A Fraternidade Maus Elementos lança sua primeira mixtape – Eles não vão perdoar – e não deixam pedra sobre pedra.
Depois de ouvir no repeat o novo disco da Fraternidade Maus Elementos, fiquei me perguntando de que forma iria abordar a multiplicidade de temas, os enfoques mais loucos, a qualidade e diversidade de flows que os caras prepararam nessa primeira mixtape. Primeiro me encantou ver que os trabalhos individuais não foram aqui colecionados, antes os alquimistas diluíram suas venenosas rimas e dosaram conjuntamente os diversos flow’s num caldo coletivo que bate onda. Pra quem acompanha o rap ba, sabe que muitos dos maus elementos aparecem em muitos trabalhos de outros mc’s e grupos, sejam como beatmakers ou como mc’s, são nomes que sozinhos se mantem de pé com força na cena. Não me entendam mal, a identidade de cada componente esta presente em cada faixa, no entanto é o trabalho coletivo quem se sobressai.
O que não é fácil, aja vista a qualidade de todos os presentes, a força de suas identidades e o que já é difícil por si só: trabalho coletivo, ainda mais artístico. Genialidade em termos de produção exatamente por conseguir juntar tantos mc’s e ao mesmo tempo criar um rosto próprio. O que vemos não é um rostinho bonito, mas um mosaico agressivo e grotesco. Muito peso, rap’s complexos em suas propostas líricas, flows agressivos e extremamente originais, beats e samplers que privilegiaram a cadência rítmica, tudo bem dosado. Victor Haggar e Diego 157 no comando das produções deixaram mais do que claro porque são solicitados em muitos trabalhos como beatmakers. Sem esquecer que os dois elementos, maus que são, também apresentam-se grandiosamente nos mics.
Oddish é outro componente químico provocando delírios assustadores, sujeira de quilo, intenso e rápido como uma viagem de crack. Ele que ano passado lançou seu primeiro disco: Ponteiros Voam Como Jatos, se junta a Lukas Kintê no flow nervoso, angustiado e matador. O mano figurou num dos nossos top 5 dos EP’s de Rap alguns meses atrás com o seu 1º Episodio. Fecha também com essa Fraternidade um dos melhores rappers da cena, figura tão importante que é difícil não encontra-lo nos melhores trabalhos do rap baiano. Galf AC, que não é nem um pouco cordial na força de sua arte, cola e engrandece o trampo. Dj Rani, Tiago Negão, Bolsh, Gold e Márcio M.U completam o time com uma força absurda, completando-se e expandindo-se mutuamente nas rimas, elevando o nível do “game”.
A escuta atenta me fez lembrar o mestre Glauber Rocha dizendo que a “memória é uma ilha de edição” e com certeza um dos aspectos fortes do disco é certa perspectiva cinematográfica que algumas músicas denotam. Como aqueles filmes coletivos onde diversos diretores produzem curtas metragens sobre um determinado tema em comum. Em Eles Não Vão Perdoar (2015), cada música é uma coleção dessas visões editadas sobre batidas pesadas, de cadência posta a privilegiar a força das imagens e das mensagens. Esse devir cinema presente nas poesias da Fraternidade se constrói na sintaxe louca e entrecortada dos mc’s. A disposição das palavras nas rimas muitas vezes seguindo ora em planos sequência descrevendo cenários e atitudes, ora em cortes rápidos e certeiros dando-nos apenas sensações e percepções curtas mas não menos intensas.
Para além das referências explicitas a Einsenstein, Hitchcock, Stephen King, os poetas e maus elementos, fazem seus “Eus líricos” nos rap’s assumirem muitas vezes personas diversas, psicopatas assustadores, revolucionários anarquistas, gangueiros, iconoclastas, santos e pecadores. São muitos os olhares transmitidos, muitas as sensações suscitadas, muitas as ideias trabalhadas, num liquidificador triturando subjetividades e produzindo um ódio politizado que não perdoa ninguém.
Pesadelos
Uma longa apresentação do bando, esclarecendo de saída que bom moço é mato, e o espaço por onde os loucos caminham é o caos. Subjetividades insanas, sujeitos atribulados, violência urbana que cotidianamente se faz presente. Tudo isso sendo subvertido pelos Maus Elementos com muita atitude nas rimas e nas ideias de resistência. Retirando desse cenário e desses tempos sua substância, pois crescidos e se desenvolvendo sob todas essas dificuldades. Com muita disciplina, criatividade e lealdade num clube onde todos estão em Má Companhia, mas quem disse que os Maus são o Mals? Pros desavisados valeria uma lida na primeira seção da Genealogia do Moral do pensador alemão Friedrich Nietzsche e sua distinção entre Bom e Bem, Mau e Mal.
Os Maus elementos lutam contra todos os valores que se querem universais, mas que mascaram no mais das vezes excelentes mecanismos morais para opressão daqueles que divergem. O Bom pensamento (daqueles que pregam a igualdade abstrata e não reconhecem a história de opressão), as boas almas (daquelas que pregam que alma não tem cor), a boa moral (daquelas que adoram a meritocracia), a boa música (daqueles que não reconhecem a música do gueto) etc… Os Maus Elementos afirmam, flow, essência, rima e atitude, como suas grandes virtudes, música de preto, feita pelos maus de coração capazes de transvalorar o jogo a favor da favela.
Disciplina de faquires, artistas da fome – lembranças de Kafka – transformando dificuldades com muita ideia forte e criatividade. Os manos fazem uma obra visceral e tecnicamente competente de forma independente, com poucos recursos, demonstrando que são animais indomáveis. F.E.R.R.A II, é a segunda track da mixtape, e promove um festival de sangue, arrancando vísceras, crânios e outros órgãos, dos falsos nessa parada, tocando terror pra cima de quem pensa faltar consciência e desobediência civil em alta intensidade.
Pensar o tempo em que se vive é um trabalho árduo e Bolsh consegue em Psicose rapidamente nomear uma série de contradições e problemas em toda a politica estrangeira e nacional. Abrindo uma excelente relação entre a realidade mais comum e a ficção terrifica de Hitchcock, que é seguido por Galf AC, mandando a real das perversões dos nossos “jornais” diários. Desvendando uma produção de subjetividades psicopatas – “imaginei amordaçando com a maquita destravada” – produzida por uma sociedade doente. Victor Haggar consegue demonstrar com a frieza e a sutileza de um Hanibal Lecter, em rimas precisas e sofisticadas denotando o quanto vivemos tempos loucos e cruéis. Por fim nessa Psicose, Oddish faz as vezes de um Norman Bates tropical, capaz de enrabar a Von Richtofen em núpcias loucas, encarnando poeticamente a persona do psicopata e fechando brilhantemente a track com a única saída honrada.
Mais um thriller tenebroso em Casa da Colina, cheirando a sangue nesse roteiro que poderia ser transformado num vídeo clipe excelente, com pegadas de gore e nosense. No entanto, é interessante notar que apesar dos efeitos assustadores, todas as cenas “filmadas” pelas vozes nessa música, estão ancoradas num social depauperado. Algo que fica muito claro nas cenas de terror narradas por Tiago Negão, e é preciso pensar nas causas de tanto terror. Resident Evil não poderia ser filmado depois da meia noite ali na Barroquinha? Exagero?
Luta
Mas se você estava achando que os caras se dedicam apenas ao cine trash, é porque não teve nenhum contato com os cabras antes desse texto. A segunda sessão que separamos aqui, poderia ser chamado de Cine Politico, com certa pegada a lá Costa Gravas e Ousmane Sembene, numa luta anti-imperialista. Sangue e Glória emana um pouco de Samuel Fuller (que filmou o clássico Agonia e Glória) também na dramaticidade das descrições. A certeza de buscar a revolução permanente, com prudência contra os senhores feudais contemporâneos. Contra o bando de cuzão que reclama mais nunca estão presentes nas lutas reais, ou que – pior – clamam por mera ignorância e desejos neo-fascistas por ditadura militar.
Pelos Maus, é uma música de apoio aos que lutam mais não encontram o reconhecimento devido pela mídia, mas que não desistem da luta mesmo com dores e sofrimentos monstruosos. Márcio M.U, deixa claro que aqueles que enfraquecem o corre passam e ele e os seus passarinhos, seguem cantando e lutando. Dedo médio pro alto para quem não tem vigor e quer sugar os outros, ao invés de plantar mais revolucionários, preferem tentar derrubar quem tem buscado fazer algo.
Favela é faculdade e entre os Maus só tem dotô, que honram os outros Doutores que caíram na batalha, salve Mc Gardenal. Gold dá ideia e esclarece pra quem não pegou a visão, os 4 Quinas atropelam quem moscar nas ideias e nas posturas fake. O matador Kintê abre com uma mistura de Sun Tzu e Maquiavel, doideira com o beat mais moderninho do disco em Babylon. Aquele ódio politizado que citamos lá em cima, encontra na babilônia seu alvo. Importante ressaltar a aplicação dos refrões nas canções, muitas vezes começando as músicas, outras colocadas a cada dois flows, outras cortanto flow por flow. Essa prática produz um efeito muito interessante nos andamentos durante todo o disco. Em momento algum deixando as músicas se tornarem repetitivas ou como um pop diluído. É musica pop de primeira, apesar de nossas rádios não reconhecerem o potencial popular que as canções tem.
A atuação dos monstros, é obvio, onde chega provoca abalos sísmicos que não passam despercebidos, gravão e rima pesada, tudo treme quando o F.M.E tá na casa e isso pode ser facilmente percebido no disco. Quem já foi nos shows dos caras sabe o quanto é sinistro todos esses monstros em cima do palco. Bate Forte é uma das músicas mais dançantes do disco, sem perder a contundência da mensagem , old school de primeira. Chuva de Napalm e C4 em seus ouvidos, lança chamas apontado pra sua mente, balanço pesado com ideia cheque.
Contra a luta de egos da cena, a Fraternidade se posiciona ferozmente, abrindo a seção de injurias com o dodói Oddish. “Eu beijo na boca da morte e mando essa puta usar Cepacol.” Sinistro e violentamente violento e completado por Diego 157: “Num piscar de olhos o jogo vira/ vira revolução de cronos/ saibam capitães que não temos dono/ voltem pro mato e assumam seus danos.” Potência lírica e poética que se posiciona mas ao mesmo tempo, desloca a discussão para a politica, e não para as meras discussões morais de facebook. Aliás, contra as pseudo denuncias de rede social, a F.M.E. parece escolher a melhor saída: o Trabalho! Victor Haggar fala melhor:” Não falo de paz, não falo da dor/ não falo dessa superfície/mergulham no aquário idolatram o falso /se cobrem nessa imundície.” Eu não posso dizer melhor, a poesia sempre fala mais alto.
A boêmia parece ser um traço comum a todos os verdadeiramente maus, apesar de Oddish não tomar nova schin e ainda por cima ostentar de Quilmes – Oxente Nigga? Os Boêmios da Fraternidade vão buscar na verdadeiramente diva da boêmia e da decadência Amy Winehouse, a inspiração para uma reflexão sobre os diversos modos de ser. Entre o certo e o errado, Gold reflete sobre o passado, buscando traçar a linha da melhor conduta, com prudência e mantendo-se vivo de verdade. Produção de vida, possibilitada pelo rap, onde ás vezes a vontade de estar insurgente pode ser facilmente confundido com a vida criminosa. Restando ao hip hop o papel de instruir para a melhor canalização dessa força que não se adapta ao medíocre das vidinhas de todo dia igual.
Todos nós que estamos ligados sabemos o que vem se fazendo ao longo dos últimos 400 e tantos verões com o nosso povo. O técnico genocida Rui Costa e sua artilharia encontraram aqui a resposta adequada para o seu constante campeonato de matança. Toda força a Hamilton Borges e a campanha Reaja ou será Morto, e certamente todo apoio as famílias que tiveram seus filhos – 12 bolas colocadas no saco pelos nossos geniais artilheiros da Policia Militar Baiana. Nunca esqueceremos Davi Fiuza, e a dor de sua mãe impossibilitada de enterrar seu filho. Nós sabemos o que eles fizeram no Verão Passado.
O disco termina com chave de ouro, capaz de trancar no limbo, céus e infernos e todas suas hipocrisias por toda a eternidade. Desvendando todos os mecanismos que fazem muitos entenderem homens como seres sagrados, ao mesmo tempo, que disfarçam o desespero sem sentido da vida. Os enriquecimentos ilícitos e a intolerância religiosa, os preconceitos contra outros seres humanos por conta de suas opções sexuais. Toda defesa e proteção a ancestralidade de matriz africana, “Ogum não entra em nada”, buscando caminhos mais realmente religiosos, “doutrinando Exu” canta Kintê. Márcio M.U deixa muito claro o que todos sabemos: “Perdão óh pai, pois eles querem e sabem o que fazem/Em benefício próprio matam, roubam e invadem.” É muito melhor cultivar a ética dos maus do que idolatrar um velho livro de história como verdade absoluta.
Resistência
Obviamente essa parte do cinema já esta contida nas outras duas, seja pela capacidade de estar atento às doenças psicológicas que advém de uma sociedade enferma, seja pela força em se manter integro em sua arte e nas posturas diante de tantas dificuldades de produzir e estar vivendo de música e ao mesmo tempo se manifestar com veemência diante de assuntos que muitos preferem calar. Porém a F.M.E. dá-nos uma lição extra na medida em que conseguem reunir várias cabeças caras e ainda assim se manter coeso e politicamente unido – não totalitário – em suas propostas. De minha parte jamais perdoarei, tamanho nó que essa mixtape deu em minha cabeça, ressalto também o caráter parcial desta resenha. Restando outros olhares capazes de abarcar melhor tamanha quantidade e qualidade no trato com as referências e temas. Enfoques que certamente fogem do comum em seus tratos poéticos. Já bastasse as várias cabeças caras da banca, foram ao cemitério maldito e desenterraram um mc’s foda, Bolsh para engrandecer a banca. Já bastava de filme de terror, aí foram em busca de um cara afim de Buñuel e congêneres.
Esperamos sinceramente que essa mixtape caia também nas mãos das outras mídias do sudeste e que estas deem a visão correta sobre o trabalho, que certamente figura entre os melhores do ano, no cenário nacional. A Bahia tem produzindo ao longo dos anos, mas especialmente este ano, onde podemos falar com um pouco mais de propriedade, trabalhos que emparelham com o que se quer de melhor do rap nacional. E esse aqui não tem perdão!
Não perca tempo e ouça essa pedrada, baixe aqui
Nota: