Ellington, Mingus, Roach e a liberdade de expressão no Jazz, um disco clássico reunindo três dos maiores da história
Um músico que se destaca, seja ele sanfoneiro ou saxofonista, é aquele que questiona convenções. Um eremita, que inserido no contexto sônico, vê como o homem pode ser uma ilha. Nessa relação de troca, ser humano e instrumento se fundem para atuar como extensões do ser criativo.
Inquirir é algo intrínseco a arte. A música, claro, fez e faz isso de diversas maneiras, mas o Jazz em termos de manifestação artística talvez seja a vertente que mais questionou o groove. Seja por meio do experimentalismo ou pela resistência, o Jazz é um estilo personificado e que eterniza nas entranhas do músico um modo de vida e uma musicalidade que estão todas condensadas nesse termo que o Miles Davis detestava.
Foi em Paris, lugar que recebeu mestres como Charlie Parker e Eric Dolphy tão bem que ele encontrou a liberdade necessária para expor suas ideias. E sabem o por quê? Por que nos Estados Unidos um arranjador negro estava preso ao circuito de Big Bands, isso quando ele conseguia chegar nesse patamar.
Bebop, Hard-Bop, pouco importa. A linguagem vai acima de qualquer taxidermia e no fim quem gosta disso é jornalista. É tudo pelo benefício do take. Chegar o mais próximo do som e da maneira mais orgânica possível, respeitando a individualidade e ressaltando sempre a interação entre os músicos ali presentes. Nada é imposto, no fim trata-se de uma conversa.
Funciona como se fosse um exercício, é como a meditação. Depois de muito treino ela atinge níveis tão estratosféricos quanto o entrosamento místico que permeou uma das colaborações mais categóricas do Jazz. “Money Jungle” é o tratado responsável por unir Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach numa gravação de fato preciosa.
A sessão aconteceu em setembro de 1962, mas o lançamento só ocorreu em fevereiro de 1963. É um disco tão poderoso quanto um legado, passado de geração à geração, sempre pregando a valorização do som. É isso que esse disco mostra tão claro como a água.
Duke estava com 63 anos na época, Mingus já estava na casa dos 40 anos, enquanto Roach estava estacionado nos 38 verões. Segundo o próprio Max, os 3 se conheceram 1 dia antes da gravação e a única coisa que Duke deixou clara foi que não tocaria apenas seu próprio material. O contraditório, no entanto, é que boa parte das composições do disco são do maestro. Contudo, é válido ressaltar como Mingus e Roach fizeram a abordagem do pianista mudar.
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É uma gravação impecável e que inclusive dispensou ensaios. Eles chegaram, sacaram as composições e depois deram play. O resultado é de uma riqueza fantástica e o set toma conta do espaço de tal forma que a impressão é que cada nota foi tocada à ferro e fogo. Cada segundo soa absolutamente definitivo e é notório como cada um dos 3 valoriza cada nota que reverbera nos ecos deste Post-Bop.
Duke gravou trabalhos fantásticos em trios, quartetos e até duos, apesar de muitos darem enfoque no seu trabalho com Big Bands. Esse disco ajudou bastante nesse descolamento e até pode ter sido o catalizador para outras gravações do período, como na colaboração ao lado de Coltrane em “Duke Ellington & John Coltrane” (que saiu pela IMPULSE! em 1963).
Voltando à gravação em questão, apesar de ser curta – o disco não chega aos 31 minutos de duração – cada nota é preciosa. São 7 temas maravilhosos e que merecem um olhar atento, justamente em função da natureza dessa reunião de soberbos instrumentistas.
Começando pela faixa que nomeia o registro, o trio se confronta num groove vigoroso e à primeira vista atravessado. Duke contracena com uma das sessões rítmicas mais cavernosas do Jazz, onde Max tem o desafio de preencher o espaço tempo para uma duplas no mínimo contrastante: o veludo de Duke, harmonizando contra as linhas ariscas de Mingus, sempre revelando diversas tonalidades presentes no vocabulário da improvisação.
Com “Fleurette Africaine”, o combo surge com uma performance quase intrigante, porém igualmente impactante, tal qual o tema anterior. Ellington aparece com aquelas poucas notas munidas da exatidão dos grandes standards. Mingus surge sincopando um arpejo, emulando texturas, enquanto Max acentua a dramatização com uma percussão quase tribal.
“Very Special” é um tema pra quem diz que o Mingus não tem swing. Max faz a cama na sessão, enquanto – o às vezes pianista – aparece no walking bass mais bem harmonizado que o senhor verá. Duke vem com classe, mas ao mesmo tempo trás agressividade ao som e é notável como isso dita o ritmo nos embates de Mingus e Max. A interação é bastante prolífica e o som nunca chega numa via sem saída.
Esse traço, aliás, é algo que permeia o disco todo, até nas baladas, como na delicada “Warm Valley”, onde Duke surge com mais uma frase arrebatadora. A bateria de Max conduz, mas ocupa espaço no som de maneira bastante minimalista, porém marcante. Mingus, por sua vez, acompanha Duke no cangote, sem perder o tato no balanço.
A próxima empreitada é “Wig Wise”. Com ela, Max está em casa, atacando e ao mesmo tempo dando forma. O lirismo de Duke oferece um campo rítmico riquíssimo para Mingus. Em termos de dinâmica, esse tema talvez seja um dos temas mais interessantes pra sacar o entrosamento da cozinha. O som é bastante moderno e mostra um Duke com grande apetite. É um encontro que promove rara inspiração para esse forma de expressão que na faixa seguinte surge na forma de um clássico.
É com “Caravan” que o trio atinge outro patamar. É como se a versão deles fosse um standard à parte do que já existia. A maneira marcante como Duke chega nos acordes, acentuando em cada oportunidade…. Max aparece numa linha percussiva, administrando o tempo de Mingus até os 3 entrarem no som definitivamente. A versatilidade de Roach é impressionante. Vai do tribal ao Bebop em 5 segundos, enquanto Mingus engrossa o caldo no bass para que Duke não os faça perder a forma. Nunca vi uma versão tão alquímica para esse som. É de uma entrega poderosa.
Pra fechar esses sagrados poucos mais de 30 minutos de som, outro standard – também de Duke – dessa vez com “Solitude”. Outra balada para encerrar uma jornada desafiadora e que definitivamente eterniza um Jazz bastante moderno e Punk, mesmo com um senhor de mais de 60 anos envolvido. É um sopro de ar fresco frente à desconfiança e a falta de objetividade no contexto musical.
Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach, senhoras e senhores
-Ellington, Mingus, Roach e a liberdade de expressão no Jazz
Por Guilherme Espir