Dow Raiz & Matéria Prima são dois artistas da cultura hip hop, eles lançaram dois dos melhores trabalhos no rap até aqui em 2019, você sabia?
Em algum momento o rap nacional vai precisar acertar-se com o conjunto da produção, encontrando uma forma de equilibrar o mercado que hoje é patrocinado/fabricado por produtores, influencers e um público alienado ao que empurram como a bola da vez. Se é verdade que os pretos retomaram o protagonismo na cena nos últimos três anos, é bem verdade também que a branquitude ainda segue dando as cartas e colocando no “topo” os participantes da sua visão romantizada e gourmetizada do que deve ser consumido.
Com rarissimas exceções, vivemos o que poderíamos chamar de República dos Parças dos hipsters, produtoras, produtores de eventos, “colunistas”, que possuem um cardápio pré-selecionado para ser ofertado ao mercado num esforço conjunto. Grande mídia, espaços culturais, festas de grandes empresas, programas de tv e youtube, enfim, um game comprado desde o ínicio.
Dois excelentes artistas do hip-hop nacional lançaram trabalhos excelentes e infelizmente não receberam a devida atenção de público e da crítica. No atual cenário onde máquinas e interesses ditam o que deve ou não alcançar o grande público, e o capital segue sendo a principal “ferramenta” para essa ideia esquelética de sucesso, esses dois baluartes do rap nacional soltam trabalhos atemporais.
Curiosamente são dois trabalhos que se propõem a cartografar com um rigor e uma excelência muito grande, todo o momento em que vivemos. Produzindo assim muito mais do que rimas e batidas para serem degustadas no atual ritmo fastfood e ou pelo público cult. Muito ao contrário – pois pensar o tempo é se colocar fora dele – os artistas Dow Raiz e Matéria Prima fazem obras para serem degustadas contra o tempo.
Tanto pela forma quanto pelo sentido dos trabalhos, os dois rappers produziram discos que dialogam um com outro de modo bem próximo. Ao mesmo tempo em que parecem conversar com a cena e com o público quase como na famosa imagem da carta lançada ao mar numa garrafa. Aproximam-se um do outro também no sentido de produzirem diagnósticos do real e seus problemas, que tem nos mastigado cotidianamente.
Curiosamente, passei uma boa parte do primeiro semestre ouvindo o EP As Profundezas De Um Tempo Danger (2019) e graças a querida Ana Rosa (Noticiário Periférico), tenho escutado a mixtape Rascunhos De Um Momento Conturbado (2019). Não escrevi a resenha do EP apesar de ter ouvido e admirado bastante, e venho a 4 semanas protelando escrever sobre a Mixtape. O motivo é exatamente pela falta de tempo e pelos “perigos” que venho enfrentando.
Nós que escrevemos em momentos de descanso e utilizamos o tempo fora do trabalho oficial, possuímos essa e outras dificuldades. O fato é que espontânea e naturalmente os dois trabalhos foram se aproximando e nos deram a deixa para o texto. Exatamente por uma noção de que devemos hoje buscar e cultivar um cuidado de si que se faz determinante para que nossa vida não se empobreça mais e terminemos por recair em patologias. É o que os venenos do atual cenário conturbadamente perigoso tem nos ofertado, a nós trabalhadores.
O presente texto é muito mais um pequena sequência de apontamentos sobre questões que esses discos nos suscitaram do que uma resenha propriamente, algo que certamente os dois merecem. No entento, tenho pensado que a ideia de união e de crescimento de um público menos proselitista, passa também por apreciações à música, ao contrário das personalições atuais. Sendo assim, é preciso dizer que estamos diante de duas cebolas, literalmente, fazem chorar mas também são constituídas de diversas camadas, aqui descascaremos apenas algumas poucas.
O EP As Profundezas De Um Tempo Danger é o segundo lancamento em disco do rapper paranaense Dow Raiz, sucessor do disco Antibióticos de Rua (2016) em sua discografia. Aqui ele apresenta suas visões sobre o Ethos necessário para a condução da verdadeira cultura hip-hop. Não se trata de um discurso vazio, de auto ajuda ou mesmo aquele famigerado espírito Good Vibes. Não há espaço entre as linhas e batidas desse mano para o tilelê, é só papo reto em todos os níveis e dimensões do seu trabalho. A mira é num proceder ético necessário nesses tempos cada vez mais bicudos.
Dow Raiz rima perfeitas comunicaçôes entre a tradição e o mais novo no rap, tomando como base criteriosa o conhecimento! Respeito ao velho, respeito ao novo, respeito enfim, mono ou estéreo, as suas sonoridades presentes no EP, o flow que traz um sabor do ragga em alguns momentos, está sempre na fronteira. Majoritariamente boom bap, o disco faz diversas odes ao trap na perspectiva de que é preciso se aprofundar melhor em novos vetores que nossa cultura diaspórica produz, antes de falar qualquer coisa.
Ao longo das oito faixas presentes no EP o mc segue construído uma taxonomia fundamental de afetos. Um levantamento de valores necessários para que tenhamos uma relação minimamente saudável com a alteridade, com o Outro. Em um momento onde as diferenças se tornam novamente alvos para o extermínio e onde isso é externado publicamemte por autoridades governamentais, o trabalho de Dow Raiz se mostra essencial. A sonoridade apresentada é outro momento alto e ficou a cargo de uma verdadeira equipe: Leo Spectrum, Dario, Madu e Nave, BP nos beats, Shaolin Drunk, Dem Beats e Hupalo. Essa turma reunida de produtores estão, apesar da diversidade, numa coesão de sonoridade no trampo, encontrada pelo sentido do trabalho.
O enfrentamento de tempos perigosos demandam conhecimento e sobretudo auto-conhecimento, e é esse exercício o que mais nos chama atenção nesse EP do Dow Raiz. E num primeiro momento é curioso que mais do que levantar a conjuntura, o rapper parte para a análise dos nossos próprios impulsos, por que certamente é nas nossas profundezas e nas nossas relações com o outros, onde os perigos começam a proliferar.
Um mc de altíssimo nível, portador de todas aquelas técnicas que os que se masturbam apenas com a forma adoram vomitar, mas que as utiliza para o sentido superior da cultura: produzir conhecimento para pretos e pretasem diaspóra. Escutem:
Matéria Prima é uma das principais substâncias da rima rara no rap nacional. Corporificando-se pouco a pouco entre os seus jogos de palavras, como um esgremista ou enxadrista da linguagem, passear por sua discografia foi realmente algo transformador. O artista segue sem nunca esquecer de produzir um plano de consistência poética onde o Hip Hop é automaticamente política divergente, e pela qualidade lírica, sem nunca utilizar palavras de ordem. O rapper mineiro é daqueles artistas que em poucas linhas produzem uma sucessão de visões que nos invadem pouco a pouco atraves de seu flow ondulante e swingado, e são capazes de rachar nossa cabeça!
Dono de um discografia respeitável, Matéria Prima surgiu no cenário nacional no lendário Quinto Andar. Estamos diante de um artista que possui uma das caminhadas mais bonitas das quais eu tive notícias nos últimos tempos. Sim, infelizmente eu não estava atento aos lançamentos desse mc que é grande entre os grandes do rap nacional. Ao longo do últimos mês me empenhei em fazer o dever de casa e ouvi todos os trabalhos solo lançados pelo rapper mineiro: Matérial de estudo (2012), Quimera (2014) e Pocas (2016), são os primeiros EPs. Com dois discos fenomenais lançados: Dois Atos (2017) e Bem Boom Bap (2018), aqui você encontra um verdadeiro arsenal.
Rascunhos De Um Momento Conturbado (2019) é uma mixtape que além de fazer o retrato do caos como dizíamos acima, nos convida a alegria e ao reconhecimento. Ao reconhecimento do nosso valor, da potência que a pobreza tbm carrega, na força de produção e invenção que possuímos. Muiot bem municiado pelo Dj Lotek que produz um conjunto de 9 faixas com beats sinistros só na pegada boom bap, o rapper desfila uma sequência de rimas irrepreens[ivel.
A criminalização da pobreza, sempre tão em voga no nosso país, por uma burguesia ignorante e patrimonialista, é algo bastante percnicioso e cruel em nossa sociedade. A poesia ritmada do Matéria Prima é uma ave rara que vai aos poucos nos mostrando o quão punch lines e multisilábicas podem ser efetivamente transformadoras desse quadro. Pois é cada vez mais necessário que o cardume saiba diferenciar seus iguais e os tubarões, ao contrário do que fizemos enquanto nação nas últimas eleições.
Ao mesmo tempo Matéria Prima consegue com poucas músicas, nos deixar escuro que o primeiro índice de opressão do nosso país é a nossa cor de pele. Enquanto estamos lutando entre nós mesmos, por ignorância, a cúpula do poder nacional que não conta com nenhum de nós, segue num projeto de nos colocar no último círculo do poeta italiano: inferno de Dante.Como falamos acima, são discos cebola, daqueles grandes que toda vez que escutamos conseguimos tirar uma camada. e perceber algo novo.
De algum modo o artista é capaz de clivar elementos de reflexão diferentes mas que com um pouco mais de atenção percebermos que fazem parte do mesmo quadro. Visões sobre o centro das cidades e sua fauna exótica, são também parte desses rascunhos muito bem desenhados pelas palavras do rapper. Assim como a necessidade de estarmos também desligados dos problemas que nos assolam no rumo do rivotril. É necessário que nos amemos, que nos recolhamos também a uma solidão que nos reconstitua a possibilidade de pensarmos nossas singularidades, nossas individualidades.
Restaurar nosso desejo de viver, de lutar de nos divertimos, ou seja de estarmos ativos nesse caos que se por um lado é completamente conturbador, é também a oportunidade de saída para um outro horizonte. E nesse sentido, é necessário abrirmos mão de termos e palavras que são fruto da turminha tilêlê que insiste em nos domar. Esquecermos os lero leros que a burguesia nos impôem de modo a alcançarmos uma independência intelctual capaz de reconhecer quem realmente tem algo a acrescentar e sobretudo está na nossa luta lado a lado. Saibamos também curtir e esquecer quem não quer nos ouvir e está contra nós de modo intríseco, pelo modo de vida, pela ideia de raça que possuem ou mesmo pela posição social que alcançou. Dow Raiz & Matéria Prima lançaram dois trabalhos que são fundamentais para os tempos atuais e precisamos nos apropriar desses presentes sem pestanejar. Desse modo, vou dar uma saída aqui, porque dia de sábado também é dia de dar aula!
Ouve aí: