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Ellington, Mingus, Roach e a liberdade de expressão no Jazz

Ellington, Mingus, Roach e a liberdade de expressão no Jazz, um disco clássico reunindo três dos maiores da história 

Um músico que se destaca, seja ele sanfoneiro ou saxofonista, é aquele que questiona convenções. Um eremita, que inserido no contexto sônico, vê como o homem pode ser uma ilha. Nessa relação de troca, ser humano e instrumento se fundem para atuar como extensões do ser criativo.

Quando isso acontece, a música deixa de ter barreiras. O compositor irrompe limites e passa a traçar formas de aglutinar referências, mesclando linguagens para expandir os territórios do som – mesmo que pra isso alguns puristas tenham que ter um troço – pouco importa. Foda-se.
Essa liberdade para poder se expressar e até mesmo confrontar o seu público… Mingus fez muito isso. Em 1957 quando gravou o excelente “The Clown”, a faixa de mesmo nome é um conto de 12 minutos (com narração de Jean Sheperd), sobre um palhaço que tentava agradar ao seu público, solenemente, como muitos músicos de Jazz faziam – segundo a opinião de Mingus à época. A própria capa – um retrato ao melhor estilo Coringa – é uma sátira da autoria das lentes de Marvin Israel. Na versão de Charles, o palhaço terminava o ato e se matava com um tiro na cabeça, depois de tanto se esforçar por uma risada. Na narração de Jean, o Jazz deixa tudo para a conclusão do ouvinte, no melhor estilo Bentinho X Capitu.

Inquirir é algo intrínseco a arte. A música, claro, fez e faz isso de diversas maneiras, mas o Jazz em termos de manifestação artística talvez seja a vertente que mais questionou o groove. Seja por meio do experimentalismo ou pela resistência, o Jazz é um estilo personificado e que eterniza nas entranhas do músico um modo de vida e uma musicalidade que estão todas condensadas nesse termo que o Miles Davis detestava.

Não é uma ceita, tampouco uma tentativa de fidelizar o leitor na Igreja de Coltrane, é um fato. O movimento negro, a ancestralidade e a forma como essa vertente conseguiu preservar o DNA das diásporas é algo riquíssimo e que sempre revela traços de um gene único. É maior que nós mesmos. É como se fosse a capa do Pharoah Sanders no “Karma”, lançado em 1969. Todos Jazzeando, como instrumentos de uma mensagem que brinca com o tempo e o espaço, se mostrando muito maior que as 4 letras que definem do Funk ao Free.
O Jazz possibilitou ao homem negro a possibilidade de adentrar novos ciclos. Quincy Jones virou arranjador à partir de um disco da cantora Dinah Washington (“For Those In Love” – 1955). Depois de alguns anos, já “cansado” de arranjar para Big Bands, Quincy queria reger e fazer trilhas de filme – já no universo da música clássica – e lá adentrou outro ciclo que em teoria ele não deveria orbitar.

Foi em Paris, lugar que recebeu mestres como Charlie Parker e Eric Dolphy tão bem que ele encontrou a liberdade necessária para expor suas ideias. E sabem o por quê? Por que nos Estados Unidos um arranjador negro estava preso ao circuito de Big Bands, isso quando ele conseguia chegar nesse patamar.

Bebop, Hard-Bop, pouco importa. A linguagem vai acima de qualquer taxidermia e no fim quem gosta disso é jornalista. É tudo pelo benefício do take. Chegar o mais próximo do som e da maneira mais orgânica possível, respeitando a individualidade e ressaltando sempre a interação entre os músicos ali presentes. Nada é imposto, no fim trata-se de uma conversa.

Funciona como se fosse um exercício, é como a meditação. Depois de muito treino ela atinge níveis tão estratosféricos quanto o entrosamento místico que permeou uma das colaborações mais categóricas do Jazz. “Money Jungle” é o tratado responsável por unir Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach numa gravação de fato preciosa.

A sessão aconteceu em setembro de 1962, mas o lançamento só ocorreu em fevereiro de 1963. É um disco tão poderoso quanto um legado, passado de geração à geração, sempre pregando a valorização do som. É isso que esse disco mostra tão claro como a água.

Duke estava com 63 anos na época, Mingus já estava na casa dos 40 anos, enquanto Roach estava estacionado nos 38 verões. Segundo o próprio Max, os 3 se conheceram 1 dia antes da gravação e a única coisa que Duke deixou clara foi que não tocaria apenas seu próprio material. O contraditório, no entanto, é que boa parte das composições do disco são do maestro. Contudo, é válido ressaltar como Mingus e Roach fizeram a abordagem do pianista mudar.

https://open.spotify.com/album/5I3aoewqDpP4TglIl9O7su?si=tJ_vA4UWQByweTdjLsgiAQ

É uma gravação impecável e que inclusive dispensou ensaios. Eles chegaram, sacaram as composições e depois deram play. O resultado é de uma riqueza fantástica e o set toma conta do espaço de tal forma que a impressão é que cada nota foi tocada à ferro e fogo. Cada segundo soa absolutamente definitivo e é notório como cada um dos 3 valoriza cada nota que reverbera nos ecos deste Post-Bop.

Duke gravou trabalhos fantásticos em trios, quartetos e até duos, apesar de muitos darem enfoque no seu trabalho com Big Bands. Esse disco ajudou bastante nesse descolamento e até pode ter sido o catalizador para outras gravações do período, como na colaboração ao lado de Coltrane em “Duke Ellington & John Coltrane” (que saiu pela IMPULSE! em 1963).

Voltando à gravação em questão, apesar de ser curta – o disco não chega aos 31 minutos de duração – cada nota é preciosa. São 7 temas maravilhosos e que merecem um olhar atento, justamente em função da natureza dessa reunião de soberbos instrumentistas.

Começando pela faixa que nomeia o registro, o trio se confronta num groove vigoroso e à primeira vista atravessado. Duke contracena com uma das sessões rítmicas mais cavernosas do Jazz, onde Max tem o desafio de preencher o espaço tempo para uma duplas no mínimo contrastante: o veludo de Duke, harmonizando contra as linhas ariscas de Mingus, sempre revelando diversas tonalidades presentes no vocabulário da improvisação.

Com “Fleurette Africaine”, o combo surge com uma performance quase intrigante, porém igualmente impactante, tal qual o tema anterior. Ellington aparece com aquelas poucas notas munidas da exatidão dos grandes standards. Mingus surge sincopando um arpejo, emulando texturas, enquanto Max acentua a dramatização com uma percussão quase tribal.

“Very Special” é um tema pra quem diz que o Mingus não tem swing. Max faz a cama na sessão, enquanto – o às vezes pianista – aparece no walking bass mais bem harmonizado que o senhor verá. Duke vem com classe, mas ao mesmo tempo trás agressividade ao som e é notável como isso dita o ritmo nos embates de Mingus e Max. A interação é bastante prolífica e o som nunca chega numa via sem saída.

Esse traço, aliás, é algo que permeia o disco todo, até nas baladas, como na delicada “Warm Valley”, onde Duke surge com mais uma frase arrebatadora. A bateria de Max conduz, mas ocupa espaço no som de maneira bastante minimalista, porém marcante. Mingus, por sua vez, acompanha Duke no cangote, sem perder o tato no balanço.

A próxima empreitada é “Wig Wise”. Com ela, Max está em casa, atacando e ao mesmo tempo dando forma. O lirismo de Duke oferece um campo rítmico riquíssimo para Mingus. Em termos de dinâmica, esse tema talvez seja um dos temas mais interessantes pra sacar o entrosamento da cozinha. O som é bastante moderno e mostra um Duke com grande apetite. É um encontro que promove rara inspiração para esse forma de expressão que na faixa seguinte surge na forma de um clássico.

É com “Caravan” que o trio atinge outro patamar. É como se a versão deles fosse um standard à parte do que já existia. A maneira marcante como Duke chega nos acordes, acentuando em cada oportunidade…. Max aparece numa linha percussiva, administrando o tempo de Mingus até os 3 entrarem no som definitivamente. A versatilidade de Roach é impressionante. Vai do tribal ao Bebop em 5 segundos, enquanto Mingus engrossa o caldo no bass para que Duke não os faça perder a forma. Nunca vi uma versão tão alquímica para esse som. É de uma entrega poderosa.

Pra fechar esses sagrados poucos mais de 30 minutos de som, outro standard – também de Duke – dessa vez com “Solitude”. Outra balada para encerrar uma jornada desafiadora e que definitivamente eterniza um Jazz bastante moderno e Punk, mesmo com um senhor de mais de 60 anos envolvido. É um sopro de ar fresco frente à desconfiança e a falta de objetividade no contexto musical.

Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach, senhoras e senhores

-Ellington, Mingus, Roach e a liberdade de expressão no Jazz

Por Guilherme Espir

 

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