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Demotape Cataclisma: Us Pior da Turma e o Rap Underground

Demotape Cataclisma: Us Pior da Turma e o Rap Underground num cenário de distópia chamado de escombros Bahia. Vale ler esse artigo/entrevista

O movimento de pensar nossas dores e traumas e utilizá-las como ferramentas de denúncia e necessidade de organização é uma questão central dentro de alguns trabalhos do movimento Hip Hop. A Demotape Cataclisma, lançada no dia 30/08/2019, pelo grupo de rap baiano Us Pior da Turma, com a assinatura do selo Íbori é umas dessas obras que merecem destaque nesse contexto, tendo por referência o trabalho desenvolvido por três jovens homens pretos, que contrariam as estatísticas do sistema supremacista branco brasileiro e produzem um manifesto de guerra, desobediência civil e esperança para a juventude negra baiana e brasileira.

Desde sua criação em 2012, esse grupo de rap, alocado na cidade de Cachoeira, Recôncavo da Bahia, tem se destacado frente ao cenário baiano do rap underground. Com letras efusivas e impactantes, fazem verdadeiras denúncias da opressão racial vivenciada pelas pessoas pretas, habitantes das comunidades ditas periféricas, infligida principalmente pelo braço armado do estado: a Polícia Militar.

Num discurso forte e que faz alusão ao nacionalismo negro de Malcolm X, dentre outros grandes homens pretos, Cataclisma,  parte de um projeto audiovisual maior chamado Escombros Bahia. Cataclisma tem uma narrativa vivenciada pelo povo preto dessa terra hostil e anti negra, onde a cada 23 minutos um jovem homem preto em idade produtiva é alvejado e morto. Contrariando essas estatísticas do sistema, os Mc’s Aganju, A lendaSZ e DJ F3L3P3, chegam com toda a agressividade de quem sempre foi torturado pela supremacia racial branca, propondo uma guerra contra o sistema, servindo-se de todos os meios necessários.

Quem escuta a faixa que dá nome ao disco, tem a ligeira impressão de estar vivendo na Segunda Guerra Mundial: helicópteros sobrevoando nossas cabeças, tiros, terror, tensão e angústia. Uma guerra de alta intensidade, como eles mesmos afirmam na faixa seguinte, Valores Na Guerra. Para o filósofo preto africano Achille Mbembe (2018), existe uma necropolítica na atualidade que determina quais grupos irão morrer. Essa necropolítica seria, aqui na Bahia, orquestrada com maestria pelo Estado supremacista baiano, através do seu braço armado (PM), das políticas de sucateamento das escolas públicas e hospitais, negando-nos o direito à cidadania plena.

Mbembe ensina muito sobre essa condição de “sub-humanos” imposta pelo algoz opressor, a qual só será finalizada quando retomarmos o poder. Retomar o poder significa ter o direito de construir nosso próprio futuro, principal importância do Afrofuturismo para nossa compreensão e atuação dentro do Hip Hop nacional. 

Essa ideia de criar cenários pós apocalípticos é uma das singularidades do movimento afrofuturista, além é claro de contar também com o protagonismo de homens pretos, do início ao fim do trabalho. Narrar nossas próprias experiências nessa terra que nos é estranha e hostil é extremamente necessário (GROSFOGUEL, 2016), haja vista boa parte da história dos nossos ancestrais ter sido deturpada pela supremacia racial branca, numa tentativa de nos diminuir, segregar e exterminar por todos os meios (ASSANTE, 2003). Mais importante é fazer dessas narrativas um canal de comunicação inteligente para o nosso povo. Nesse sentido, destaco a maestria com que os Mc’s Aganju e AlendaSz escrevem suas letras insubversivas e venenosas, no dialeto das ruas e quebradas, passando as ideias para quem mais necessita ouvir: o homem preto, maior vítima da supremacia racial. 

Outros elementos importantes desse trabalho é a coerência existente entre os trabalhos que já foram produzidos por esse grupo. Numa junção do Nacionalismo Negro de Malcolm X com o Pan Africanismo de Marcus Garvey, Cataclisma, assim como as demos Supremacia, O Crime na Cor e Nas Margens do Fim do Mundo tomo I e II,  uma convocação para que o povo preto se aliste no novo Exército de Libertação Negra que está por vir. “Liberdade só matando feitores…” Nossos deuses nos ensinam a organizar nossa revolta…” esses fragmentos da faixa 2, Valores na Guerra, ditam o caráter underground desse grupo e a forma como estão se organizando de forma comunitária e quilombista para a ressurreição do povo negro.

Outra forma de inteligência negra Afrofuturista é a estética dos trabalhos produzidos pelo grupo. Todas as demotapes possuem na sua capa imagens alusivas ao comportamento doentio e caótico da supremacia branca sobre nós. Em Supremacia, temos uma das imagens mais fortes do período de escravização e desumanização dos nossos ancestrais: uma menina branca montada em uma menina negra, utilizando-a como animal. Essa é uma das imagens que chama atenção para todo o processo traumatizante que foi nossa escravização nos tempos de outrora. Na capa de Crime na Cor temos um policial negro algemando uma criança negra, levando-nos a uma crítica forte quanto a nossa condição de escravidão mental tão dantesca, responsável por nos colocar como inimigos mortais de nós mesmos. Uma “melancolia a conta gostas”.  

Frente a outras produções do Hip Hop nacional e internacional, Us Pior da Turma em Cataclisma deixa bem explicito qual a visão do grupo sobre futuro e poder negro, alinhado com as ideias dos nacionalistas negros mais ortodoxos, como Kwame Ture, Samora Michel e Patrice Lumumba. Não adianta ter um governo preto sem um poder preto. Não adianta construir uma retórica floreada, baseada numa ideia frágil de empoderamento pela estética ou uma representatividade limitada de alguns artistas negros (as). Estes (as) cumprem agenda política, porém não se comprometem com a causa racial na sua íntegra. Nesse sentido, a crítica de Cataclisma também serve de alerta para a miopia instaurada na atualidade entre os ditos “ativistas” negros, negociantes das mortes do seu povo em troca de favorecimento político partidário, editais governamentais e outras coisas que ferem a autonomia preta que Marcus Garvey pregava.

Entrevista com Us Pior da Turma

Em entrevista  com o grupo, pude obter algumas informações adicionais sobre essa Demotape, os projetos para o futuro e o que o grupo considera importante dentro da junção entre Afrofuturismo, Hip Hop e perspectivas negras futuras.

Como surgiu essa Demotape Cataclisma?

Us Pior da Turma: A Demotape Cataclisma, ela surge na verdade e com um processo de continuidade do próprio Us Pior da Turma tá ligado? Us Pior da Turma surge em 2015, quando quatro jovens pretos de diferentes trajetórias, gerações e perspectivas de vida se encontram, mas não no palco, tá ligado? A gente se conheceu anteriormente a 2015 e você fez parte desse processo aí entre os anos de 2008 a 2012 no contexto comunitário tanto eu quanto Lázaro e o condenador e o Dj Felipe. Em 2015 depois de vários anos envolvidos com a cultura hip hop a gente se encontra para fazer rap e institui essa banca. Desde quando a gente começou teve sempre essa grande preocupação de deixar bem evidente que nossa proposta estética tá bem além de nossas atuações políticas, comunitárias, tá ligado? Na verdade, é uma experiência total né? Faz parte disso.  Segundo que a gente ia ter muito cuidado, todos nós, tanto eu quanto o DJ Felipe, Lázaro e o coordenador, a gente sempre teve uma cultura musical bem apurada. A gente entende que além da cultura Hip Hop, o Rap é um desses aspectos, a gente também tá fazendo música. Então a gente sempre teve cuidado em como disponibilizar isso, como produzir e nossa primeira tarefa foi: vamos construir um disco. E até hoje a gente tá construindo esse disco, entendeu? Então a Demotape Cataclisma é mais um fragmento desse disco, entendeu? A gente tem construído de forma subterrânea, com o título de Escombros Bahia, e o disco fala disso: como jovens homens pretos na Bahia tem vivido, tem morrido, tem experienciado de várias formas sensoriais todo esse contexto de escombros de uma terra colonial, como Fanon bem delimitou em Os Condenados da Terra. A referência é bem essa, pra ser mais exato. Então a Demotape Cataclisma surge desse contexto aí, de mais de cinco anos, entendeu? É mais um fragmento disso, assim como o próprio Crime na Cor, a própria Demotape Supremacia, o próprio disco Nu Varejo, de Lázaro também.

Para Grosfoguel (2016), é necessário que as narrativas dos grupos que historicamente foram vitimados pelo sistema de opressão ideológica, física e racial, desenvolvida pela continente europeu, sejam valorizadas e reescritas pelos esses próprios agentes do conhecimento. Narrar as experiências de jovens negros, que vivenciam no seu cotidiano uma guerra racial subnotificada  é uma das formas de contrapor os dados apresentados pelo estado supremacista branco no que tange a violência racial que as pessoas pretas sofrem no seu cotidiano. Essas experiências, quando narradas pelas vozes dos que a vivenciam, legitimam os fatos e garantem a sua veracidade.

Para o Afrofuturismo, é necessário que as pessoas pretas, além de tornarem-se protagonistas da própria história, também tenham o potencial de reconhecer as distopias em que corpos estão vivenciando e que essa realidade não traduz uma relação de causa e efeito. Pelo contrário, o terror que é experienciado hoje, é fruto de um processo histórico-político que, assim como começou, pode ter um fim determinado. 

Nesse álbum vocês avançam na construção de várias denúncias contra a opressão racial e principalmente contra a repressão policial nas quebradas. Isso seria um Cataclisma ou uma distopia do presente? 

Us Pior da Turma: Essa denúncia ai que a gente tá fazendo é uma denúncia que ela tá na nossa estética, entendeu?  Você pode ver isso no nossos shows, você pode ver isso lá nas nossas capas, entendeu? Então essa denúncia é em várias temporalidades. Tem coisas que a gente escreve, tem capas que a gente elabora que remete a períodos coloniais, mas nós entendemos que esse período colonial ainda permanece e os jovens homens pretos de maneira geral e fundamentalmente vivem na condição de escravidão póstuma, né véi? A escravidão acabou mas continua pra gente. E a nossa morte à revelia é um sintoma evidente disso, que o escravo é um objeto descartável. Então, a gente tenta a todo momento, por isso que esse disco Escombros Bahia tá sendo construído em vários Laboratórios. A gente entende que essa experiência dessa condição de Cataclisma é de forma total. Então ela tem que ser fragmentada para ser entendida totalmente, por isso que nas nossas letras a gente fala de várias coisas, desde coisas metafísicas a coisas minimalistas a coisas estruturais, que a gente entende, na verdade, que estamos, com você bem apontou, em uma distopia. É isso que vai apontar no trabalho denominado Escombros Bahia, que vai juntar as peças desses anos, entendeu? Escombros Bahia é: Nós estamos nos escombros de uma terra arrasada, mas, por vários contextos, o povo negro é alienado disso, dessa condição.

Atrelado às ideias de uma Necropolítica, como propôs Mbembe (2018), a fala do grupo sintetiza uma realidade transnacional: a violência e a brutalidade policial nas comunidades negras. Refletindo sobre a noção de Estado de sitio estabelecida pelo mesmo autor, é possível concluir, tanto no relato do grupo, quanto no que o autor apresenta, que a realidade das comunidades negras periféricas se aproxima bastante desse estado de sítio. Fazendo um paralelo com o filme Bluesman, que apresenta um mundo idealista e, talvez, utópico para as pessoas negras, por apresentar uma forma diferente de comunidades negras, sem a presença e a repressão policial, podemos alinhar as duas ideias e encontrar um denominador comum: é necessário que cada pessoa preta esteja consciente da sua real condição e construa, coletivamente e diariamente, dispositivos e alternativas que possam produzir espaços seguros para as pessoas pretas.

Quais perspectivas de futuro para o povo preto vocês conseguem imaginar e o que seria necessário para reverter ou criar outro Cataclisma a nosso favor?

Us Pior da Turma: Pra nós, já estamos em uma condição de cataclisma, que é isso que nós temos chamado de genocídio do povo negro. Então, não há mais como reverter. Então como sobreviver, se organizar, reagir, construir nossas famílias e se preparar para o pior nesse contexto? É isso que Us Pior da Turma tem feito, entendeu? Por isso que a gente tem muito essa sagacidade de realizar trabalhos solos e fica evidente a diferença que é “A Lenda” rimando no trabalho solo e o que é ele rimando no Us pior da Turma, a mesma coisa são meus trabalhos solos. Porque Us pior da Turma é uma unidade criativa, é um dispositivo criativo primário. Desse dispositivo criativo a gente cria várias coisas, porque a experiência nossa, do povo preto e de vários jovens homens pretos é assim. Ela não é compartimentada, ela é total. Então a gente entende que não há mais como reverter. Nós já estamos nesse contexto, tanto que Cataclisma foi feito no ano passado, mas a gente escreveu essas letras em 2017. Parece que a gente foi no estúdio no final de semana passado, gravou e soltou, né? Ou eu estou errado? Então é presente, é imediato. O Cataclisma já está ai.

Na introdução do álbum tem uma trilha sonora de guerra que nos remete a um cenário de destruição em massa, um apocalipse. Na visão de vocês, o povo preto está preparado para esse apocalipse? Quais os dispositivos necessários para que possamos sobreviver a esse apocalipse racial? 

Us Pior da Turma: Como eu disse anteriormente, pra nós, o apocalipse já está ai. Esse apocalipse acontece no contexto de sequestro em massa do nosso povo e da construção desse estado brasileiro ou da América de forma geral, mas ele se intensifica na contemporaneidade, entendeu? Então, no contexto de genocídio e cataclisma nós já estamos. Estamos preparados? Se estamos morrendo aos milhares sem nenhum tipo de comoção, inclusive entre o nosso próprio povo, a análise correta é dizer que não. Não estamos preparados. Qual a solução? Nós estamos construindo uma via, mas pra saber se de fato essa via comunitária que nós temos protagonizado é de fato uma via estratégica a longo prazo, só o tempo vai dizer, mas sabemos o que não vai nos ajudar: eleições não vai nos ajudar, alocação de militantes do movimento negro dentro do Estado não vai nos ajudar. Nós temos que construir poder! Toda luta dentro do contexto da social democracia não é pelo poder, é pela influência. Então nós temos que construir um futuro de poder, e o nosso protagonismo dentro do trabalho comunitário, na perspectiva nacionalista preta é o entendimento que a gente tem de sobreviver e construir possibilidades de restauração dentro desse contexto de apocalipse, de cataclisma e que a gente vai definir futuramente como Escombros Bahia, que é o contexto específico da Bahia. Essa é nossa narrativa, que é também um dispositivo nessa guerra, entendeu? Esse nosso olhar, esse é nosso trauma, drama e dilema. Então a gente tá ai soltando pequenos verbetes do que tamo fazendo de forma subterrânea.

A faixa bônus da Demo, Homem Negro, é um sucesso antigo do grupo. Por que só agora ele aparece em uma Demotape?

Us Pior da Turma: A gente escreveu ela logo no começo do grupo, isso há cinco anos, e essa track, assim como Óleo e Garoa é um clássico aqui em Cachoeira, tá ligado? Ai a “maloca” abraçou o hino, a galera sempre pedia ela, estilo aquele “toca Raul, né? Toca Homem Negro!… Nesse período de tempo aí, pelo menos o que eu lembro de cabeça, uns sete “pivetes” que colavam no baile, que viajava nessa música foram mortos, num contexto de execução sumária ou vitimados por policiais em serviço. Então é uma track  que dá uma carga emocional muito forte, por isso que agente parou mais de fazer essa track. Inclusive as pessoas que são da cidade, quando ouvem ela, já lembram desses jovens. Mas a gente vai voltar a fazer essa track, porque é uma letra que fala mesmo da experiência sensorial, cognoscível, espiritual e emocional de ser um homem negro, que é sobretudo uma condição de estar inserido num contexto de uma sociedade que nos odeia, inclusive nossa própria comunidade, dentro de um contexto de auto ódio, os homens negros são os mais odiados. Então é um pouco do relato dessa neurose, partindo mesmo da subjetividade psicológica. 

Por último, quem acompanha o trabalho de vocês consegue perceber que existe uma sequência coesa nos seus escritos. Qual a relação entre Supremacia e Cataclisma?

Us Pior da Turma: Existe sim. Não só uma linearidade dinâmica entre todos os trabalhos que a gente tem assinado nos últimos cinco anos, desde a Microtape, os próprios trabalhos solos, tanto meu, quanto do parceiro A Lenda; o ultimo EP que nós fizemos em Belém do Pará, tudo faz parte desse quebra cabeça que a gente tá montando e dessa tese que a gente tem defendido: Escombros Bahia. A Bahia é um escombro de corpos pretos, entendeu? Convivam com isso. Nós não estamos só convivendo, mas estamos também analisando, pensando, sentindo e construindo alternativas dentro desse contexto.

Historicamente, na luta pela libertação negra e contra a supremacia racial branca, homens negros, conscientes do seu papel dentro do nosso povo, produziram e continuam produzindo ferramentas de luta nas mais variadas formas, sendo uma das mais apreciáveis a música negra. Assim como no Blues de B.B King, no Reggae de Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailler ou no Jazz de Louis Armstrong, homens pretos se ajudam mutuamente, escrevendo letras que nos ajudam a compreender as distopias da realidade em que estamos inseridos e municiando nosso povo, através da arte, para serem resistência frente os algozes. Vida longa ao Hip Hop! 

-Demotape Cataclisma: Us Pior da Turma e o Rap Underground

Por Esdras Oliveira de Souza 

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