Rios, pontes e Hard Drives, impressionantes arquivos de lama: digitalizando as memórias do Manguebeat

“Digitalizando as memórias do Manguebeat”, neste ensaio Renato de Lyra Lemos, nos relembra a importância de preservarmos a memória musical e cultural da cena underground. 

Manguebeat
Manguebeat – Renato de Lyra Lemos é Doutor em Antropologia e pesquisador dedicado ao tema Políticas da Memória

Quando a cena Mangue começou a dar frutos em Pernambuco, eu ainda era muito jovem, então minhas primeiras lembranças são um pouco vagas. Mas lembro muito da empolgação do meu pai, colecionador de discos desde a década de 1960, em comprar os CD’s e fitas demo, além de gravar alguns programas de televisão em VHS na época, como a transmissão de especiais e shows ao vivo, além de sempre ler as matérias no jornal e nos estimular a ler. Essa empolgação do meu pai passou para o meu irmão, seis anos mais velho que eu, e dos dois para mim. As primeiras lembranças que tenho são após o lançamento do disco Da Lama ao Caos (1994), de Chico Science & Nação Zumbi.

Em 1994, eu tinha 10 anos, e meu tio, irmão mais novo do meu pai, havia recém-inaugurado uma loja de bicicletas em Recife. Meu tio escutava muito o Da Lama ao Caos no som da loja e, um dia, enquanto escutava o disco, Chico Science entrou na loja querendo comprar uns acessórios para sua bicicleta e autografou sua cópia do CD. Eu escutei muito esse álbum, mas principalmente uma fita cassete que tinha gravada. Aquelas músicas foram se tornando a trilha sonora da cidade. Acho que até hoje uma das gravações que mais escutei em minha vida foi uma fita cassete gravada pelo meu irmão da transmissão do programa Estúdio Ao Vivo Transamérica, com Chico Science & Nação Zumbi. Transmitido em 1995, com músicas que estariam presentes no segundo disco da banda, o Afrociberdelia (1996). Aquela fita me impactou muito. As performances daquelas músicas eram muito diferentes das do primeiro CD do grupo. Inclusive, foi algo que me estimulou a acreditar nas críticas propagadas de que Liminha, produtor do primeiro disco, não tinha conseguido captar em estúdio a energia que a banda transmitia ao vivo. E, realmente, mesmo não tendo chegado a assistir o grupo ao vivo (quando Chico Science morreu no fatídico acidente automobilístico, eu tinha 12 anos, e naquele ano começaria a me aventurar em meus primeiros shows), nas gravações em vídeo da época é possível perceber que as performances de palco da banda faziam o som do grupo crescer muito. 

-Leia no site nossa resenha sobre o disco Radiola Vol.1 da Nação Zumbi

Por essa época, desenvolvi uma verdadeira mania por gravações ao vivo dos artistas que gostava, especialmente os chamados bootlegs ou discos piratas. Existiam muitas gravações assim de artistas internacionais ligados ao universo do rock (gostava muito dos CD’s da gravadora italiana KTS), mas as gravações daqueles artistas locais, pelos quais eu estava cada vez mais magnetizado, eram muito difíceis de obter. As poucas chances que tinha de consegui-las eram em programas especiais ou nos festivais que as rádios passaram a transmitir ao vivo, especialmente a Rádio Cidade. Então, sempre que tinha oportunidade, passei a gravar alguns desses shows e, toda vez que ia assisti-los ao vivo, deixava as gravações a cargo de algum amigo que fosse ficar em casa. Assim, eu entregava uma série de fitas cassete ao amigo da vez, geralmente uma fita usada para ser copiada por cima, e avisava quais artistas que mais fazia questão que fossem gravados e os horários dos shows. Às vezes, a transmissão da rádio começava tarde e não transmitia os primeiros shows, outras vezes encerrava antes dos últimos shows da noite. Um desses amigos responsáveis por realizar as gravações era muito dorminhoco e, em algumas ocasiões, dormiu sem gravar nada ou mesmo gravou só a primeira metade de uma fita, ou seja, os 30 primeiros minutos do show. Houve um dia em que outro amigo estava gravando e faltou luz, e ainda outra oportunidade em que o rádio de outro quebrou. Fora os dias que eu não consegui gravar por algum motivo e outros em que não encontrei ninguém para gravar para mim. Sei também que havia as desculpas, porque não era nada fácil ficar gravando shows em casa enquanto eu estava me divertindo na rua. Assim, sou muito grato a esses amigos por terem realizado esses registros. 

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Capa e encarte da fita demo do clássico Faces do Suburbio, Ser Negro de 1997

Mas a maior empolgação era poder escutar as fitas depois dos shows. Passava vários dias escutando aquelas gravações dos artistas de que gostava: Nação Zumbi, Devotos, Faces do Subúrbio, Via Sat, Mundo Livre S/A, Sheik Tosado, DJ Dolores, Querosene Jacaré, Eddie, Sistema X, Chão e Chinelo, Textículos de Mary, entre diversos outros. Mesmo tendo várias oportunidades de assisti-los ao vivo, eu era fissurado em bootlegs e raridades, e meu maior sonho sempre foi conseguir gravações dos ensaios das bandas. Minha coleção de gravações ao vivo foi crescendo junto com a de CD’s e fitas demo. E logo mais começou a de MP3 também.

Com a disseminação dos programas de compartilhamentos de arquivos como Napster, Kazaa, Audio Galaxy e Soulseek, consegui muitas gravações raras de artistas que curtia, além também de ter disponibilizado para outros colecionadores as gravações que possuía em meu acervo. Lembro muito quando Elcy Oliveira, dono da locadora CD Rock, disponibilizou em sua loja um CD de Chico Science com o título Raridades. Isso deve ter sido lá pelo ano 2000. Eu fiquei maluco quando vi aquilo. O CD tinha duas demos da Loustal, grupo de Chico Science anterior à Nação Zumbi, duas demos da própria Nação, além de uma gravação ao vivo da CSNZ de um show chamado Mangue Feliz, realizado em 24 de dezembro de 1992, quase um ano antes das gravações do CD Da Lama ao Caos e com arranjos ainda muito crus. Aquelas gravações mexeram comigo. Dali, eu só conhecia a gravação do Loustal para “Etnia”, através de um clipe gravado ao vivo pelo grupo no bar Rabo de Arraia, em Olinda. O restante das gravações era totalmente inédito para mim e ao escutar aqueles sons eu conseguia finalmente entender como a sonoridade do CSNZ foi moldada. 

Só há alguns anos, em uma entrevista com Elcy, descobri como ele conseguiu aquelas gravações. Ele disse que, em uma conversa com Airton Gordinho (à época baixista do Querosene Jacaré, assassinado em 2000), este sabendo do interesse de Elcy por Chico Science, disse que possuía umas gravações antigas, inclusive um show que ele gravou quando trabalhava como técnico de som. Ele então compilou as gravações num CD e entregou a Elcy, que logo em seguida disponibilizou o disco na loja. Com aquele CD em mãos, eu tratei de fazer uma cópia pra mim e passei muito tempo escutando aquelas gravações, sendo que um tempo depois Elcy acabou tendo de tirar o disco da locação.

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Acervo de Cd’s de grupos do Manguebeat do Renato Lyra de Lemos

Pouco tempo depois, coincidiu de, navegando na internet, eu encontrar em um site operado por H.D. Mabuse, importante figura da cena Mangue e amigo de Chico, umas gravações do Bom Tom Rádio, grupo do qual Chico fazia parte com Mabuse e Jorge du Peixe, ali entre 1987 e 1990 aproximadamente, o qual realizou apenas dois shows, mas que deixou algumas gravações caseiras. Munido de quatro faixas do Bom Tom Rádio, de uma versão gravada pelo CSNZ da música “Todos estão surdos”, de Roberto Carlos, em um disco tributo a ele e mais uma gravação inédita de Chico lançada em CD pela revista Trip — a música “Roda Rodete Rodiano” (da dupla de emboladores Cajú e Castanha), cantada por Chico e Jorge du Peixe e produzida por BiD (produtor do disco Afrociberdelia) —, adicionei essas faixas ao disco de raridades e joguei na internet. Essas gravações acabaram circulando muito, uma prova para mim de que além de existir um público muito ávido por sons de Chico Science, também havia uma galera que curtia raridades: gravações demo, ensaios em estúdio, transmissões de shows ao vivo, etc. 

Assim, comecei a me envolver cada vez mais na internet com redes de colecionadores que tinham interesse nesse tipo de som. Eu sempre estava atrás de EP’s e CD’s demo de bandas antigas e novas. Inclusive, algumas das gravações que cheguei a juntar ao longo dos anos, aos poucos, foram sumindo da internet. Os sites que hospedavam aquelas gravações foram fechando, os links foram morrendo e, com as mudanças tecnológicas, além dos eventuais problemas e defeitos em mídias como CD’s, DVD’s e HD’s, muitas dessas gravações foram se perdendo. Ao me tornar pesquisador e passar a estudar as temáticas de coleções, acervos, arquivos e processos de digitalização, passei a conversar com alguns artistas e descobri que em alguns casos nem mesmo eles dispunham mais daqueles registros. Como eu sempre tive a inquietação de disponibilizar arquivos na internet dos artistas locais que curtia, e que muitas vezes não conseguiam furar as barreiras locais através do mercado de discos, passei a pensar em outras estratégias de como tornar disponíveis aquelas gravações de artistas e grupos da cena que vinham aos poucos sendo esquecidos, ou que nem sequer haviam recebido o devido reconhecimento enquanto ainda estavam produzindo os seus sons. 

Nesse ínterim, publiquei o texto “Escavando as memórias negras aterradas sob a lama da Manguetown” (2024), na Revista Música da USP, no qual discuto o processo de apagamento dos artistas negros de Pernambuco que fizeram parte da cena Mangue, tendo como mote os eventos de comemoração de 30 anos do movimento, completados em 2022. Muitos grupos da época, especialmente a galera periférica de bairros como Peixinhos, na cidade de Olinda, foram acusados de serem meros copiadores do som que Chico Science & Nação Zumbi vinham produzindo. Porém, muitos desses artistas foram músicos do Bloco Afro Lamento Negro, grupo que Chico Science fez parte no início dos anos 1990 e que depois se tornou seu grupo de apoio, e do qual saíram vários músicos que vieram a integrar a Nação Zumbi. Inclusive um desses grupos, o Via Sat, fundado em 1993, foi formado por ex-músicos da Nação Zumbi, um dos quais, o percussionista Maureliano Ribeiro, o Mau, foi responsável por desenvolver os primeiros arranjos de percussão para o CSNZ. 

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Acervo do Renato Lyra de fitas demos e gravações ao vivo

Além do Via Sat, outras bandas periféricas como  e diversas mais, tiveram muitas dificuldades para conseguirem gravar e fazer shows. Gravar ainda era muito caro, e, para artistas sem condições financeiras nem apoio, era algo muito difícil de se realizar. Muitos desses grupos à época, inclusive, só foram conseguir efetuar suas gravações após a morte de Chico Science, tamanha a visibilidade que a cena alcançou com essa tragédia, a qual gerou uma cobertura midiática muito grande. Além da eventual procura por artistas que pudessem “substituir” Chico Science ou que mantivessem a bandeira do Mangue hasteada. Porém, como muitos desses grupos foram criticados e apontados como cópias, inclusive por indivíduos que tinham grande visibilidade na cena, vários deles acabaram não conseguindo dar prosseguimento às suas carreiras. Isso fez com que, com o tempo, quando as narrativas sobre o Manguebeat foram sendo contadas, seus nomes não fossem rememorados, como se eles não tivessem feito parte daquilo, ou que as suas participações não tivessem sido relevantes.

Hoje, o que encontramos da cena Mangue nos streamings de música é, infelizmente, muito pouco se comparado ao tanto de material que foi produzido em CD’s e fitas cassetes. No Youtube e Soundcloud é possível encontrar mais gravações, mas mesmo assim ainda não é o bastante. Muitos artistas da época não têm nem nunca tiveram suas gravações disponibilizadas nessas redes. Mesmo colecionando música há tantos anos, existem muitas gravações que circularam à época às quais eu nunca tive acesso. Pensando nisso tudo, iniciei o trabalho de digitalização de alguns desses materiais e comecei a disponibilizá-los em um canal no Youtube. Consegui um amigo que fazia a digitalização nas horas vagas em um equipamento improvisado e comecei a lançar as gravações na internet. Foi por essa época que descobri que alguns dos artistas os quais eu estava armazenando os áudios no meu canal não dispunham dessas gravações: fossem as transmissões dos shows gravadas do rádio, as fitas demo ou mesmo os mp3 demo lançados na internet. Várias pessoas passaram, então, a mandar mensagens para falar sobre os áudios. Muitas vezes os próprios artistas entraram em contato para agradecer por poderem escutar novamente aqueles sons que tinham produzido há tantos anos e que não escutavam desde aquela época (em alguns casos aproximadamente vinte e cinco anos) e em outras eram fãs procurando gravações específicas de algum artista ou de determinado show transmitido pelo rádio.

Ministrando palestras e aulas, ou participando de debates sobre esses temas em escolas e universidades, passei a perceber que a galera mais jovem sabe muito pouco sobre o Manguebeat, e geralmente as poucas informações ficam muito circunscritas a Chico Science e à Nação Zumbi ou a um grupo de pessoas que se convencionou afirmar como o núcleo central da cena. E enquanto os sons desses outros artistas que fizeram parte da cena não forem disponibilizados, vai ser mais difícil gerar um interesse por eles e fazer com que finalmente suas histórias sejam contadas. 

Além dos esforços pessoais empreendidos por alguns colecionadores individuais ou mesmo por coletivos, existem iniciativas como o MUSIN — Museu Independente de Música Paranaense, que é responsável por preservar a memória da cena musical underground do Paraná. O MUSIN foi responsável por formar a Fonoteca da Música Paranaense, que conta hoje com aproximadamente 400 mil itens, entre mídias de áudio como CD’s, LP’s e fitas cassete, cartazes e flyers de eventos, reportagens da imprensa e documentos da Ordem dos Músicos do Brasil, entre outros. Iniciativas como essa precisam ser replicadas em todo o Brasil, e pensando nisso, a direção do MUSIN foi transferida para São Paulo em 2024 e vem montando núcleos colaborativos em todas as regiões do país, com o intuito de reunir colecionadores, músicos, jornalistas, pesquisadores, produtores, fanzineiros, DJ’s e outros, para conservar, disponibilizar ao grande público e debater sobre as memórias das cenas underground do Brasil. 

Aqui em Pernambuco, além dos esforços empreendidos por vários indivíduos ao longo dos anos, uma frente vem sendo formada também com o intuito de salvaguardar e revitalizar essas memórias, principalmente devido a uma inquietação dos detentores de coleções e acervos sobre o que vai ser feito com esses materiais quando eles não estiverem mais aqui, e também uma preocupação em disponibilizar esses materiais ainda em vida para que as pessoas interessadas possam ter acesso a eles.

A família de Chico Science é um dos exemplos desse tipo de iniciativa através do projeto Acervo Chico Science, com a digitalização e disponibilização online dos cadernos de Chico e a conservação e catalogação de seus objetos pessoais, fazendo com que, mesmo com o descaso dos poderes públicos, sua memória siga viva e dinâmica. Alguns desses artistas da cena, infelizmente, não estão mais aqui para contarem as suas histórias (porém ainda podem ser rememorados através dos seus parceiros e fãs), mas outros ainda seguem atuando e produzindo, mesmo circunscritos ao underground, seja por falta de maiores oportunidades ou mesmo por opções ideológicas. Afinal, essas memórias são muito recentes e ainda muito vivas na cena local, elas precisam apenas de mais oportunidades para serem transmitidas e visibilizadas, para que assim possamos dar outros tons e outros sons às narrativas oficializadas do Manguebeat e da música underground nacional.

-Rios, pontes e Hard Drives, impressionantes arquivos de lama: digitalizando as memórias do Manguebeat 

Por Renato de Lyra Lemos 

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