Dia de Preto do Cazasuja dura muito mais que 24 horas, o album de estreia do MC potiguar aborda questões importantes e traz sonoridade rica
“Cazasuja faz um convite para você “descer o beco” como Alice caiu na toca do Coelho”
Antes de mais nada quero dizer que existe uma questão, em termos de música, que qualquer pessoa pode notar. Trata-se de entender como o tempo passa rápido enquanto ouvimos atentamente e desfrutamos um disco. Desse modo experimentamos a sensação de que o tempo passa depressa. Até porque isso ocorre quando estamos em outras atividades prazerosas. Por exemplo, enquanto estamos conversando com amigos. Ora, essa experiência se dá porque enquanto estamos em meio ao prazer nos descolamos do tempo cronometrado e entramos na duração.
Certamente um dia ruim nos dá convicção de que somente o período da manhã teve umas 36 horas. Porém um dia maravilhoso passa voando! Assim como passam voando também nossas férias quando bem curtidas. De tal forma, você terá essa mesma sensação escutando o disco de estréia do rapper potiguar Cazasuja: Dia de Preto (2020).
Esse “dia” que ele produziu trabalha num paradoxo temporal. Isso porque carrega toda a sua história. Enquanto, ao mesmo tempo, carrega a história coletiva do povo negro em nosso país. Dessa forma, os “tempos” de cada música, assim como a poesia e o beats, estão realmente encharcados por séculos de história. Até porque ao mesmo tempo tendem a resumir o que seria esse Dia de Preto. Sendo assim, Cazasuja, como muitos MC’s periféricos, enfrenta diversos problemas de toda ordem. Problemas econômicos, sociais e políticos, porém sua experiência em “ações diretas” o ensinou a partir pro arregaço.
Talvez não tenha uma outra definição melhor para esse “Dia”. Uma vez que é o dia – que de algum modo são todos – de levantar a cabeça e descer pra arena. Ora, não bastasse o enfrentamento do racismo, bem como das desigualdades sociais e de outras questões estruturais. Resta ainda enfrentar a inviabilização de uma cena nacional que se resume a dois estados e alguns cotistas! São muros que certamente não são passíveis de pular em apenas um dia. Sendo assim ele parte para a demolição!
A caminhada de Cazasuja não começa nesse dia. Isso porque o rapper faz parte do coletivo Gore Gang e já possui dois EP’s realmente muito bons. Coisa que já deveria ter aparecido aqui no Oganpazan. Ato I (2018) já nos aponta para a busca de uma outra sonoridade fora da moda. O que vem fazendo da obra do Cazasuja algo bem único no Brasil. Um MC que tem forjado a ferro e fogo uma identidade própria, apesar de toda dificuldade e invisibilização.
“O Rapper Potiguar Cazasuja tem uma caminhada que você precisa conhecer”
No ano passado foi a vez do segundo EP Entre Eles e a Morte, Eu (2019). Contando com 7 faixas sujando a cena com qualidade lírica, assim como variações de flow que buscam encontrar o seu espaço na marra. Assim sendo, sabemos que apenas qualidade não é suficiente. Recomendamos muito que você leitor faça o mesmo exercício. Assim como estamos propondo aqui. Escute os EP’s desse mano e perceba – se como nós você também não o conhecia – o quanto a qualidade do Cazasuja já tá na rua faz um tempo.
Portanto, esses são alguns dos ingredientes que o rapper Cazasuja vem temperando com sua vivência. Alem do que, não deixa de fazer os corres e sobretudo mantendo o desenvolvimento musical e poético. Ingredientes que agora com a ajuda de Aion, desagua no Dia de Preto (2020). Primeiro disco do MC.
O disco teria um extensão maior, mas a quarentena chegou e bagunçou tudo. Todavia não prejudicou em nada deixando-nos apenas com mais um gostinho de quero mais na boca.
Esse “Dia de Preto” já começa com um beat classudo demais. Beat ancorado no groove, com samples muito bem engendrados. Além do mais, nessas bases Cazasuja abre sua caixa de ferramentas com vontade. Certamente é apenas o começo de uma trilha que já demonstra sua força inequívoca. Desse modo, mantém a postura no proceder, além, claro de talento e consciência. Realmente estamos numa “Introdução”.
“O show de um homem verdadeiro (Trueman) é bala e fogo nos racistas e na mediocridade!”
Não podemos deixar de destacar as linhas contra o racismo e o extermínio da população negra. Linhas que encontramos em “A Quebra do Elo”. Uma faixa que diz coisas profundas e ao mesmo tempo elabora uma forma nova. Ocorre o mesmo em um beat de Trap que também foge do comum. Escuta e me fala!
A dobradinha feita por “Babilônia 2020″ e Show de Trueman” é inaudita no rap nacional. Sem exagero. Não tem paralelo em nada que tem sido produzido aqui. Ao longo dessas duas faixas o tempo fica completamente suspenso. A partir daí caímos na toca do coelho como Alice. Numa queda que nos coloca diante de um turbilhão de problemas. Somos atingidos por uma porrada que nos obriga a pensar onde isso encontrará a acolhida devida. O cara faz algo novo em termos formais. Ao meno no que tange o rap nacional. Enfim, é de cair de rir também se nos deixamos levar e comprarmos isso aqui com o hype do eixo.
Cazasuja se cercou de beatmakers que fizeram um trabalho excepcional! Respondem pelos nomes de VZL Swami e Walter Nazário. Hardcore e boombapzeira com uma tranquilidade de veterano. Somados àquela agressividade que somente quem está vendendo o almoço para comprar a janta pode executar Pegada de vida numa urgência absurda. Ouçam e se segurem.
Escuta “Desce o Beco” e me diz se estou exagerando. Uma produção anos luz a frente do que você está acostumado. Cortesia do Gabriel Souto. Já não fosse suficiente, ainda apresenta-nos a braba Aura. O cara bagaça sua parte! Contra a meritocracia escrota e branca de classe média! Responsável que eleva alguns manos ao “auge”. Mantém a consciência plena de que está fazendo uma caminhada sólida. “Do Nada” com o beat do Gabriel Souto é outra grande produção do disco. A faixa mete o dedo na ferida.
“Ninguém Aqui Vai te Estender a Mão, Se Não For Nós por Nós, De que Vale os Refrão Então?”
A bonita voz de Rasec emoldura a faixa que pode ser encarada como a mais tradicional do disco. Assim como um Paradoxo de Basquiat num beat de VZL Swami, Cazasuja vai além. Ele não só inova, mas nos mostra que só se pode fazer o novo quando se domina a tradição. Desfilando uma lírica inabalável e rica em críticas que nos contam o quanto ele tem consciência do funcionamento da indústria cultural. Genialidade e sucesso, manter as origens e ocupar novos espaços, além de fugir da estrutura racista e ao mesmo tempo não reificar o sistema. ´Parece-nos que a letra, muito complexa em sua construção, trabalha em observações boombapzeiras. Isso dentro desse paradoxo que o MC diagnostica como o paradoxo de Basquiat.
Fechando o disco, “Só mais um Samba” é outra produção excelentemente torta do KALI. Aqui sim, talvez algo que possamos chamar de neo samba. Encontramos o beat embebido de batidas e samplers diversos de ritmos. Produzindo um protótipo de alguma coisa nova. Um encerramento que não encerra nada. Pelo contrário, abre-nos perspectivas muito novas e sobretudo nos incute a necessidade de colocar no repeat.
Cazasuja faz uma arte que cresce a cada audição. Ficamos agrilhoados a ela, mas sempre na esperança de fugir mais um pouco dessa mediocridade tão comemorada pelo eixo. Onde trabalhos medianos ou mesmo muito ruins são alcançados a categoria de genialidade. Dia de Preto foi lançado pela DoSol, numa excelente iniciativa de apoiar e produzir algo que realmente tem muita qualidade no Rap Potiguar, da terra dos Agregados.
De resto, vocês vão me dar licença que vou ouvir mais algumas vezes essa pedrada do Cazasuja, que tem feito meu Dia de Preto durar mais de uma semana.
-Dia de Preto do Cazasuja dura muito mais que 24 horas
Por Danilo Cruz