Don L e o caminho singular: O Hip Hop deve ensinar que podemos ser espíritos livres, não precisamos seguir o rebanho, nos adequar ao medíocre
Ser um homem médio é o padrão para se adequar à massa. Esse espécime é o produto exalado por todos os poros da sociedade. De algum modo ele é sedutor, até de um jeito bem irresistível, nos oferece o conforto da ignorância e a paz de espírito da adequação às últimas tendências. O animal de rebanho em seu gregarismo é portador de uma visão de mundo empobrecida mesmo com todas as infinitas possibilidades de ser. Visão de mundo essa que se constitui através de uma consciência que é imediatamente produto das normas sociais e das regras que o senso comum estabelece, assim como das leis e costumes que o estado sanciona.
Transmissores que são de um modo de ser combatido desde Chaplin, ou mesmo antes, já na obra do filósofo alemão Max Stirner, o homem médio, que em nosso país foi rebatizado de cidadão de bem, floresce hoje em todo o mundo. Geralmente são pessoas que possuem uma subjetividade tacanha e que não reconhecem na alteridade e na diferença algo de valoroso. Não possuem a capacidade de autocritica, fazendo com que sua aceitação instintiva a normas e padrões produzam uma visão de si mesmos como algo bom por isso mesmo. A arte e o pensamento nos instila exatamente no caminho contrário, e o rap brasileiro possui um excelente exemplo disso.
O rapper cearense Don L vem ao longo dos anos produzindo uma obra bem informada e sobretudo portadora de um pensamento que diz sempre não para a mediocridade, para o médio. É fundamental notar que em todas as camadas de suas composições, a singularidade de um estilo único, sempre é um elemento de destaque, seja ele lírico e ou sonoro. Considerado como um dos ou o mais técnico em atividade no cenário do rap nacional, Don L não é um estouro, não se coloca ou não foi colocado naquele panteão dos mega sucessos. Poderíamos dizer inclusive que sua obra é sempre uma bomba silenciosa, funcionando muito mais na degustação lenta, assim como na incorporação ruminada por seus ouvintes.
Pensar é pensar contra, mas parece que os nossos zumbis estão sempre prontos a seguir o primeiro ruído que aparece. e independente do espectro político onde esses zumbis se localizam, eles seguem. Seguir é uma das principais prerrogativas do homem médio que – esteja em que estilo ou classe estiver – não está muito preocupado em pensar. Utilizamos aqui a imagem do zumbi, por motivos evidentes, pois além da força assustadora que essa imagem possui, ela é a representação atual perfeita desse modo de ser que na contemporaneidade é muito bem representado em séries e filmes. Não é à toa o sucesso que essas produções vem alcançando, pois encontram o correlato imediato nas redes sociais e em sociedades como a nossa, onde as estimativas nos contam que o brasileiro fica conectado em média 9 horas por dia. Tanta conexão não se configura no acúmulo de conhecimento, e em práticas, digamos onde o pensamento lógico e crítico seja o condutor. Não se confunda pensamento com reflexão, muito menos com contemplação, por definição são coisas distintas. Pensar é criar, criar seus próprios problemas, seus afetos, suas funções, produzir sentido é o caminho para aqueles que não se prendem a categorias, gêneros, ou qualquer outra caixa redutora e limitante. Sobre tudo isso ele soltou esse single que é um excelente relato desses zumbis à brasileira:
Don L se localiza ou é facilmente localizado como esse ser solitário, que dentro do cenário do rap nacional, dentro da cultura hip hop nacional produz uma obra singular e radical. E automaticamente coloca o problema da qualidade versus sucesso, demonstrando na prática que essa relação é muito mais complicada do que parece para muitos.
O capitalismo possui a forte qualidade de produzir ilusões em profusão, e na música/mercado musical não seria diferente. O artista cearense através de sua música – apesar da imensa qualidade – não nos transmite um modelo facilmente empacotável e de fácil consumo, exemplo disso são os paradoxos que ele adora transmitir em suas músicas.
“Eu não sou daqui, minha alma é livre e eu não me comporto, eu quero minha fé de volta,”
No seu último disco, muito da tônica que foi colocada em Roteiro pra Ainouz Vol. 3 (2017) vinha de uma contestação inaudita ao nascente mercado “oficial” do rap nacional. Dando nome aos bois e desvendando a superficialidade dessa nascente indústria, Don L permaneceu ali na linha de borda que separa quem é o sucesso do momento e quem ficará para a eternidade. Ao mesmo tempo, e de modo complementar ou inaugural nessa operação, havia em diversos momentos no disco uma questão da história genocida e racista, assim como de sua própria inadequação/luta nesse “game”.
Um dos aspectos mais singulares e indigestos de sua persona – pelo menos virtual – é com toda certeza aquilo que nos transparece de seu pensamento/modo de vida. O nordestino que angariou – sem o correlato em dinheiro e reconhecimento oficioso – uma posição como um dos 5 maiores rappers/pensadores vivos do hip hop nacional convive bem com essa posição que conquistou, pois não vemos nenhum resquício de ressentimento em suas linhas, pelo contrário, ele entendeu que sua posição é – por diferentes fatores – única.
Ao mesmo tempo, no que acompanhamos em suas aparições nas redes sociais, não encontramos storieszinhos de bobagem, maconha, mensagens engraçadinhas, ou algum correlato. Pelo contrário, há uma seriedade desconcertante, falando sobre alimentação e agrotóxicos, café gourmet, chocolate de no mínimo 70% de pureza, compartilhamentos de matérias da Eliane Brum, aquecimento global, contestação do controle nas redes sociais. Não nos parece uma estratégia de fácil vendagem, pois ainda que seja no rap, ao que nos parece a maioria das pessoas não estão preocupadas em manter uma luta constante e independente, diária e pessoal contra a máquina infernal que nos consome a todos.
Sua carreira foi e está sendo toda construída sobre uma produção musical e poética que não encontra paralelos em nenhum exemplo, tendo começado no mítico grupo cearense Costa a Costa, junto com nomes como Nego Gallo, outra anomalia da nossa música. São casos únicos e singulares que se distanciam tanto dos padrões que o mercado ou não consegue absorver, ou regurgita por “indigestão”, que nos deveria fazer pensar. Há pouco, o lançamento de “Não Escute Meus Raps” nos impulsionou a escrever esse texto, um single apenas, um título provocador, aquela qualidade de sempre, mas…
Por tudo dito acima, é-nos óbvio que Don L não apelou para uma simples produção de psicologia reversa. O primeiro ponto que nos tornou bastante sensível à obra foi o ímpeto verdadeiro de ir contra fãs de ocasião, ao mesmo tempo em que demarca um ponto de insubmissão diante do público. Em tempos nos quais mc’s mendigam atenção nas redes sociais, muito por conta da quebra da mediação do jornalismo musical. Implicando um contato direto com os fãs, algo que condiciona comportamentos seja da massa seja do artista, o mc cearense marca posição passando uma visão mais uma vez, do quanto é singular a sua arte.
Não é a felicidade, e o conforto da adequação o que seus “produtos” tem pra oferecer, muito pelo contrário. Obviamente o carinho de pessoas que admiram seu trabalho deve agradar, no entanto, não é isso que ele busca. Mas do que filiações é de aliados que o Don L precisa, assim como todos aqueles que pensam contra, não são seguidores o que lhes interessa, mas interlocução. Esse nos parece ser um ponto nevrálgico daquilo que o artista produz, pois basta uma passagem por sua obra para se perceber que esse é o próprio caminho que esse “deus L” sem culto segue desde sempre. O caminho de buscar ser singular, afinal deve ser realmente uma bosta ser alvo de adoração.
O segundo ponto que nos toca bastante é que em “Não Escute Meus Raps” há um chamamento para algo que definiria a maioridade de qualquer cidadão: Autonomia Intelectual. A capacidade que nós deveríamos ter diante de uma obra, e como conseguimos adequar o conteúdo e a forma de uma obra ao nosso conteúdo e forma de pensar, seja através de uma transformação da mesma, seja através de uma contestação da outra. Tomar contato com um artista, com sua arte, deveria ser sempre e em todos os casos elemento de transformação do nosso ser, pois ali estão presentes singularidades e devires que são transmitidos através dos afetos e ideias vinculados em suas produções.
Tem quem compare arte e diversão, penso eu que arte pode divertir mas não é entretenimento. E no caso de Don L nunca é algo feito para entreter, é algo para bagunçar seus modos mentais, suas percepções da realidade. Tá aqui um bom exemplo, que só se sustenta por vir de quem vem, por se ancorar numa obra que realmente não deveria ser ouvida por quem busca aquele conforto, aquela adequação, talvez uma outra fé. A escrita e o pensamento estético e político do Don L é aquele do cara chato, que teima em furar o seu guarda chuva, não o de quem lhe promete abrigos temporários diante dos temporais. Ele é o cara chato, chato não, insuportável!