Diomedes Chinaski & DJ Caique lançam Ressentimentos II, 7 anos após o volume um do EP, numa produção de alto nível estético e conceitual!!!!
Em 2010 Diomedes Chinaski lançava o EP Ressentimentos e agora 7 anos depois chega nas ruas uma continuação: Ressentimentos II (2017), numa excelente produção em parceria com um dos maiores produtores/beatmakers do país: Dj Caique. Uma primeira questão a nos chamar atenção é que muitos que passaram a conhecer o Diomedes D.S. (depois de Sulicídio) o consideram um mc da nova geração e agora estão descobrindo que a primeira parte desse ep tem 7 anos de lançado. Porém, antes não tinha youtube, mas sobretudo não existia um olhar mais interessado para as bandas do nordeste.
Sendo um volume 2 do Ressentimentos, é fundamental ouvirmos o volume 1 para acompanhar não apenas a continuidade conceitual da obra – sim ela existe mesmo com o imenso intervalo – como também para entender a evolução do artista. Obviamente nos é impossível nesse curto texto apontar todas as semelhanças e diferenças entre uma obra e outra. Certamente, poética e musicalmente os dois EP’s possuem camadas e mais camadas possíveis de interpretação. Mas um primeiro aspecto que nos atrai entre os dois discos, é a confluência dos temas e a politização de assuntos outrora tratados mais como aspectos pessoais.
O título das obras é muito bem explicado no volume 1, onde uma fala inicial, a introdução, nos alerta como o ressentimento é uma barreira para a sensibilidade criar o novo. E de como é a linguagem um campo de jogo e fixação da sensibilidade, onde o seu uso determinará o caráter reativo ou ativo do homem. Nos parece importante esse esclarecimento, para que possamos entender que Ressentimentos Vol. 1 e 2 são verdadeiras sintomatologias das doenças que nos perseguem, fruto dos poderes instituídos.
Sempre é importante lembrar que a música rap, utiliza-se da linguagem em suas criações dentro da cultura hip hop, desde o seu início, sob a égide do viés critico/político. Ao conseguir transformar opressão, um ambiente violento e subjetividades doentes em arte e diversão, o rap propõem um diagnóstico que é sinônimo de saúde. É a produção ativa de um discurso que resiste ao status quo, e busca a exposição dos seus mecanismos de controle e opressão.
Num momento onde a pessoalização, a idolatria aos artistas no rap alcança o seu auge no Brasil, é importante ter em mente que um artista é muitas vezes também, humano demasiado humano, para além de suas criações. E certa vez o pensador supracitado nos dois ep’s afirmou: “Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente.” Porém ele – o homem – é também um animal politico, e sendo assim, comunica aos outros suas ideias e experiências, e muitas vezes exerce uma forma de comunicação superior utilizando-se da arte, comunicando-se esteticamente.
O João Vittor sob a mascara da arte consegue transmutar sua experiência pessoal – que é a de milhares de jovens negros do nosso país – em experiência universal. E sobretudo tratar as dores emocionais como o que elas são, ou melhor, de onde elas veem: da politica e do nosso caos social ordenadamente planejado.
Importante a inserção de um trecho de uma poesia do grande Miró da Muribeca na música que abre o Ressentimentos II:
Uma casinha branca lá no alto da montanha
e eu me perguntando: quem Mora Lá?
quem mora lá?
um homem na BR olhando pro nada
uma mulher com um saco de capim na cabeça
e o sol estralando nas suas costas
e os políticos dando as costas…
Quem Mora Lá? refere-se a essa intersecção entre situação social e construção emocional dos indivíduos. A produção do Dj Caique constroi o beat com uma introdução que nos remete a confusão do cotidiano, na imagem sonora de um rádio sendo sintonizado. E a sintonia musical, sua construção é a da tristeza que a poesia evidencia, com um pianinho repetindo uma nota e um acorde constantemente. Essa repetição musical encontro seu paralelo nas dores que são expostas em contraposição e complementaridade com as imagens de miséria social/emocional.
Se o disco já se abre nessa perspectiva, Herança Emocional que tem a participação da Orquestra Imaginária aprofunda essas questões levando os problemas ao campo da criação musical e ao mesmo tempo aprofundando mais – nas linhas da Orquestra Imaginária – os aspectos históricos e sociais que levam as mentes “fora de área” a se engajar no crime. Chegando assim, em uma das músicas mais fortes do disco, Cocada de Sal, A Teoria, e novamente aqui o beat do Dj Caique se sobressai de forma excepcional. Essas três primeiras faixas poderiam e talvez devessem ser entendidas como as partes de um todo dentro do pequeno EP, que conta apenas com 6 faixas, sua primeira metade.
Uma primeira parte que dialoga com a complexidade que nos envolve hoje em diversos níveis, atacando-nos das esferas mais pessoais, as micropolíticas fascistas até o cenário politico que recebeu em 2017 um numero incontável de golpes. Gostaríamos aqui de ressaltar que Diomedes Chinaski é talvez o mc que mais tem trabalhado em suas letras questões que remetem imediatamente nesse cenário macro politico, criticas a Sergio Moro e Bolsonaro, duas faces do golpe que vivemos. O objeto máximo do neo fascismo brasileiro, que incrivelmente tem diversos admiradores dentro do público do rap, tem sido constantemente atacado pelo mc em algumas de suas últimas produções. Em Cocada de Sal ele aplica mais um duro golpe:
“Qualidade de vida é tudo já foi comprovado Sinto vergonha alheia, irmão, tu é pré-moldado Cê ama Bolsonaro? irmão, tu é retardado Retardado não, pois quem sofre retardo mental é maravilhoso e Bolsonaro é um homem mal Bolsonaro tá com medo de um pau de experimentar e achar que nao tem nada igual Quem combate minorias politicas não merece respeito 2017, seguimos desse jeito… seguimos desse jeito…. nós seguimos desse jeito… Cada historia de vida eh ferida aberta no peito…”
Num cenário onde posições politicas de ordem fascista tem sido reclamadas como posições democraticamente legitimas, onde mc’s fazem cypher para golpe de estado (Buddy Poke e Maomé) e o público está lotado de bolsominions. É um alivio imenso ver que ainda existem mc’s que expressam, numa construção conceitualmente bem feita o quanto é absurdo elegerem um salvador que promete extermínio e mais preconceitos.
A lovesong Nem Tudo é Só Dor com a participação do Luiz Lins, parceiros na PE SQUAD, é um duplo da canção Você é Tudo Que Tenho, presente no volume 1. Com uma pegada calcada no soul refinado na produção do abusado Dj Caique, ao contrário de sua antecessora que desfilava milhares de linhas de intenções, de promessas de futuro e reconhecimento de um imenso amor. Aqui o tom é o minimalismo do belo refrão cantado por Luiz Lins que afirma o trágico da existência, o saber que as dores podem encontrar no êxtase sua diminuição, mas que elas vão retornar. O sexo toma o lugar do pedido casamento, talvez pensando construção de outro tipo de relacionamento, tudo paira no ar nessa canção, como a fumaça após o gozo.
Os braggadocios tomam o lugar nas duas últimas faixas, em Roger Waters com a participação de Zaca de Chagas e Romariz e no fechamento grandioso com Memórias Póstumas de Um Liricista. O que nos leva a pensar o quanto é importante a auto afirmação dentro do rap, dado que como vimos antes, as construções subjetivas desses artistas oriundos das diversas periferias, possui diversas fragilidades. A busca por um estilo, por um meio original de expressão, ao mesmo tempo em que constrói-se sobre bases históricas, politicas, filosóficas e sociológicas firmes, torna os braggadocios em geral um modo importante.
Sabemos o quanto a construção de uma identidade e de uma auto estima é fundamental dentro desse contexto aqui tratado. Ao mesmo tempo, entendemos o quanto é importante a sublimação e o direcionamento da agressividade na vida social. E nesse sentido, as duas músicas que finalizam o EP se tornam excelentes exemplos dessa complexidade característica da cultura hip-hop. Roger Waters, afirma um espirito de grupo, minha banca, minhas origens, a Chave Mestra, supergrupo de rap de Pernambuco. Aqui comparada ao grande grupo de rock inglês Pink Floyd, certamente, não despropositadamente. Quem ouviu Novo Egito(2015) e Coração no Gelo(2016), sabe que se trata de um dos melhores grupos do Brasil.
Se os boys não leram nem Dom Casmurro, as Memórias Póstumas de Braz Cubas, é a inspiração do mc pra fechar de modo épico o EP. Ecce Homo ou Como Alguém Se Torna O Que É, é um livro do filosofo alemão Friedrich Nietzsche, onde o pensador faz uma auto analise dos caminhos e das ideias que o levaram a ser como é. Ali, a beira da loucura temos o braggadocio filosófico por excelência, onde o que menos interessa é o Ego ou o mero auto elogio, mas sim os caminhos do pensamento, as linhas tortuosas que construíram um filosofo.
Memórias Póstumas De Um Liricista, tem samples de orquestra, casando perfeitamente com as referências às poesias de Camões, Olavo Bilac, Zaratustra. E a música fecha bem o EP trazendo um sentido oculto, na dispersão das faixas. Pedindo ao ouvinte que seja capaz de criar sua própria unicidade da obra, a se levar em conta também o volume 1 de Ressentimentos.
Se alertávamos que o disco partia do diagnóstico do contexto politico e social que gera os nossos vilões, o EP atravessa os momentos de felicidade – sexo – para alcançar a amizade e a busca pela auto superação através da arte. Esse auto superar-se que vem do exercício artístico, de se conceber também como uma obra de arte, através de uma perspectiva ético estética. E é aí que a noção de Devir presente na introdução do vol. 1 pode nos auxiliar a entender o sub texto desses dois EPs.
Sendo a arte um exercício superior do pensamento, podemos entender como de 2010 pra cá, esse mesmo exercício preservou, expandiu e enriqueceu a vida do João Vittor. Assim como de muitos outro(a)s mc’s, B.Boys e B.Girls, grafiteiros, e militantes da cultura hip hop. Se a arte não é capaz de curar feridas, ela pelo menos consegue diagnosticar e oferecer linhas de fuga para a construção de outros territórios existenciais. É capaz de mexer com nossa sensibilidade até o ponto de desconstruir nossos preconceitos e nos dar armas capazes de resistir as armadilhas do sistema.
Sob a mascara de Diomedes Chinaski pode existir um humano demasiado humano, mas sua arte nos inspira, nos ajuda a entendermos nosso mundo, ela é um signo muito forte de saúde, se não do próprio artista, do hip hop. A luta contra o ressentimento como afecto triste que nos impede de pensar e criar novas possibilidades de existência, é aqui passada a limpo, primeiro pelo João Vittor, depois pelo Chinaski, resta você.