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O Victor Xamã exorciza a invisibilidade da região norte – Entrevista

Victor Xamã

Victor Xamã volta ao hall de lançamentos do Rap nacional com um EP contundente e que mostra como a sua voz é impossível de ser ignorada.

FOTO por ISA HANSEN

Fazer música é o maior corre. Viver de arte e cultura no Brasil…. Taí uma tarefa digna dos 12 trabalhos de Hércules. É a maior fita, mas o B.O se transforma em recompensa, apesar de levar tempo para a construção da caminhada ser consolidada.

É louco como antes mesmo de começar, a geografia já faz toda a diferença nessa equação fonográfica. Estar em São Paulo é uma mão na roda, mas nem todo mundo tem grana pra bancar a vinda, passar um tempo trampando e ainda seguir o sonho e colocar comida na mesa.

Em função disso, o eixo Rio-São Paulo é o que predomina e concentra grande parte da malha de produção e artistas, sejam eles dos grandes selos ou made in cultura independente. A região sudeste domina, mas pelo menos – quando o assunto é Hip-Hop – muitos nomes estão conseguindo descentralizar o eixo e chegar em São Paulo, mesmo saindo de regiões mais distantes.

Um caso categórico desse movimento é o manauara Victor Xamã. Um dos rappers mais interessantes e criativos da cena autoral atual, o MC de Manaus vive um momento muito efervescente criativamente e a prova disso é seu mais novo EP, “Calor”, que vai sair no dia 26 de fevereiro de 2021.

E pra contar todos os detalhes que permearam esse registro – que sucede o “Cobra Coral” (2020) – além de outras histórias da sua trajetória, nós entrevistamos o Tim Maia do norte e as falas do rimador são tão pungentes quanto a força de sua lírica. Pega a visão, papai.

Oganpazan – Xamã, você é do norte. Aqui em São Paulo eu sempre digo que a gente reclama de barriga cheia. Estamos no eixo mais rico culturalmente, onde todo mundo cola pra tocar e quer ficar um tempo. Ver você sair de Manaus e conseguir descentralizar o eixo é foda e eu queria que você falasse disso. Do desafio de conseguir romper essa bolha e diversificar a cena, mostrando que não precisa ser daqui e nem estar aqui pra fazer barulho.

Victor Xamã – Mano, então, quando se fala disso, primeiramente a gente precisa falar da situação da pandemia. Eu decidi vir pra São Paulo pra realmente investir no meu trabalho, dar uma proporção pra ele, por que aqui é o eixo principal, é onde existem mais possibilidades.

Nesse cenário, eu consegui fazer só um show, que foi no Mundo Pensante. Logo após esse show, duas semanas depois, já começou a estourar a pandemia e eu fiquei pensando sobre o que fazer, se voltava pra Manaus ou se ficava aqui.

Resolvi continuar e consegui, mesmo com a pandemia, dar um impulsionamento muito forte para o meu trabalho, no quesito de fazer conexões. Eu já tinha vindo pra São Paulo algumas vezes antes e acho que isso é super importante, principalmente quando você quer dar mais corpo para o seu trabalho e mostrar ele pra mais pessoas.

É necessário sair de casa para conseguir até aumentar as possibilidades e o engajamento do seu trabalho dentro de casa. O norte, culturalmente e musicalmente é muito forte, porém no contexto de Manaus, eles valorizam artistas que são conceituados fora da cidade.

Não existe um estímulo de cena.

Exato. Precisa ser feito de fora pra dentro, entendeu? E a minha percepção é que em Manaus eu já tinha feito tudo que era possível.

Cantei no Teatro Amazonas, que era um pico que eu passava de carro quando era moleque. Consegui cantar ali e realizar vários sonhos, dentro da perspectiva regional. Essa minha vinda pra São Paulo foi realmente uma das minhas cartadas finais pra projetar o meu trabalho e aumentar as minhas possibilidades com ele.

Eu gosto muito dessa palavra (possibilidade), tenha ela até tatuada. É isso que eu busco e eu procuro vários caminhos pra passar minha música adiante da maneira que acredito.

Oganpazan –  Sobre a estética do seu som, Victor, acho muita massa o jeito que você cria uns climas bolando uns grooves swingados e ácidos. Como você chegou nessa abordagem? Ainda nesse aspecto, o que você curte dessa escola em termos de som? Sinto muita coisa brasileira, desde o Funk do Tim Maia até umas brisas de R&B anos 90. Acho muito legal como você consegue apresentar sua proposta e deixar ela genuinamente brasileira, sem essa onda de colonizado que fica pagando pau pra produção americana.

Victor Xamã – Eu já passei por várias fases de transição. À princípio, quando eu comecei no Rap, tinha um flow totalmente agressivo. Gostava muito de fazer a imposição de voz com mais impacto. Quando fiz o disco “Janela” (2015), tentei cantar e nem sabia se conseguiria, foi um experimento.

Até então achei que aquela era minha praia e recentemente eu fui trazendo de forma mais latente a influência da Soul Music. Foi uma das coisas que cresci ouvindo, é um dos estilos que mais escuto – até mais do que o Rap – e eu vi que a cena tinha um oportunidade nesse sentido.

Claro que vivemos um momento ótimo né? São vários artistas vivendo e ganhando dinheiro com o Rap, mas acaba que existe muita coisa igual.

Sim, exatamente nesse sentido de diferenciação que eu queria ouvir de você

Eu queria criar algo que as pessoas escutassem a minha voz, a minha base e o meu flow e pensassem: porra, isso é a cara do Victor Xamã. Eu vi essa influência do Funk, Soul, além do Rap, como alternativa pra criar uma identidade única e é isso que tentei fazer.

O trabalho de pesquisa é elementar.

Sim, e eu me considero um digger, saca? Aquele cara que vai atrás de verdade?! Eu consumo música de uma forma até maçante. Tô sempre atrás de alguma coisa, olhando o que saiu de novo, coisas antigas que ainda não saquei… Gosto muito de pesquisar música.

Quando eu era criança e estava sem grana pra comprar CD’s, eu ia numa loja de discos em Manaus que se chama Bemol.

Ainda tem essa loja lá?

Sim, mas a área de CD é mínima hoje. Lá tinha aquelas máquina que você passava o código de barras e ouvia as prévias dos sons.

Ouvi muita coisa boa nessas prévias.

Então, aí o que eu fazia: ficava na loja ouvindo Funk, Soul, Jazz, música indiana, enfim, mas como não tinha grana pra comprar, sacava a prévia, anotava o nome do artista, o nome do play também, além das faixas que mais tinha curtido pra poder pesquisar quando chegava em casa. Foi assim que formei boa parte do meu repertório.

E agora, o que você está ouvindo?

Nossa, peguei uma pira muito forte com o Charles Bradley e eu tô ouvindo muito Black Pumas também. No Rap, estou sempre ouvindo Kendrick Lamar. As letras dele me inspiraram muito.

Oganpazan –  Sobre o novo EP (“Calor”) eu vi um stories que você fala sobre ter feito as coisas do jeito que você queria e em todos os aspectos, desde a arte até a máster. Em termos de produção, o que você pode falar sobre esse novo capítulo na sua discografia?!

Victor Xamã – A única coisa é que eu não tive muito tempo. Só gostaria de ter tido mais tempo. Esse projeto que vai sair agora foi contemplado pela Lei Aldir Blanc e essa foi a primeira vez na minha vida que tive orçamento pra trabalhar.

Claro que já tinha coisas escritas, mas precisei esquematizar tudo em menos de 2 meses. Geralmente, quando escrevo alguma coisa, levo um ano, pois gosto muito de fazer pesquisas, mas isso ao mesmo tempo me deu um gás pra parar de procrastinar e buscar a definição das coisas, sabe?

Me sinto muito honrado por ter conseguido fazer o processo de mixagem e masterização com o 2F – que é o cara que faz esse trabalho para o Black Alien e vários artistas fodas. É uma mix e máster competitiva.

E que dialoga com o seu trabalho.

Sim e eu digo isso por que as vezes é foda pra mim fazer a mix, beat, divulgação, design gráfico.

Hoje ninguém é só músico né cara.

Sim e nesse projeto eu consegui trabalhar com produção, assessoria de imprensa e aí o cara fica se sentindo importante, tá ligado? Hahaha

FOTO por ISA HANSEN

Oganpazan – E pra canetar, quais são as referências? Sua abordagem pra cantar é muito interessante e o Danilo definiu muito bem quando fala que você é meio crooner. Como você forjou essa identidade? Tanto de produção, quanto de vocal.

Victor Xamã – Pra ser sincero contigo, a maioria da inspiração das coisas que eu escrevo surgem do cotidiano. Algumas coisas aparecem em conversas. Esses dias estava tomando uma cerveja com a minha mulher e conversando sobre alma.

Em dado momento ela disse: “todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém sabe que céu é esse”. Na conversa eu já absorvi isso e virou tema pra uma letra.

Quando fiz a música “Adepto”, do meu segundo disco, “V.E.C.G” (2017), a minha mãe veio falar comigo quando estava saindo de casa e disse: “Victor, vai com Deus e não demora pra trazer seu sonho pra dentro de casa de novo”.

No sentido de escrita, gosto muito de Dorival Caymmi, Paulinho Pedra Azul… É uma coisa de música brasileira mesmo, só que claro que eu também tenho muita influência de Racionais, Black Alien e o Froid, por exemplo.

Acho foda como ele (Froid) induz a rima e a parte da escrita. Tem músicas que ele não rima, ele usa palavras com fonética parecida, mas não são rimas. É uma mistura disso com coisas do dia a dia e é isso, falei pra porra, me empolguei!

Oganpazan – Meu rei, queria perguntar sobre os seus trabalhos com o Froid. Tem um feat nesse EP e teve o single pela Alaska, “Desastre”. O que a gente pode esperar dessa colaboração num futuro próximo?

Victor Xamã – O Froid e eu começamos a aparecer na música em tempos parecidos. Ele sempre foi uma personalidade ímpar e ter sido chamado pra fazer o quadro na Alaska – que é um tiro que ele está dando e que vai dar muito certo – porra, eu fiquei lisonjeado.

E ele já está lançando muita coisa.

Sim. Eu não sei o que vamos fazer num futuro próximo, definitivamente estou muito focado no agora, mas ele é um cara que é referência e eu desejo tudo de bom pra vida dele.

FOTO por ISA HANSEN

Oganpazan – Sobre concepção, Victor, você amarra muito bem o audiovisual com as letras e o conceito sonoro. Com base nos seus anos de corre e no nível de profissionalismo e concorrência do Rap hoje, queria que você falasse um pouco sobre a importância da construção da sua identidade na hora de conseguir lançar trabalhos contundentes, como os que você tem feito.

Victor Xamã – Então, às vezes sou muito cabeça dura. Busco mais a originalidade do que fazer o som do momento. Claro que não vou ser hipócrita, eu acompanho as tendências que rolam. O próprio single do EP “Calor”, que saiu agora, é um exemplo disso.

Contraste” é uma música com veia Soul, mas na verdade ela segue meio que um “Boom-trap” e isso está sendo explorado na música. No disco tem um Trap que caminha na disposição de hi hat de drill… Tô sempre acompanhando a cena, mas tento fazer as coisas da forma com a qual me sinto mais confortável.

Oganpazan –  Uma das fita que eu mais penso quando flagro esse corre de quem vem de longe é a responsabilidade que você acaba tendo, no sentido de contar a história do seu povo. As coisas que não chegam aqui em São Paulo. Você sente algum tipo de pressão em função disso? Pela responsa de contar essa história?

Victor Xamã – A invisibilidade da região norte é bastante clara. Acho que faltou aula de geografia para o Brasil inteiro quando se trata do norte. Nordeste eu acho que nem tanto por que acaba sendo um ponto turístico e tem a questão de ser uma cultura que é muito sugada pelo país todo.

O norte é totalmente inviabilizado em vários quesitos e quando chega na questão de música e arte é algo preocupante demais. Quando artistas da região norte estão em grandes gravadoras? Quantos tocam no rádio? Quanto estão de fato presentes no circuito de festivais?

Muita coisa a gente nem ouve falar, só sacou recentemente quando acabou o oxigênio.

Até quando acontece algo alarmante e que dava pra ter sido evitado pela gestão do governo federal, rola esse descaso. A gente não tem o olhar que a gente precisa. Fala-se muito sobre Amazônia, mas de uma forma bastante caricata e a minha música, o diferencial da minha música é pegar na essência das pessoas, por que elas não conhecem.

Não sabem o que é um jambo, um suco de cupuaçu e eu tento colocar elementos, nem que sejam gírias, para que as pessoas pensem: “Isso é novo pra mim, achei interessante”.

Você deixa a referência.

Sim, dessa forma eu posso contribuir pra conseguir mudar o cenário de quem faz arte no norte. Isso é de suma importância. Claro que não sou a pessoa que vai conseguir contar todas as narrativas da minha região, pois são inúmeras.

Conto a minha história, com base na minha vivência, sempre respeitando tudo que está sendo feito lá, tentando trazer novos artistas e propagando meu trabalho pra tentar fazer a diferença.

Oganpazan – Meu rei, pra fechar, muito obrigado pela oportunidade. Queria saber de onde você tirou o nome, Victor Xamã e se ele tem alguma relação com esoterismo, além do xamanismo e como você vê essa alcunha refletindo e cumprindo a difícil tarefa de sintetizar a força do seu trabalho.

Victor Xamã – Então, teve uma época que estudei muita sobre essa questão do invisível e estava também numa transição de nome por que o vulgo que eu usava quando moleque era “Garcia”. Comecei a fazer Rap muito cedo, com 11-12 anos e o meu nome era também meu sobrenome.

O problema é que ele era muito abrangente e eu pensei em Victor Xamã em função da minha identidade. Quando eu morava em Salvador com a minha mãe, antes de lançar meu primeiro disco, eu li um livro chamado “O xamã urbano”, do Serge Kahili King.

E esse livro é interessante por que não é sobre o xamanismo amazônico, mas sim o havaiano. Ele explica o significado da palavra. Xamã quer dizer aquele que consegue enxergar no escuro, ter uma percepção mais apurada acerca das coisas.

Pensei que esse nome combinava muito com a minha região também. Gostei muito do livro e muitos temas abordados no meu primeiro disco vieram dessa referência também, mas o que me causava medo é que existem xamãs urbanos e eu não queria que isso soasse pejorativo, saca?

Por isso eu fui falar com um xamã e explicar meu propósito com a música e aí tive a permissão pra usar essa alcunha.

Que massa que você foi atrás dessa validação

Sim, eu fui realmente atrás do significado pra ver como isso seria representado na minha música e deu no que deu.

Bom, é seguro dizer que no mínimo, deu certo.

-O Victor Xamã exorciza a invisibilidade da região norte – Entrevista

Por Guilherme Espir 

As fotos que ilustram essa matéria são da autoria da Isa Hansen 

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