Oganpazan
Destaque, Macrocefalia Musical

A perpétua graça de Badi Assad

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foto: welder rodrigues

Entrevistamos a Badi Assad e, assim como sua música, a conversa vai do Choro ao Jazz, sem esforço e com grande sensibilidade.

Falar sobre a expressão artística de um ser humano é um exercício que requer sensibilidade e cautela. Por diversas vezes, me pego pensando à respeito da razão que me motiva a entrevistar músicos – sempre nesse ininterrupto processo de pesquisa – que permeia os meandros do groove. 

A justificativa é uma paixão pelo som que sinto desde pivete, mas também acredito que em paralelo a isso, exista uma visão utópica-poética nutrida pelo trabalho de escriba. Uma perspectiva com cores quentes, cintilando na íris de um ícaro que tenta chegar o mais perto possível do som.

Digo isso, pois ouvir do compositor à respeito de seu próprio trabalho é o que torna possível – não só para este que vos escreve, como para qualquer jornalista – concretizar e preservar o elemento vital dessa equação narrativa-musical: a memória.

É o que resiste ao teste do tempo e possibilita análises mais claras, tangíveis e com precisão histórica. Viabiliza a continuidade do diálogo e serve como um link fidedigno com o futuro. É impossível colocar palavras na boca do compositor ou até mesmo recriar discursos vazios com base numa informação que é replicada sem fundamento.

Necessário também, é perceber a importância de valorizar o encontro e mais do que definir algo, procurar entender. É importante não delimitar e mais do enquadrar, compreender o caminho que o artista percorreu e como isso foi se aflorando em diferentes ramificações dentro de sua arte.

Foto: Welder Rodrigues

Falar sobre uma artista como a Badi Assad é uma responsabilidade imensa. É um prazer ouvir suas vívidas falas e no caminho, aprender um pouco sobre respeito, história e teoria, por exemplo. Em cada frase, Badi revela uma paixão pela música que talvez justifique um pouco a versatilidade e as diversas aptidões da cantora, compositora e violonista.

Num caminho que engloba tantas linguagens e colaborações que vão desde o projeto “Three Guitars” (2003) – gravado ao lado do John Abercrombie e do Larry Coryell, até parcerias com o Bobby McFerrin, Badi existe como ser humano e ser criativo, sempre imersa em diversas estéticas, projetos, abordagens e referências.

Com a experiência de quem já deu algumas voltas ao mundo para tocar nos maiores festivais – do Jazz ao World Music – Badi continua seu trabalho de criação e conseguiu revitalizá-lo num momento complicado de isolamento.

Com uma série de 6 lives, gravadas – via Lei Aldir Blanc – com parcerias novas, antigas (e até improváveis para os mais puristas), Badi continua tocando, cantando e compondo com uma graça e desenvoltura que desarmam o ouvinte, tanto ao vivo, quanto ao telefone.

O Oganpazan teve a oportunidade de entrevistar a talentosa cantora e instrumentista.  Nesse riquíssimo bate papo – que você confere à seguir – o diálogo percorre as linhas do Jazz, Choro e World Music, pincelando visões cirúrgicas, sensíveis e críticas sobre o mercado, a importância de respeitar a música e a paixão por criar e colaborar, livre de preconceito estético. 

1) Badi, muito obrigado pela atenção, é sempre um prazer falar contigo. Bom, você começou no choro, então, com isso mente, gostaria de saber como você vê a relação desse estilo com o Jazz.

Eu nasci dentro do choro. O meu pai foi um “chorão” autodidata. Começou a tocar cavaquinho, bandolim e aprendeu todo o repertório de ouvido. E por conta dessas rodas que ele vivia, meus irmãos demonstraram interesse em aprender também. 

O meu pai começou ensinando o Sérgio, meu irmão mais velho. Ele tinha 12 anos. Ai o Odair – meu outro irmão – bom, você já imagina, né?! Tudo que o irmão mais velho quer, o outro quer também, então ele começou a estudar. O Odair tinha uns 8 anos quando isso aconteceu e quando eu nasci eles já tocavam. Eles no caso, o que viria a ser o Duo Assad.

O choro existia e acontecia num momento onde a família estava reunida e a minha introdução à música foi ouvindo meus irmãos tocando. Quando tive entendimento sobre o que estava acontecendo dentro de casa, eles já estudavam horas de musica clássica por dia e de noite meu pai chegava e aí aconteciam as rodas de Choro.

Foi ai que eu entendi a música. A dinâmica nessas rodas era muito interessante. Tem os que tocam e os que ficam curtindo, bebericando, dançando… As pessoas cantam junto e o astral é maravilhoso. É uma energia de amor e respeito, sem cobrança.

Não interessa se o fulano toca bem, mal, quem não toca… A questão principal é que as pessoas saibam se colocar na roda. Existia sempre muita apreciação junto, claro. O silêncio era valorizado e falava-se tudo com muito jeitinho, justamente para não atrapalhar quem estava fazendo música.

Havia respeito pelo som.

Exato e eu fui sendo educada nesse espaço, dessa forma… Foi dentro desse lugar de respeito à musica e isso veio de uma forma muito natural. De tal maneira, que quando estou nesse ambiente, me dá agonia quando alguém está falando alto, por que não foi assim que eu aprendi.

E o choro possui essa característica aglutinadora e humana que é muito incrível. Essa questão de ressaltar traços humanos também e isso chega no Jazz, através do improviso.

O meu pai, por exemplo, não sabia improvisar… O improviso requer de você um pensamento matemático da música, mas ele era capaz de transpor sons de um jeito muito intuitivo.

Isso nos ajuda a compreender que é possível sim explorar essa inteligência por outra veia, algo mais interno, além de praticar escalas.

É interessante ver as propostas de instrumentistas autodidatas, justamente por se tratar de um processo mais intuitivo.

Sim! Acredito que ser autodidata cria avenidas mais livres e isso é muito importante para um músico.

Pra voltar ao ponto que você comentou antes: o Choro tem essa conexão com a música brasileira, principalmente com os ritmos regionais. Promover essa relação com o Jazz aconteceu de maneira orgânica. Foi feita essa fusão de Brasil com Estados Unidos e com isso nós criamos essa grande música brasileira, que conversa também com a música popular.

2) Sobre esse momento da sua carreira, Badi, queria saber como andam as suas produções – tanto da carreira solo, quanto de outros projetos paralelos – e como foi o processor de bolar essa série de shows ao lado de artistas tão diferentes entre si, como o Fernandinho Beatbox e o Carlinhos Antunes, por exemplo.

Pra mim, estar vivo é estar criando e eu não falo só de produção. Os meus dias são repletos de criação e isso resulta em produção. Eu não vejo como trabalho, vejo como produção de vida e esses 6 vídeos que saíram via Lei Aldir Blanc, bom, a ideia surgiu com objetivo de explorar o meu trabalho “Volta ao Mundo em 80 artistas“, que foi um show e um livro, onde homenageei 80 artistas do mundo todo.

Eu sou muito curiosa, não tenho preconceito com arte nenhuma. O que chega e emociona é o que eu gosto, independe da geração ou estilo. Tem de Bjork à Naná Vasconcelos nesse trabalho. 

Alguns desses nomes você até tocou junto.

Sim, outros dividi palcos, festivais… Tem ainda um pessoal que ainda não tive a oportunidade de conhecer, e nesse balaio cabe muita coisa. Aí, como tive que diversificar a proposta para 6 shows e 36 músicas, precisei revisitar meu repertório de coisas que já tinha tocado e gravado, pensando em singelas homenagens, ao lado de alguns amigos de estrada.

Um dos músicos que homenageei foi o Bola de Nieve, cantor cubano. Fiquei pensando em quem chamar pra presta esse tributo e todos os convidados precisavam ser artistas residentes de São Paulo, por conta da pandemia. Então, dentro de São Paulo, não teve como não escolher o Swami Jr para esse trabalho, pois o Swami é um artista que já foi pra Cuba diversas vezes.

Drume Negrita” foi uma música que gravei no primeiro disco -“Solo”, lançado em 1994 – e foi esse exercício né?! Revisitar meu repertório e promover os encontros. Tem uma homenagem para o Bobby McFerrin e, para isso, chamei o Fernandinho Beatbox. Pensei nele, pois eu interagi com o filho do Bobby, Taylor McFerrin, que assim como o Fernandinho, também é beatboxer… Foi possível homenagear ambos, o filho e o pai e cada show possui esse olha cuidadoso.

Outra pessoa muito especial que pude trabalhar, foi o Carlinhos Antunes. Ele formou a Orquestra Mundana Refugi e o trabalho que ele conduz é fenomenal. Um ato bonito, de importância política, sociológica, enfim. Ainda tem a Lívia Mattos, também! Meu ultimo show antes da qiuarentena foi ao lado dela, então ela não podia deixar de participar dessa retomada.

O ultimo show foi com com o Marcelo Pretto, integrante do Barbatuques. Esse encontro foi gravado antes dele falecer, então já ficou como uma homenagem para esse grande artista.

É muito legal ver a proporção que esse projeto (“Volta ao mundo em 80 artistas”) tomou, Badi.

Sim, eu posso dizer que além de CD’s, também vendi livros ao fim do show. Tem o livro (que saiu em 2018 via Polen Livros) e o disco de estúdio que nasceu ano passado. 

Sim, isso é de fato muito legal, vai além de estilos e explora formatos. Tem o filme do Edu Felistoque também (“Badi”, lançado em 2018). Mexe bastante com a memória.

Sim, conduzir esse projeto foi um prazer e foi legal mostrar também como foi o processo através de um novo olhar, revisitando o material e revendo amigos.

3) Badi, falando um pouco sobre a sua trajetória, como você vê a sua carreira, começando com o Choro, tendo esse flerte com o Erudito, depois descobrindo sua voz, a MPB, enfim. Como que você analisa esse momento world music que a sua arte vive já há algum tempo? Essa liberdade com a qual você transita entre todos esses territórios musicais é muito leve.

World Music é inevitável no tempo da globalização. Antes era muito mais difícil pra conseguir fazer com que as informações chegassem até o outro lado do mundo. Por um bom tempo, era uma coisa assim: não fala inglês? Então é World Music. 

E é interessante, pois esse fato abre espaço para outra pergunta: o que é música de raiz? Também existem algumas peculiaridades nesse universo tão amplo.

Esses tempos vi um vídeo do Hamilton de Holanda (para ler a entrevista clique aqui) tocando com o João Bosco – naquele projeto “Canto de Praya” – e esse vídeo em específico era uma versão desses desafios do Instagram.

Nesse registro em particular, tinha uma artista indiana cantando lindamente e isso mostra que não existem barreiras. Se você deixar a curiosidade aflorar, as misturas são maravilhosas. 

É lindo ver a produção do ocidente, pois estamos vendo uma nova identidade musical sendo criada. O oriente e o ocidente, se influenciando mutuamente.

É o mercado que promove essas divisórias, pensando em estilos e etc.

Pra mim, essa questão de consumir e criar com liberdade é natural, pois ouvia-se de tudo dentro de casa, mas hoje existem essas caixinhas. 

4) Badi, nos últimos anos você tem se dedicado também a fazer projetos voltados para o público infantil. Queria que você falasse um pouco sobre isso, pois acredito que seja uma excelente alternativa para a Galinha Pintadinha. Como você começou nisso tudo?

Lancei em 2014 o disco infantil, só que ele ainda é vivo no meu catalogo de ofertas de show. A única coisa que mudou é que nos últimos tempos tenho feito esse espetáculo no formato solo.

É importante manter projetos assim, mesmo que a minha filha esteja fora da alçada – ela já tem 13 anos hoje em dia – pois eu tenho a oportunidade de me aproximar e interagir com um novo público que sempre se renova.

Essa ideia surgiu e foi inspirada durante o meu próprio processo… Foi quando me descobri mãe e é um projeto muito verdadeiro. Eu fui me encontrando e a música estava comigo novamente durante esse caminho.

A minha existência parte desse lugar da criatividade, então é um projeto que usufrui desse exercício. O repertório acontece dentro de uma casa e os instrumentos presentes em cada ambiente estão vivos nas faixas.

Eu convido as crianças pra participar e interagir. Depois do show preciso de um tempo pra descansar por que é muito cansativo, mas vira uma festa e é muito gratificante. O público infantil é emocionalmente correto, se ele não tá curtindo, ele vai embora e é isso! (risos)

Sim, esse que é o maior desafio, acredito eu, a questão de conseguir se conectar e de fato captar a atenção das crianças.

E o interessante é que qualquer tipo de estímulo chama atenção da criança. O desafio é que você precisa estar ali o tempo todo pra conseguir fixar a atenção. É um trabalho bastante cansativo, mas muito expressivo e prazeroso também.

5) Tenho falado muito com a galera do instrumental e sinto que esse rótulo acaba deixando os artistas dessa cena meio presos. Parece que é um fardo… Como você vê essas associações que as pessoas fazem com os artistas (em termos de colocá-lo numa caixinha) prejudicando a penetração de todo um trabalho?

Acontece comigo, Guilherme, eu estou refém da musica instrumental desde 96 e até hoje a crítica me vincula a isso, mesmo com vários trabalhos com voz gravados de lá pra cá. Quem me conhece desde então, fixou essa imagem. Desde 98, quando lancei o “Chameleon”…. E olha como as coisas são: esse é um disco cantado do começo ao fim e ainda assim existe essa condensação para quem me conheceu como violonista… É difícil pra essas pessoas entenderem a Badi cantora, além da instrumentista.

Até amigos próximos ainda falam isso. “Você é violonista”, e eu digo: não somente! Sempre faço questão de corrigir, justamente por que isso não me permite circular dentro de lugares mais autênticos.

Veja você, hoje, com a minha produção atual, posso ir num festival instrumental e cantar o tempo todo. O violão está presente de uma forma super elaborada e a voz é um plus. Se você tirar a letra da canção, ela vira uma peça instrumental.

Lembro que quando fiz parte de um projeto de musica instrumental, ouvi que “aqui não entra canário”. Respondi que eu não era um canário e como resposta, ouvi que “no meu caso era diferente”. Existe um pensamento muito preso à caixinhas, rótulos, enfim e a gente está num momento que as caixas estão mais abertas e você deve usar os elementos que você domina (claro), até pra conseguir sair um pouco disso e caminhar por novos lugares.

Como você vai falar para o João Bosco e o Gilberto Gil, por exemplo, que eles não podem tocar num festival instrumental? Ainda mais com o violão que eles tocam?!

Muita gente da cena instrumental hoje, está lançando singles cantados, talvez em função disso que você falou né: “caminhar por  novos lugares”.

Claro, é uma estratégia de marketing, não tem regra. O que existe é muita desinformação. Tem uma grande porcentagem de pessoas que não tem acesso à musica instrumental. Por isso, não possuem referencias e tudo isso é falta de informação, de estímulo.

6) Pra fechar Badi, pegando um gancho na pergunta anterior, como você vê essa síndrome de patinho feio que nós temos aqui no Brasil, no sentido de ficar pagando pau pra gringo e desvalorizando a nossa própria musicalidade, que não deve em nada pra música americana nem de qualquer outro lugar do mundo

O Brasil é um continente né?! A nossa arte é antropofágica no grau máximo. Nós temos uma capacidade grandiosa para absorver referências do mundo todo e ainda assim conseguir transforma essa nova referência em algo novo, com uma abordagem autêntica. Aqui nós encontramos grande parte da nossa produção na rítmica dos binários e quaternários. 

Eu não sou pesquisadora nesse sentido, mas por exemplo: estava ouvindo  Lenine e ele tem uma musica chamada “Do It” que está em 7. E o interessante é que quebra o pé de qualquer um que vai dançar.

O que eu quero dizer com isso? É que o brasileiro consegue fazer uma rítmica impar ser dançante. Quando você escuta uma construção do leste europeu, a musica tem 3 minutos e você não entendeu nem o tempo que estava.

Já fiz algumas experiências pra tentar entender isso um pouco melhor e sempre foi necessário ouvir várias vezes pra entender a escrita. O brasileiro tem muita dança no corpo e essa maleabilidade trás o uso de ritmos que são entendidos pelo corpo.

O Naná Vasconcelos disse – numa entrevista que fiz com ele em 2014 – que o primeiro instrumento é o corpo.

Sim, exato! O corpo é muito presente e muita gente não consegue transpor, pensando no corpo. E como o corpo não entende, a musica não vai pra esse lugar e consequentemente não alcança esse swing.

Mas isso são características do povo em si e da nossa cultura. Isso é educacional né Guilherme, a gente não valoriza a nossa cultura e somos colonizados. Essa mentalidade precisa mudar. 

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