Oganpazan
Resenha, Shows

Emicida & OQuadro em uma noite inspiradora!

emicida oquadroNuma noite de iluminação, OQuadro e Emicida mostraram as várias possibilidades do rap nacional, abertas por seus talentos e pela ousadia.

Na última noite de sábado (21/11) Salvador foi tomada por grandes shows de rap, que trouxeram grandes nomes da cena brasileira para um diálogo estético em pé de igualdade com os artistas locais. 

No Rio Vermelho a consolidada festa Trap Crew recebeu Rapadura (CE) & Elvis Kazpa. No Pelourinho estiveram trabalhando em praças próximas uns dos outros, na Pedro Arcanjo: Nova Era, DaGanja, Mauricio DTS (Detentos do Rap), Big & Jr. RDG (Rapa da Godoy) e Negredo (SP). E na Tereza Batista, o grupo Matiiilha lançando o seu cd M.A.R.R.A (Método Assertivo de Revolução Racional Articulada).

Ou seja, uma noite cruel para o apreciador da cultura hip-hop e da boa música, afinal escolher um é abrir necessariamente mão dos outros – era preciso selecionar um dos shows. O Oganpazan se inclinou a ir apreciar o rapper Emicida que vinha à cidade lançar o show de Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015). As últimas posturas, entrevistas, os discursos em cima dos palcos, o próprio disco e a pedrada que o clipe de Boa Esperança representaram nos últimos tempos, foram os motivos principais desta escolha. E ele, estando luxuosamente acompanhado na grade da noite pelo OQuadro, não nos deixou opção naquela noite.

Outro evento marcante desta noite de sábado foi a subida do Vitória para a primeira divisão do futebol brasileiro, fato que na minha saída de Macaúbas me fez atravessar as ruas tomadas por carros de seres alucinados que tocavam o irritante: “oh oh oh oh Vitória”. Esse outro evento menor, me fez de certa forma compartilhar da alegria que naquela noite parecia tomar conta da cidade, independente de bandeiras e dos gostos, a satisfação e os bons encontros pareciam ser a destinação da noite.

Já na porta do Trapiche Barnabé, um encontro ocorreu e (mal sabia eu) daria a chave para que eu pudesse entender melhor a noite, atribuindo-lhe o sentido que aqui lhes narro. Uma verdadeira deusa africana se encontrava na porta lateral da casa esperando ansiosamente que os portões abrissem. E ansiedade que é boa matamos em geral conversando, entre um cigarro e outro, ela me falava da forte impressão com que a cidade lhe marcara. Perguntava curiosa, sobre características de São Salvador, oportunidades de emprego, bairros legais, outras opções culturais. Narrava acontecimentos em sua curta passagem, de acordo com ela aqui se iniciará um novo momento em sua vida, pois ela pretende se mudar pra cá o mais rápido possível.

Lá pras tantas passa um cara vendendo cd’s da banda OQuadro, e pensando eu que aquela aquisição seria para ela algo único, sugeri veementemente que comprasse. Ela olhou e olhou e por fim desistiu da compra. Mas em seguida me perguntou: “E essa é a banda que vai tocar hoje também?” A que prontamente respondi: “SIM, e você vai pirar com o som!”

Eis que um terceiro personagem aparece. Na verdade ele já estava por ali, mas o meu ser inebriado não permitiu que o citasse até aqui. Assim como a deusa africana ele também era paulista, morador recente da nossa city, mas, ao que parece, neófito no nosso rap. Perguntou também pela banda em questão. No afã de dar uma descrição superlativa e que ao mesmo tempo aguçasse o interesse, mandei algo do tipo: “Eles são como um The Roots Baiano. São do sul do estado, mas já tocaram na Europa, inclusive num dos maiores festivais do mundo, o Roskilde”.

Obviamente, o peso da tradição operou contra mim e o paulista deu aquela característica torcida de boca que parecia significar: “Que cuiuda da porra!” Veja você, The Roots baiano kkkkkkk. Enfim, a conversa prosperou e logo os portões se abriram. Nós todos entramos e já lá dentro comecei a procurar o melhor lugar para observar o show. Me despedi amigavelmente dos paulistas que esperavam sobretudo e ansiosamente a apresentação do Emicida e fui para o lado oposto pelo qual entramos, para me posicionar ao lado da turma do gargarejo.

O que ocorreu daí em diante foi o velho jogo de cartas marcadas que este que vos escreve já previa e que apenas pode, com a experiência adquirida e a atenção devida, registrar anotando os detalhes cuidadosamente no caderninho.

Uma Banda de Rap 

Com toda certeza não se configura em exagero dizer que a banda de Ilhéus no sul da Bahia é uma das manifestações mais vitais da música brasileira atual. OQuadro pra início de conversa consegue diferenciar-se da maioria das expressões do rap nacional por fazer um som orgânico que traz junto a qualidade poética de três mc’s muito bons.

A banda é certamente o diferencial num país com excelentes rappers, mesclando diversas influências rítmicas à letras contundentes e prenhes de uma verve irônica. Nesse jogo, percebemos um crescimento mútuo, onde a banda puxa o limite dos compositores-letristas para que esses consigam colocar seu flow e composições em cima de outras possibilidades musicais.

Para quem foi presenciar apenas o “grande” show da noite, certamente saiu com aquela sensação de que ganhou um mega bônus. Mas quem foi curtir a noite sabendo o que ia encontrar ganhou bem mais. O show de OQuadro apresentou uma mescla de músicas já conhecidas do público com outras mais recentes e presentes na Mixtanêa recentemente lançada. Além disso, tiveram uma inédita em registros físicos e lançamentos virtuais como plus da noite.

O show abriu com BalançuQuadro, velha conhecida mas que certamente ainda está longe de perder a força. A música abre o disco de estreia dos caras e aqui serviu também de abre alas. Já na segunda música veio Tropeços, onde Rans e Freeza seguram uma rima muito forte, flowzando sobre a persistência, acompanhados do baixo viciante do Ricó, que sempre atravessa as músicas com um groove sinistro.

Planeta Diário apresentou para um público já atento ao desconhecido o planeta OQuadro. Lugar de críticas às visões hegemônicas do “primeiro mundo”, reflexões éticas, críticas à intolerâncias e otras cositas más que seriam explicitadas no desenrolar da noite. Tudo isso embalado pela guitarra monstruosa de Rodrigo Dalua, que mandou um excelente solo levando os ouvidos mais atentos ao delírio.

Jesus Cristin é uma das músicas que mais ouço há três meses e com seu groove inaudito balançou o público. Nessa hora me fez sentir além do peso e do balanço da faixa em questão. Uma mão me toca por trás e quando me viro para ver de quem se trata vejo a deusa africana já completamente tomada por um enorme sorriso, dançando e com os olhos vidrados no palco. Quando a música acabou ela proferiu as seguintes palavras: “Estou em êxtase!” Ao que eu só pude responder: “Calma, estamos apenas no começo da noite”.

Evolui, já foi cantada em uníssono. E cá pra nós o jogo estava ganho de 5 x 0. Os bem aventurados manos da terra do Cacau faziam a endorfina trabalhar fortemente nos cérebros ali presentes. Tomaram todos pelo ouvido, mas como não era uma disputa e sim uma confraternização de origem africana. Os caras seguiram noite a dentro desfilando novos e já conhecidos sucessos. Where I’m From, que na recente Mixtânea (um cruzamento mutante de mixtape com músicas inéditas e conhecidas) conta com a participação do rapper nigeriano African Boy, foi tocada apresentando as conexões estrangeiras ao público.

Jef Rodrigues, a certa altura do show, bradou boas ideias contra as posturas dos fakes no nosso rap, o que naquele momento já recebia da autenticidade e das singularidades apresentadas pela banda toda a autoridade para tal. Certamente para muitos, ver e ouvir a deliciosa: Fogos de Artificio Para O Precipício Á Vista, cantada de forma mais tradicional como uma canção, foi uma surpresa. Ricó terminava de escaldar tudo mostrando que, além do veneno das linhas do seu baixo, ainda é capaz de expressar doçura na voz.  

Quando Filme foi tocada, a princesa perdeu momentaneamente toda a compostura “real” e soltou um grito. O show não dava ainda sinais do seu crepúsculo. O ritmo e a consistência da apresentação em momento algum dava sinais de cansaço. Seguiram-se entre outras: Sapoca uma de Cem – que tive que explicar pacientemente aos paulistas – e Vacilão, música nova que Freeza emanou com toda a qualidade que lhe é peculiar.

Tá Amarrado – um petardo contra a intolerância religiosa, um dos temas que a banda combate e que veio com a participação do grande rapper, grafiteiro, tatuador, enfim multi talentos: Dimak. Ele que já fez (e ainda faz, afetivamente) parte do OQuadro, apareceu nessa e na última do set list: Música das Músicas.

Um showzaço tinha acabado de ser presenciado, a noite já chegava na sua metade com uma intensidade fantástica. Todos tinham sido guiados para a luz. Os paulistas estavam de cabeça feita, a Princesa veio me falar que não acreditava como não conhecia essa banda. Acho que um forte pontapé foi dado para que ela venha realmente para o nosso estado, só espero que depois dessa ela não pare lá por Ilhéus. 

Um Rapper com Banda

Acompanhar o pleno desenvolvimento de um gênio é um privilégio para poucos. Sim eu sei, tal estilo te atrai mais, ou aquele outro rapper te emociona mais ou talvez gênios sejam apenas aqueles que você elegeu. Mas independente do gosto pessoal, o Leandro, o homicida de rappers, agora plenamente Emicida, forjou um estilo inconfundível. Vem construindo uma obra que já o coloca como um dos elementos históricos do rap e ao mesmo tempo como um dos principais artistas do país hoje.

Confesso que de minha parte ainda não o tinha visto se apresentar com banda, e as apresentações esporádicas que vi do último disco via internet não tinham demonstrado com exatidão a reprodução do seu disco na mesma potência com que foi gravado em estúdio. Sobre as impressões que o disco deixou eu já não tenho muito o que dizer, foi tudo registrado aqui. Mas minha curiosidade ia um pouquinho além do mero curtir o disco ao vivo. Precisava ver como se mantinha essa experiência dele com um som mais orgânico que começou no seu disco anterior O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui (2013). 

E o fato incontestável é que toda a atenção que hoje recai no artista é fruto de um trabalho de excelência que ficou notório no cantar de mais de 2000 pessoas de quase todas as canções – se não de todas. Sejam as que trazem aspectos mais poéticos e com um forte flerte com o pop radiofônico (como Passarinhos e Madagascar), seja de clássicos. Sim, você leu direitinho. Clássicos como: Levanta e Anda, Zica, Triunfo. Um show maravilhoso em todos os aspectos, um clima de comunhão que se deu inclusive na dobradinha dos artista da noite.

O rap buscando outras possibilidades musicais que os xiitas acreditam ser moda se fechando num corpo ossificado que só é capaz de unicamente balançar a cabeça com o YA (sim) do burro. A noite de sábado foi lugar de dançar com África como em Mufete. E diga-se de passagem é preciso bem mais molejo e de verdadeira malandragem para acompanha-la. Na verdade, antes da entrada da banda, a seleção de músicas escolhidas já era matadora. Minutos antes de entrar no palco, ouvíamos uma sequência de Gilberto Gil, com Ilê Aye e Patuscada de Gandhi, aonde vai papai Ojô?

Emicida mostrou uma presença de palco marcante, numa desenvoltura que apenas veteranos mostram, daquele jeito que faz muitos pensarem ser fácil. Boa Esperança (um dos petardos do último disco) apresentada como segunda música do seu set, fazia todos cantarem o refrão e a música inteirinha, levando a adrenalina às alturas. Vestido com um conjunto de padrões iguais em preto e branco sua apresentação era um verdadeiro lasquinê preso, não corre ninguém.

Eu já na quarta música corri pra comprar uma cerveja e verificar outros rostos na passagem, sentindo qual o clima percorria aqueles que eu observava. E todos estavam de cara, emocionados demais. Não olhei para ninguém que estivesse conversando ou sem prestar plena atenção ao que acontecia no palco. Segui mais para o fundo em busca de outras percepções e encontrei outros amigos da cena local que também assistiam atenciosos, com o olhar treinado de quem sabe o que está rolando mas reconhece que está, na real, aprendendo. 

Baiana, cantada com a leveza e a beleza foi capaz de personificar todas as lindas que lá estavam. Emocionou geral e certamente embaralhou a percepção de muitos que naquele momento esqueceram a origem regional do Mc. Os casais se abraçavam, beijos eram desfrutados, certamente houveram juras secretas de amor trocadas entre o público. Minha atenção querendo se desviar para a Princesa, que a esta altura já estava em Casa – última música antes do bis. Ela que quer vir pra Salvador se colocar mais profundamente em suas raízes e ao mesmo tempo mudar da selva cinza de sua terra natal.

Todas as minhas dúvidas tinham evaporado com o suor que a cada música vertia dos meus poros com mais força. Quando Zica tocou, não resisti e tive que acompanhar a coreografia, assim como quase todos que estavam ao meu lado. Mandume mesmo sem a participação dos outros Mc’s que gravaram a música funcionou perfeitamente. Afinal, ninguém parece ter resistido ao refrão matador: “eles querem que alguém, que vem de onde nós vem, seja mais humilde, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda, eu quero é que eles se fodam”.

Um show grandioso de quem já mordeu cachorro, mas que foi lá e venceu, numa revolução pessoal que de silenciosa não tem nada. Mulheres, homossexuais, diáspora, nossos pesadelos encontram acolhida e voz na obra de Emicida e tudo isso com a força da mescla dos beats com uma banda competente, mandando groove nos afrobeats, floreando com swing, compondo um excelente espetáculo musical. A apresentação de Mãe ao vivo para nós foi um signo mais forte do que no disco; impressionante a força dessa música tocada com uma vitalidade incrível.

O show terminava com uma tríade matadora: Rinha, Levanta e Anda e Salve Black. Não encontrei mais a Princesa que certamente voltava ao hotel com a mesma impressão que eu: uma noite inesquecível. Talvez nunca mais nos vejamos, não trocamos contato nem nada. Mas certamente ela nunca deixará de lembrar da primeira vez que viu OQuadro, da mesma forma em que poderá dizer aos conterrâneos que o show do Emicida em Salvador foi genial. Acredito que ninguém duvidará.  

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