalizada em cenário noturnos, em externas na noite em túneis, ou em estúdio em planos fechados sem cenário, sem figurantes, apenas efeitos visuais, ao contrário dos trabalhos anteriores.
A faixa Levante antecipa o seu segundo disco Gana no Bang (2014) e é um antecipador de tendências que nos anos seguintes e ainda hoje seguem sendo bastante explorados no rap nacional!
Lurdez da Luz – Despedida
O single “Despedida”, lançado em 2020 vem após os lançamentos do EP Bem Vinda (2016) junto ao PParalelo e aos discos de apresentações ao vivo Acrux (Acústico) Ao Vivo e o EP ONErpm Showcase (2018). Um outro momento menos conhecido da carreira da Lurdez da Luz é uma experiência musical e imagética que trabalha com muita força estética dentro do mais experimental possível na música eletrônica.
A produção do Charles Tixier é muito interessante, conjugando levadas chapadas que parece-nos unir de certo modo rítmicas que nos remete ao xote, ao dancehall e meia colher de sobremesa de drum’n’bass, tudo isso cheio de efeitos. E a Lurdez da Luz chega marcando muita presença com uma letra fortissíma de carater feminista, refletindo sobre as opressões estruturais que as mulheres sofrem.
A construção poética da faixa é muito interessante pois caminha das ofensas machistas para versos que refletem as práticas de manipulação – “diz que me ama mas não é seu karma, casa comigo?” – em um primeiro momento. Para na sequência nos falar do machismo patrimonial – “me deixou na pindaíba, morando nessa biboca, não me deu nenhuma bitoca, nessa sua despedida”. E finalizar de modo triunfal/sobrevivente – “chega de viver sofrida, chega de só marca toca, ficar tão abatida, o que não me falta é força”.
Para ilustrar esse movimento, o clipe que tem captação de imagens e pesquisa da Nostalgias e a montagem do Duo.Rado, constrói uma imagética onde a Lurdez é captada sozinha em roupas brancas que denotam paz, em um parque em frente a uma lagoa. A letra que associa a dança à independência como consciência de si, possui sobreposições de imagem da própria Lurdez dançando com imagens de bailes antigos. Um trabalho a ser redescoberto.
Lurdez da Luz & Quebrante – Modo Aleatório
Se o single Despedida foi lançado poucos meses antes da pandemia, aqui temos um trabalho feito durante a pandemia, e antecede o último lançamento da Lurdez junto ao combo Quebrante (Mathieu Hebrard no baixo e DJ Will Robson) . “Modo Aleatório” é o enlace musical entre os artistas que vai desaguar no EP Devastada (2023). E de novo mais uma vez, bis, uma outra mutação sonora se apresenta aqui.
A aproximação com o Quebrante se deu há 3 anos quando a Lurdez da Luz foi convidada a participar do compacto 7” com as faixas Hey Man e Pégasus, onde já participavam também o guitarista: Allan Spirandelli, que também fez parte do último EP da MC. Mas é com Modo Aleatório que as coisas ficaram firmes. Se no compacto supracitado a Lurdez aparece como uma cantora soltando a voz sob bases reggae ou nu-dub, com Modo Aleatório o groove de inspirações funk-soul toma conta do som.
É muito interessante notar como esse último audiovisual lançado pela artista forma um eterno retorno da diferença com o seu primeiro, com o qual abrimos a matéria. “Andei” e “Modo Aleatório” são certamente músicas irmãs, seja na temática seja no ritmo, guardadas as suas diferenças de tempo e produção, as duas falam de si mesma diante da história, de suas construções como mulher e ser humanas, porém com uma separação de 11 anos e dois filhos depois. Essa comparação nos dá muito o que pensar em todos os níveis, de vivência à indústria musical, da própria trajetória da Lurdez da Luz até o lugar das mulheres em nossa sociedade.
Artistas como a Lurdez da Luz possuem a inequívoca qualidade de refletir sobre o tempo em que vivemos, sobre suas inserções no social, na política e na tradição artística. Se lá no distante 2011 a Lurdez estava pela “rua” de bondão, aqui ela é capturada sozinha em casa e em ambientes de construção musical, certamente por força do período pandêmico. O clipe que tem direção e edição de Cainã Tavares, captura a artista em trajes e ambientes do cotidiano caseiro. Onde a artista rima com muita força com a propriedade de mais de duas décadas de luta sobre seu ponto de chegada atual como pessoa, mulher, mãe e artista, alguém que não dissocia a chegada transcendente da era de aquário com a necessidade imanente de acender coquetéis molotovs contra o sistema.
Mais uma sobrevivente de uma indústria cultural machista e de um sistema patriarcal que ceifa a vida de mulheres historicamente e que no Brasil viu nos últimos anos um aumento gigantesco da misoginia e do machismo fruto de um governo fascista. Lurdez segue produzindo como uma veterana sempre renovada.
Bônus Track: Lurdez da Luz e Alafia
Para finalizar, vamos deixar aqui esse registro que comunica-se intrinsecamente com os seus clipes solo, uma música junto ao Aláfia com o Eduardo Brechó e a Xênia França, que foram figurantes dos seus primeiros clipes. Ouçam e busquem conhecer e sobretudo estudar, pensar a Lurdez da Luz assim como a tradição do underground nacional!
-Estudando Lurdez da Luz, Uma breve história em Audiovisual
Por Danilo Cruz
Todas as fotos que ilustram essa matéria são de autoria de Louise Chin, que fez um ensaio fotográfico com uma jovem de 15 anos de idade que ainda não tinha descoberto o rap e a cultura Hip-Hop, alguns anos depois ela viria a ser conhecida como Lurdez da Luz