Quando era moleque sempre sonhei em ser biógrafo de alguma banda. Esse pensamento surgiu de forma muito natural dentro da minha mente barulhenta, mas foi só no dia 27 de fevereiro que vi as falhas neste plano infalível.
Keith Richards disse uma vez: ”a música é indefinível”. E eu vou além, complementando este pensamento, se é que alguém pode complementar um dos maiores guitarristas de todos os tempos, mas enfim. É justamente por exercer tamanho magnetismo nas pessoas, que a música é ouvida até o vinil empenar e não encontrar mais caminhos nas ranhuras para poder girar e confeccionar a jam, que nós, os fãs, ouvimos e ouvimos, girando e girando, até pode definir certas sonoridades.
O problema é que sempre pensei que um dia iria atingir um ponto de saturação. Em algum momento meus voos conseguiriam planar perto o suficiente do som, ali, na essência dessa gênesis que, trabalhando em ondas, reverbera melodias das caixas, assim, podendo me revelar o bendito segredo, um código que nem um Ícaro com protetor solar conseguiria arrumar. Eu, um mero escriba, muito menos.
Mas nunca desisti deste meu sonho. Bom, pelo menos não o fiz até o dia 27 de fevereiro, data estelar para uma das maiores revelações que tive em minha vida, a marcação terrestre para o alinhamento dos corpos celestes, humanos e espirituais. O dia do segundo show dos Rolling Stones em São Paulo pela Olé Tour, conjunto de mega-concertos, que só em São Paulo, após duas noites gloriosas, levou mais de 135 mil pessoas ao estádio do Morumbi.
Foi engraçado cara, quando acordei no sábado sabia que estava fazendo história. Esse sentimento é algo nobre demais, uma energia que lhe preenche o peito e parece ligar uma máquina de glicose, produzindo toneladas de energia…
Fiquei o dia todo paranóico, só ali, na fissura, esperando meu comparsa chegar no lugar marcado e pensando no que viria. Tentando pensar num plano mirabolante para talvez tentar desativar uma bomba que eu sabia que iria explodir de qualquer maneira, enquanto ouvia os discos solos do Ronnie Wood, meu Stones predileto.
Foi ao som de um dos músicos menos respeitados na história do groove, um cidadão de cabelo espetado que sempre esteve no lugar certo na hora certa, e que é um dos pouquíssimos nomes na música, que pode acordar de manhã e beijar duas estatuetas do Hall da fama, que tentei me acalmar.
Mas não teve jeito. Antes de chegar no estádio fui tomar umas e nada, seguia mais pilhado que o Ozzy Osbourne num open de morcego. Na entrada do estádio passei o ingresso pra mulher cortar o ticket numa tremedeira do cacete, e depois que vi todo aquele colosso com meus próprios olhos, voltei pra fila da breja e até o copo de Bud me lembrou do que estava por vir.
E quando os caras entraram, nossa, o baque foi gigantesco, a pressão foi parar no meu tornozelo e foi nessa hora que percebi, ao lado de caras com o triplo da minha idade, o quanto essa noite seria especial e como seria impossível ouvir os Stones um dia e não descobrir mais nada de novo.
Quando se trata de bandas e eventos deste porte, a surpresa é eterna, e não importa o quanto este mero resenhista batuque as teclas, nunca vou chegar no cerne disso tudo. Mas ainda bem que os Stones chegam.
E a brisa foi tanta que passei batido pelo showzaço que os Titãs fizeram na abertura. O único vacilo foi não ter ligado o telão quando o grupo entrou, isso lá pelas 19 horas, por que de resto, um dos maiores expoentes do quebra-quebra nacional fez um set rápido, veloz, muito bem tocado, focando nos hits e tratou de aquecer a galera com muita Metafísica, já diria Raul Seixas.
Mas ai quando a badalada do relógio profetizou as 21:00 a luz se apagou, e se tem algo que ninguém tira de mim, é que fiz fumaça no mesmo recinto que o Ronnie Wood. Man, de alguma maneira, sempre soube que era nóis.
Mas trocadilhos à parte, que classe. Seja com uma Gibson, brincando com uma Tele, passando pelo pedal steel ou tocando slide enquanto ainda controla a queimação do cigarro, o mestre Wood prova que está com tudo, e durante mais de duas horas, mostrou seu refinamento e todas as cartas que na manga que o tornaram o músico mais completo da banda, depois de Mick Talyor, sem dúvida alguma, o melhor músico que já tocou com esses caras.
Mas não foi só isso, ah rapaz, se fosse só isso as 68 mil pessoas presentes não teriam feito tanta história. Na outra guitarra estava o homem que habita este plano antes mesmo do Big Bang. Sempre ovacionado, e até mesmo sem graça perante tanta adoração, estava o mítico ”Keef”’ Richards, esfinge suprema que solando, fazendo a base e o que mais você quiser, mostrou aquela técnica que beira o desleixo, algo que virou sua marca registrada com o passar dos anos, e que para ser descrita, beira a naturalidade de um aposentado que vai buscar água pra esposa na madrugada.
Mas o irmão desse cara, um certo senhor de 72 anos… Meu amigo, esse meliante aposentado era de longe o dono do melhor porte físico dessa bandaça. Nem mesmo a grooveria pulsante do Darryl Jones é comparável ao pique que o Mick Jagger manteve no palco, foi realmente assustador.
E aproveitando que a banda estava ligada no 220, foi só o Charlie Watts sincopar a primeira faixa, que toda aquela facilidade e fluência Jazzística já tratou de colocar um mar de gente no bolso logo de cara, com ”Jump Jack Flash”.
Para o meu gosto o setlist poderia ser mais ousado, trocaria a ”She’s A Rainbow” pela ”Dead Flowers”, por exemplo, sem pensar duas vezes e ainda adicionaria a lindíssima ”Can’t You Hear Me Knocking”, mas reclamar de um show desse chega a ser até ridículo, faltaram essas faixas, mas no fim da noite não faltou porra nenhuma.
Teve de tudo meu caro, desde muito Boogie nas teclas do mestre Chuck Leavell, até um belíssimo topless por parte de uma abençoada senhorita na pista premium, aliás, uma salva de palmas para o cidadão que conseguiu captar aquelas imagens. Ainda estou sem palavras para descrever a sensação de olhar para o céu e vê-lo combinando com o tom roxo do maior palco que já vi na vida, enquanto Ronnie & Keith solavam numa Bluezeira lascada.
O time de metais então… Jagger mostrando que não tem asma na gaita?! Uma jam nas pentatônicas durante a tinhosa ligação 0800 para ”Sympathy For The Devil” e suas belíssimas projeções? E a baixaria que não foi aquele solo do Darryl Jones na ”Miss You”?
Teve uma hora que o Mick olhou pra platéia, durante uma rápida chuva que chegou pra abençoar a noite e disse: ”bom pra cacete”. Até o momento estou tentando me decidir se foi bom pra cacete ou se foi bom pra caralho, mas meu caro amigo que cá está lendo essas linhas, o que posso afirmar é que foram 19 temas e que durante todos os segundos em que esse show esteve rolando, eu me sacudi como nunca tinha feito antes.
A música desses caras libera um negócio no seu corpo que é semelhante ao estúpido ato de tentar prender um pedaço de gelo seco nas mãos. Queima pra caramba, mas é sensacional, sexy, ácido, canastrão, Rock ‘N’ Roll e tudo o que a música deveria ser.
Ainda posso falar do arregaço da Sasha Allen em ”Gimme Shelter”, no coral que finalizou a noite com ”You Can’t Always Get What You Want” ou da classe de Richards durante seus dois números solos em ”Sleeping Away” e ”Before They Make Me Run”, mas aí eu volto para o ponto central desse texto.
É impossível definir a música. Nessa noite, eu você e mais 67 mil e 998 pessoas só conseguimos sentir, e cara, isso aí é o que faz o mundo girar. Quantos shows esses caras já não fizeram na vida? Era evidente o tesão de todos eles no palco, até o Charlie estava sorrindo no fim do show… Isso arrepia! aliás, arrepiou agora só de falar que arrepia. Tá certo Mick, foi do cacete.