Essa entrevista começou em 2007, o interessante, no entanto, é que o redator deste texto não sabia disso, mas todo contexto para a devida compreensão será dado a seguir.
Depois de sair da escola – à época cursando a 6° série do ensino fundamental – fui para casa ansioso, tentado prever o que o meu pai assistiria na TV. Vale ressaltar que o senhor meu pai começou a colecionar grooves desde antes de meu nascimento. Minhas primeiras lembranças são relacionadas à música que ele tanto ouvia — na forma de CD’s e vinis — e assistia com ajuda dos DVD’s, enquanto se deleitava no sofá da sala.
Como ainda era muito novo (entre 10 e 11 anos) não tinha preferências específicas, meu negócio era ir na sala e ser surpreendido com o som que estava rolando.
Lembro de assistir Paco de Lucia, Al Di Meola e John McLaughlin no fantástico “Friday Night In San Francisco”. Um domingo marcante também, foi quando assisti o DVD do João Bosco, “Boa Noite Gente”, lançado em 2006, catatônico, impressionado com um tal de Yamandu Costa, violonista responsável por dar um nó no meu cérebro depois que o assisti tocando “Benzetacil”.
Foram momentos verdadeiramente épicos e que voltam a minha mente com frequência. Nunca vou me esquecer da primeira vez que ouvi Frank Zappa, por exemplo. Tinha 10 anos e assisti um take ao vivo do bigode, tocando “Montana”. Na hora lembro claramente de ter detestado, mas durante a aula de matemática da Professora Marta, titular da 5° série, comecei a cantar a melodia e pensei: Por que estou cantando isso?
Quando voltei para casa, escutei a mesma música novamente e achei bárbaro, mudou minha vida, por isso comentei que essa matéria começou a ser construída em 2007. Neste ano, particularmente, conheci a pianista japonesa Hiromi Uehara, tudo graças ao meu pai e ao DVD “Hiromi’s Sonicbloom Live In Concert”, que ele colocou para rodar num sábado de manhã.
Fiquei hipnotizado com a capacidade técnica da Hiromi. Desde então, devoro cada um de seus lançamentos, satisfeito por ter a oportunidade de presenciar a história sendo feita, disco após disco.
Depois de assistir esse DVD algumas vezes, já que meu pai parecia ter ficado igualmente perplexo, devorei todos os lançamentos da pianista até então. Discos exuberantes, todos lançados via Telarc, ouvi o “Another Mind” (2003), “Brain” (2004), “Spiral” (2005) e fui especialmente impactado pelo “Time Control” (2007) e o subsequente “Beyond Standard” (2008). Esses dois últimos, lançados como “Hiromi’s Sonicbloom”, o mesmo projeto que resultou no DVD citado no começo do texto.
Num dos sets mais interessantes que assisti nos anos 2000, Hiromi toca ao lado de David Fiuczynski, guitarrista do Screaming Headless Torsos, além do baixista Tony Grey e do baterista Martin Valihora.
Mas o tempo passou e a nipônica continuou me surpreendendo. Em 2007 lançou “Duet”, ao lado do mestre do marfim malhado, Chick Corea. Já em 2009, gravou “Jazz In The Garden”, com Stanley Clarke (baixo) e Lenny White (bateria) e entre 2011 e 2016, a mulher ainda registrou 4 pérolas (todas também via Telarc), com o “The Trio Project“, formado pelo pai do baixo de 6 cordas (Anthony Jackson) e o baterista Simon Phillips.
Passaram-se 15 anos e até hoje nunca vi nada similar, principalmente ao vivo. Depois de ver o show incendiário que ela e seu trio fizeram no teatro do SESC Pompéia, em 2014, até hoje aquela performance continua sendo um momento sem precedentes na minha cabeça. Nunca ouvi um piano que fosse nem mesmo remotamente parecido.
De lá para cá, Hiromi continuou lançando trabalhos muito interessantes, como o disco em duo com o harpista colombiano Edmar Castañeda, “Live In Montreal” (2017), além de uma performance marcante na abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020.
Em 2021, a pianista lançou outro projeto, intitulado “The Piano Quintet”, inaugurando os lançamentos com “Silver Lining Suite”, um trabalho gestado na pandemia e que só conseguiu ver os palcos em 2022. É difícil até expressar a minha alegria de forma imparcial depois de descobrir que após quase 8 anos, terei enfim a chance de assistir a Hiromi ao vivo, novamente, dessa vez num show de piano solo, no Teatro Renault, em São Paulo.
Mas a cereja do bolo foi a rara oportunidade de entrevistar a pianista e conseguir me sentir exatamente como há 15 anos, feliz como uma criança que descobriu algo novo. Em entrevista ao Oganpazan, uma das maiores instrumentistas das últimas décadas falou sobre seu lançamento mais recentes, shows no formato de piano solo, além de passar algumas dicas sobre o submundo dos grooves japonenes.
Hiromi Uehara, senhoras e senhores.
1) Hiromi, primeiramente muito obrigado pela oportunidade. Para começar, gostaria de perguntar sobre os seus interesses com relação a improvisação livre, considerando o desenvolvimento da música em tempo real, uma característica chave do Jazz.
Essa é uma questão bastante interessante, pois de maneira geral é necessário muito foco para conseguir compor música em tempo real. Isso acaba complementando a parte técnica, pois a concentração é um elemento essencial e sem essa capacidade é difícil improvisar.
2) Ainda neste tópico sobre a improvisação: você muda sua abordagem, considerando shows de piano solo, por exemplo? Pergunto pois nesse caso o piano é o único instrumento responsável por criar sons.
Nessa situação o piano funciona como uma verdadeira orquestra. Na verdade, nunca senti nenhum tipo de limitação neste cenário, pensando no formato e principalmente nessa condição de ser a única pessoa que está produzindo sons no piano. Tudo muda quando você percebe seu instrumento como uma orquestra.
3) Hiromi, o que você pode falar sobre os seus 2 lançamentos como Hiromi’s Sonicbloom? Entre 2007 e 2008 você lançou “Time Control” e “Beyond Standard”, tocando ao lado do David Fiuczynski (guitarrra), Tony Grey (bass) e Martin Valihora (drums). O que você pode falar sobre aquela momento da sua carreira?
É interessante você mencionar esses discos. Nessa época pude tocar vários tipos de teclado com liberdade dentro deste projeto em específico. Foi uma fase muito interessante musicalmente, pois eu pude explorar diversos sons e abordagens. Foi muito divertido ter 2 instrumentos para tocar acordes no mesmo grupo.
4) Com o “The Trio Project”, você gravou 4 trabalhos, todos ao lado do Simon Phillips (bateria) e do Anthony Jackson (baixo). Assisti esse show ao vivo em 2014 (no SESC Pompéia) e até hoje é difícil citar algo remotamente parecido. O que você pode falar sobre o formato de trio, além das possibilidades e também desafios de tocar com o Simon e o Anthony nesse formato?
Tocar com o Simon e o Anthony durante 5 anos foi uma jornada maravilhosa. Acho que pensando no que você disse, fica claro como possui uma sessão rítmica poderosa realmente ajuda o solista a voar, literalmente. Foram discos muito importantes dentro da minha carreira e eu realmente gostava muito da química musical que o nosso grupo possuía. Era especial.
5) Hiromi, outro disco da sua discografia que é bastante interessante é o “Jazz In The Garden”, que você gravou ao lado do Lenny White e do Stanley Clarke, em 2009. Como foi a experiência de tocar com eles, considerando principalmente que na época você estava tocando bastante Fusion?
Foi um aprendizado e uma troca muito grande, o tempo todo. O Stanley e o Lenny são músicos muito experientes, tocaram com muita gente ao longo da carreira, então eu só tentei aproveitar ao máximo aquele momento, sempre prestando atenção aos mínimos detalhes. Aprendi muito tocando com eles, sem dúvida alguma.
6) Hiromi, outro disco bastante especial na sua carreira é o “Duet”, feito com o Chick Corea, gravado em 2007, no Blue Note Tóquio. Queria que você falasse sobre o surgimento do projeto, além da experiência de fazer música com o Chick.
Tudo começou quando eu toquei no Festival de Jazz de Tóquio de 2006. Depois que toquei, o próprio Chick me disse que nós deveríamos fazer um disco juntos. Depois as coisas simplesmente aconteceram.
A música do Chick Corea é como entrar numa grande biblioteca… A quantidade de conhecimento e a experiência que ele possuía era simplesmente grandiosa e tudo isso foi bastante inspirador. Assim como na vivência ao lado do Lenny White e Stanley Clarke, foi um aprendizado muito grande. Tentei aproveitar cada minuto desse momento.
7) Hiromi, li uma vez que o pianista Ahmad Jamal foi seu mentor na Berklee. O que você pode falar sobre essa parte fundamental na carreira de qualquer músico, que é justamente o estudo?
Acho que é importante dizer isso: ouvir é a principal maneira de aprender. Durante minha carreira – desde o início até hoje – escutei diversos artistas maravilhosas, não só ao vivo, mas também dentro do estúdio de gravação. Acho que o principal ponto é saber escutar e estar sempre disposto a aprender. Eu estou sempre ávida para aprender e escutar.
8) Hiromi, em 2017 você gravou um disco com o harpista colombiano Edmar Castañeda, o “Live In Montreal”. O que você pode falar dessa experiência, considerando não só o formato de duo, mas também como as influencias latinas do Edmar influenciaram sua abordagem naquela situação?
Eu simplesmente amo o ritmo e a harmonia da música latina, é simplesmente muito especial. A abordagem do Edmar na harpa é única e eu nunca vi nada parecido antes. Era como se fosse um baixo e uma guitarra, juntos no mesmo instrumento, então nós conseguimos soar praticamente como um trio. A energia que nós tínhamos no palco era maravilhosa.
9) Hiromi, sobre seu último disco, “Silver Lining Suite” (2021), composto durante a quarentena, você escolheu trabalhar com instrumentos de corda. O que você pode falar sobre essa escolha, considerando o período e a sensibilidade das propostas presentes no disco? Você acha que a escolha dos instrumentos ajudou na criação dessa ambientação que permeia o registro?
Eu escrevi toda a música presente nesse disco, com base na minha jornada emocional, desde março de 2020. Foi muito difícil passar por esse momento e não poder tocar e eu só continuei escrevendo, pois sonhava em voltar a tocar esse repertório ao vivo – para uma plateia – em algum momento. Sempre fui muito fã de instrumentos de corda e gosto bastante, não só de escrever pensando neles, mas também de tocá-los. Foi a melhor maneira de exprimir tudo aquilo que estava sentindo na época.
10) Hiromi, para encerrar, mais uma vez, muito obrigado pela oportunidade. O que você pode falar sobre a experiência de tocar na abertura dos jogos olímpicos de Tóquio, em 2020? Pergunto, pois você com certeza influenciou muita gente ao redor do mundo e eu queria saber se você também pode citar alguns músicos japoneses (do Jazz e da música clássica) para os leitores do Oganpazan conhecerem mais um pouco sobre música japonesa. É difícil ouvir falar disso aqui no Brasil.
Fique muito feliz de ouvir dos meus fãs e amigos do mundo todo que puderam assistir ao espetáculo. Me senti honrada pela oportunidade, mas creio que tenha sido parecido com qualquer outro show, pois tocar é sempre especial, não importante o palco. São experiências únicas e que acontecem apenas uma vez na vida e eu tento tratar elas de maneira igualitária.
Sobre os artistas japoneses, posso citar o Toshiko Akiyoshi, pinoneiro da cena Jazz japonesa e o Kyohei Sorita, que ganhou o segundo prêmio na competição de Chopin em 2022.