Omibulu estreou com um trabalho importantíssimo em sua mixtape: Projeto Peixe e Arquivos Subaquáticos, leia nosso artigo
A projeção operada por Omibulu é algo muito bonito e sobretudo guarda uma intensidade muito própria em seu trabalho de estréia: Projeto Peixe e Arquivos Subaquáticos, mixtape lançada este ano. O artista soteropolitano do bairro do Beirú, se arremessou num conjunto de faixas que não é meramente musical senão colocando-se para jogo em um processo onde ritmo e poesia se constituem realmente como uma cartografia dos desejos como construção existencial.
Em meio a tanta pseudo poesia que se pretende o supra sumo da criatividade, e que entregam lugares comuns e repetições de chavão, dentro de um mercado cultural mainstream aguado onde os “conceitos” apresentados são apenas marketing, Omibulu faz uma estreia de peso, mesmo com um trabalho totalmente artesanal. A mixtape Projeto Peixe e Arquivos Subaquáticos foi toda construída através de poesias escritas e rimadas em cima de beats retirados do youtube.
Para ouvidos acostumados às palavras de ordem, o lirismo crescente ao longo da mixtape apresentando uma subjetividade em processo de construção, um corpo que vai se desfazendo e se transvalorando, pode assustar e espantar. Para quem não cultiva uma relação de perceber a alteridade como uma diferença e singularidades próprias, esse convite para entrar em sua correnteza de transformação pode ser profundo demais, pois coloca em risco nossos próprios preconceitos e ignorâncias.
O Hip-Hop enquanto cultura, obviamente reproduz muito das doenças que atravessam a sociedade pois não é algo descolado dela, muito pelo contrário, muitas vezes reproduz todos os vícios e hábitos discriminatórios presentes nela. Nos últimos anos, através de trabalhos de artistas fundamentais como Rico Dalasam, Monna Brutal, Hiran, Isa Sabino e Quebrada Queer, entre outres, podemos perceber o quanto a cultura hip-hop em geral e o rap em particular se beneficia e se torna mais um retrato de uma contracultura com esses agentes atuando.
Estar atento a essas diferenças, ouvir com atenção o que eles têm para dizer como sua arte é salutar e essencial pois nos ensina o contrário de tudo aquilo que as características do berço civilizatório da branquitude nos legou com o seu colonialismo. Omibulu em sua mixtape apresenta-nos sua vivência transmutada em Ritmo “and” Poesia nos fazendo perceber sua humanidade, suas dores, suas lutas, suas ideias políticas, seus afetos, sua sexualidade, etc. De modo, que neste Projeto Peixe o verdadeiro convite é para que mergulhemos com ele nestes Arquivos Subaquáticos.
E aqui já de saída podemos perceber que não se trata de mera analogia, mas antes de produzir uma arte que necessita de coletividade – peixes geralmente andam em cardumes e possuem milhões de espécies – e de atenção, concentração e de uma pausa na respiração, para que possamos adentrar o seu mundo interior. Apesar de nomeado como uma mixtape, na verdade, estamos diante de um disco, de uma obra realmente conceitual apesar de tosca no que tange a produção. Os beats da internet não possibilitaram uma mixagem e masterização adequada e certamente isso compromete a qualidade da audição. No entanto, o esforço feito para colocar esse trampo na rua, junto a 9 mml na captação e do Odrak que se virou para mixar da melhor forma possível, proporcionou-nos conhecer e sentir a potência deste trabalho. De outro modo, talvez nunca pudéssemos conhecer Omibulu.
Três blocos e um devir, da nascente ao mar!
Começando por uma “intro”, vale muito a pena perceber que a precariedade da produção encontra soluções criativas para driblar a percepção do ouvinte. O som de um fita cassete sendo colocada é aqui muito bem pensado pois nos comunica logo que escutaremos a “tape” em uma qualidade baixa, com ruídos e indeterminações. A música “Feitiço (prod. YSP)” é uma love song clássica, onde Omibulu se mostra completamente a mêrce de um amor sem presença, sobrevivendo na memória dos encontros, nas incertezas e nos medos. referências ao MAM (Museu de Arte Moderna) e a Amaralina, localizam os enlaces na cidade de Salvador.
Essa trilha úmida e lúbrica segue na música seguinte um R&B mais cantado do que rimado, “Corpo Azul (prod. Roy Madelt). Este primeiro bloco já nos mostra a variedade de sonoridades pelas quais Omibulu nada a braçadas, nos mostrando desenvoltura técnica de métrica e flow, a música “Dentro D’Água (prod. YXNGDENA)” vem já em um Plug. Adequadamente ao estilo da faixa, a MC mescla referências audiovisuais às animações Lilo & Stitch e ao anime Avatar, com referências fundamentais à comunidade LGBTQIA+ soteropolitana como o Paredão da Paulilo. E aqui temos um verso que é a chave para o entendimento deste primeiro bloco:
“Tô te provocando você sabe que eu tinha bebido
E não tem motivo pra ficar escondido
Da Gamboa pra Barra quero sentir nossos corpos envolvidos”
A faixa seguinte “Badu (prod. YTG)” referência a Erykah Badu apresenta o desejo expressado acima e arremata o motivo do fim de relacionamento:
“Vivo no meu mundo
E acha que eu me iludo
Na rua finge que não tamo junto
Sigilo absoluto”
Ora, sabemos e nos parece que essa é a força do primeiro bloco que dentro de nossa sociedade, o assumir-se homossexual é um problema, dentro de nossas comunidades negras essa questão não foge a regra. A exclusão opera em todos níveis, negando a comunidade LGBTQIA+ a condição de humanidade que lhes é inerente. Neste sentido, Omibulu acertadamente abre o disco com um bloco que fala de algo delicado e doloroso, o fim de um relacionamento que enquanto se mantinha apenas entre quatro paredes proporcionava a realização dos desejos carnais e afetivos mas que se nega por hipocrisia e por medo a se expor publicamente.
Aqui podemos perceber a força da amplitude do trabalho de Omibulu quando este nos apresenta uma questão que certamente atravessa não apenas o seu universo particular. Mas da forma como é apresentado dialoga tambem com o feminismo negro e suas pautas relativas a solidão da mulher negra cis. Este momento é – dentro da “jornada da bixa preta e heroína” – o processo de tomada de consciência de ter “nascido debaixo d’água” ou seja, sufocado, escondido, submerso. Sentiu?
Na sequência a chava vira, as faixas na pegada do Trap “Bixa Bonita (BlackSurfer)” um dos pontos altos do disco e “Molinho (prod. lucasbin)” um verdadeiro guia de como as bixas pretas e chavosas devem se portar na hora do sexo, abrem o leque para uma pegada mais agressiva, lírica e musical. É a hora de ir pro arregaço, de estar posturada, saber de si primeiro, para depois pensar no outro. Essa virada diz muito e comenta o primeiro bloco, onde uma certa idealização do amor romântico é frustrado, abrindo espaço para outras construções.
Vai segurando, vai segurando, e no ritmo do funk carioca “Segura (prod. lucasbin)” abre para virar em um trap pesado onde a sequência de linhas de ataque pesadas e citações a Nina, Vandal e Monna Brutal, mostram suas alianças e inspirações. Para um homem negro, homossexual e artista encarar as situações que a sociedade racista e LGBTQIA+fóbica lhes impõem somente de cara fechada e com agressividade é possível. E neste sentido – e no sentido do Projeto Peixe – “Pinaúna (prod. gus)” é mais uma ponte lírica entre blocos. Não apenas isso como também a amplitude de temas que vão sendo descortinados aos poucos. Aqui o tema da negritude em geral, o anticolonialismo, a denuncia do genocídio do povo negro e a religiosidade de matriz africana ganham vulto.
A forma orgânica através da qual Omibulu incorpora referências da cena nacional e baiana, é também um ponto de destaque numa cena cada vez mais – talvez desde sempre – egóica e individualista. Na faixa Pinaúna há referência às gêmeas Tasha e Tracie, hoje famosas nacionalmente, mas também a Vuto, Áurea Semiséria, Evylin, Sued e ao Fiteck graças a quem eu pude descobrir o trabalho de Omibulu, em um de seus stories.
É curioso se bater com trabalhos como esses enterrados no underground, quando falamos acima de um movimento contra a corrente, não era mera analogia. O devir artístico de Omibulu produziu um trabalho onde enquanto MC, a artista produziu um disco onde ela parte da nascente – R&B/Soul/Plug – para chegar depois de passar pelo Trap/Drill/Grime, no Boombap. Um movimento como falamos, que reflete o seu existencial enquanto homem, bixa, negra, moradora de periferia em Salvador. É um trabalho com diversas camadas, que negocia com a precariedade em todas as dimensões ao redor de si, mas que através da força de sua arte, os atravessa com “facilidade”.
Os líquidos que foram sorvidos, sejam mel ou fel, foram perfeitamente metabolizados e regurgitados como lágrimas e como poesia. “Sai (prod. LethalNeedle)” é um legítimo boombap bate cabeça, com uma lírica que mais parece uma navalha. Omibulu faz uma potente reflexão sobre a incorporação do nosso povo de preconceitos que só podem ser remetidos aos resultados do colonialismo. Que nos traz resultados trágicos em todo o nosso país, mas a exemplificação aqui remete a chacina do Cabula, operada pela polícia militar durante o período do governo de Rui Costa, nosso futuro ministro da fazenda.
Com uma das letras mais bonitas do disco, porém com o problema de gravar em um beat da internet, a música “Escuro (prod. LethalNeedle)” tras os seguintes versos iniciais:
“Madrugadas quentes num mundo azul
Você não entende quando digo que tô diferente
Desde que nasci Omibulu
No caos plantei minha semente
Seguindo a ordem de Maat e Exú
Corro sempre pra frente mesmo indo pro sul
Evito ser incoerente tipo branco falando Ubuntu
Malungos potentes não direcione a mensagem pra Yurugu”
O boombap como ponto de chegada neste disco, diz muito de uma escolha por um espaço sonoro mais amplo de possibilidades musicais de métrica e flow e certamente aqui, deveríamos ter alguém na pegada do Dr.Drumah preparando esses beats. No entanto, ainda assim, rimando em beat da internet a qualidade de Omibulu como MC e como artista, é inegável!
Nascendo Omibulu ao longo de toda a mixtape, podemos ver uma série de tonalidades de cor que vão ficando cada vez mais azuis como o mar, até escurecer totalmente como nas altas profundidades, onde apenas os peixes abissais vivem. A interseccionalidade crescente no disco vai coadunando cada vez mais com o tema da negritude e seus desafios, em Escuro, Omibulu assume uma pegada radical, tomando as coisas pela raiz. referindo-se a ancestralidade africana e nos fazendo entender que nossas mensagens, nossa arte, nossa luta tem que ser pelo povo preto.
A música “Peixe Voador (prod. Pieper Beats) antes de ser um encerramento é de todo modo uma continuação em aberto. É um retrato do artista enquanto estreante, sabendo-se capaz e talentoso demais para ficar preso em qualquer aquário que seja, e isso como dito acima diz respeito às caixas que outros MC’s limitados curtem tanto. Este Projeto Peixe e Arquivos Subaquáticos é uma estréia muito importante para o Hip-Hop baiano e nacional. Finalmente podemos descobrir Omibulu, que Iemanjá e todos os orixás abençoem a sua travessia!
-Do Beirú para o mar, Omibulu e sua mixtape: Projeto Peixe e Arquivos Subaquáticos
Por Danilo Cruz