A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes é cheia de referências e elementos que te colocarão num transe que te levará para além do som, numa verdadeira experiência sci-fi.
O roqueiro é um reacionário!
Os clichês são criados para nos colocar em uma zona de conforto tão preguiçosa e cômoda que evita até mesmo o menor esforço para elaborar uma linha de raciocínio sobre o que quer que seja. Vivemos num arranjo social que nos mantém inertes, anestesiados, receptores passivos de estímulos oriundos dos mais diversos pontos exteriores a nós.
Todos nós conhecemos alguém que se define como roqueiro. Nós mesmos já nos sentimos satisfeitos em assumir essa identidade em algum período de nossas vidas. Quando se assume esse tipo de persona, assume-se um acervo de clichês, que vão desde gestos específicos como a mão chifrada, esvaziados de sentido devido a repetição frenética e banal do mesmo, seja em querer ouvir um repertório específico de um conjunto específico de bandas. Qualquer gesto, música ou banda que fuja desta zona de conforto preparada pelos clichês que definem um roqueiro, são atacadas, ridicularizadas e descartadas pelo “rebanho”.
Quantas vezes tivemos que lidar com roqueiros decepcionados com suas bandas preferidas por estas terem lançado um álbum que fugia das características dos seus predecessores?
O roqueiro não quer criação, ele quer a repetição exaustiva do mesmo. Por isso muitos que se definem como roqueiros se sentiram seduzidos pelo mal de nosso tempo, o neo fascismo em sua versão tropical, encarnado no bolsonarismo.
Esses mesmos roqueiros proferem desde tempos remotos o juízo que sentencia a morte do rock. Outro clichê que os afunda ainda mais na bolha roqueira que não admite nada novo, nada diferente, nada que exija o esforço de buscar compreender, de buscar meios de interpretar aquele som, aquela obra que as grandes bandas e os grandes artistas insistem em nos mostrar.
Retrofoguetes, um foda-se ao gosto reacionário dos roqueiros!
Ao longo de 20 anos, a Retrofoguetes insistiu na busca por novas formas, por traçar novas trilhas que levassem para diferentes paragens. Percebemos isso interpretando as pegadas deixadas pela banda desde o lançamento de seu primeiro álbum, Ativar Retrofoguetes de 2003, passando pelo Cha Cha Cha de 2008 e o último deles, Enigmascope Vol 1 de 2016.
Cada álbum possui sua lógica interna, marca um período da banda e o espaçamento entre os lançamentos mostra a preocupação em ter o tempo da maturação da obra e a espera paciente pelo surgimento dos novos ímpetos criativos que originem um novo processo de criação.
Embora cada álbum possua suas particularidades e nos coloque em contato com os interesses estéticos da banda em determinados períodos de sua trajetória, nos mostra algo em comum, que constitui a natureza da Retrofoguetes. Estou me referindo ao elemento musical inerente à cultura baiana.
A música da Retrofoguetes possui o dna da cultura baiana. Nesse sentido, a surf music a que somos apresentados em Ativar Retrofoguetes, traz os elementos diversos, que os integrantes trazem de suas influências pessoais. Contudo, o modo de articular estes elementos, que resulta numa forma que se estrutura para sustentar o conteúdo criado, garantem uma sonoridade que é a marca identitária da banda.
Quando o segundo álbum, Cha Cha Cha, saiu, a Retrofoguetes se despiu da roupagem da surf music. A banda explora a sonoridade latina, mergulhando nos diferentes estilos dos povos latino americanos como o mambo, o tango, o calipso, o cha cha cha, mostrando todo swing e diversidade sonora dos povos latino americanos. Usando a diversidade musical latina para fundir com elementos do psychobilly, da surf music e do garage, com aquela pitada punk sempre à mão.
Oito anos depois lançam Enigmascope Vol 1 (Leia aqui nossa resenha deste álbum). Álbum cujo mote estético são as trilhas sonoras dos filmes de espionagem. Aqui já temos uma banda madura, em condições de buscar arranjos mais complexos, ousando compor músicas que lidam com uma diversidade ainda maior de timbres, vozes e elementos musicais.
Vou ousar dizer que talvez naquele momento a Retrofoguetes havia chegado no limite em termos de desafios criativos. Desde o Ativar Retrofoguetes, a banda seguiu um caminho de expandir as fronteiras e com isso agregar cada vez mais elementos. A meu ver, continuar por esse caminho poderia levar a banda a um colapso e acabar vitimada pela impossibilidade de lidar com complexidades ainda maiores que aquelas apresentadas em Enigmascope Vol1.
Tenho certeza que a partir do lançamento do Cha, Cha, Cha, muito roqueiro passou a se dizer decepcionado com a banda e em casos mais limítrofes, a detestar os Retrofoguetes.
Vinte anos e uma nova onda.
A banda corria o risco de comer mais do que poderia digerir e acabar se tornando prolixa, repetitiva e fazer algo enfadonho. E não à toa o novo trabalho da banda, o EP A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes, que vocês já podem conferir em todas as plataformas digitais, retoma uma linguagem mais simples e direta.
Não se trata de um retorno às origens, mas de lançar um olhar para as origens através dos olhos de quem possui uma vivência de 20 anos de estrada. “A Nova Onda”, em termos de sonoridade, é uma síntese dos três álbuns da banda. Trazem toda diversidade sonora produzida pela Retrofoguetes ao longo de duas décadas, expressas numa forma mais simples e direta.
Ter sucesso em fazer isso de modo a conseguir soar original e ainda atrair o ouvinte não é fácil. E eles conseguem nesse Ep, que leva a banda novamente ao formato de power trio. Durante um curto período, que resultou na gravação do Enigmascope Vol 1, a Retrofoguetes foi um quarteto.
Além de Morotó Slim na guitarra e Rex na bateria, o baixista Fábio Rocha e o guitarrista Júlio Moreno formaram a versão quarteto da banda. Morotó , um dos membros fundadores da banda junto a Rex, deixa a Retrofoguetes, o que leva a banda a retomar a formação de power trio, que acaba por ser outro elemento de ligação com a fase inicial da banda.
Desse modo, A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes é o primeiro trabalho da banda com essa nova formação. Particularmente fiquei muito animado e curioso ao saber que sairia um registro com composições inéditas da Retrofoguetes tendo Júlio, Fábio e Rex juntos.
Expectativas com relação à nova formação da banda.
Já tinha visto os três ao vivo. Desde então fiquei imaginando como seria um álbum da Retrofoguetes tendo Julio e Fábio compondo junto com Rex. Isso porque ambos chamaram minha atenção pelas características musicais particulares de cada um deles.
Júlio é um exímio guitarrista, detentor de um vocabulário musical muito diversificado, possui uma técnica de execução primorosa e um estilo próprio. Porém, há mais. O interesse pelas matizes sonoras, pela criação de novos timbres, acrescenta ao trabalho de Júlio maior diversidade de recursos.
Junta-se a isso suas raízes musicais portenhas, que foram se entrelaçando às raízes baianas que começaram a se desenvolver desde que deixou a Terra do Fogo na Argentina para morar em Salvador. O estilo desenvolvido por Julio ao tocar a guitarra passa pelo encontro dessas duas culturas, fundidas através das vivências em uma e outra, que ainda se juntam às práticas e pesquisas sonoras desenvolvidas pelo guitarrista.
A excelência como instrumentista também se aplica a Fábio, que desenha as linhas de baixo de forma natural. Num estilo que prima por uma sonoridade limpa, que privilegia o destaque de cada nota, sempre envenenadas com swing e groove. Considero que estas características do baixo do Fábio responsável pelo balanço das músicas.
A sensação que se tem ouvindo as quatro faixas que fazem parte de A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes é de que articulação, posição e execução de cada nota foram minuciosamente pensadas. Tem-se a impressão de que cada nota foi encaixada no lugar que lhe cabia. Não que essa sensação esteja ausente dos trabalhos anteriores. Porém, neste Ep ela é ainda mais marcante.
As quatro músicas sintetizam todo acervo de elementos, gêneros e estilos musicais que servem de matéria prima para cada uma delas. Esse cuidado “artesanal” em moldar os sons a partir de uma diversidade tão grande de referências, revela a paciência para encontrar os melhores encaixes, as melhores conexões que levem a atingir o resultado esperado.
A inclusão de Tadeu Mascarenhas nesse projeto foi determinante para dar ao A Nova Onda a atmosfera sci-fi que o EP tem. Dada sua importância nesse projeto, podemos até considerá-lo um quarto retrofoguete nesse EP. A contribuição de Tadeu se deu nos detalhes em três das faixas. A presença do sintetizador numa apreciação apressada pode passar despercebida, mas ela é percebida no conjunto sonoro.
Analisando as novas ondas hipnótica dos Retrofoguetes.
Vamos tentar analisar como isso se dá a partir de cada uma das músicas. Comecemos pela faixa que dá nome ao EP. A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes é a música que agrega mais elementos, que alterna mais tensões e possui mais idas e vindas, devido aos diferentes blocos que a compõem.
Ela começa com o baixo a todo volume groovando e imprimindo um andamento frenético, ativando sua percepção, dando logo a sensação de movimento. Aí amigo, entra a melodia do sintetizador num crescendo e temperada com um efeito sonoro que remete a um contexto tecnológico, a programação computacional, I.A.
Aí vem a bateria em marcações pontuais na caixa e no chimbal, que vai intensificando a sensação de movimento. O tempo entre as marcações na caixa vai diminuindo e aí você vai percebendo que o recurso do crescendo não é só na intensidade da execução, mas também na dinâmica do andamento. A sensação passa a ser que você vai decolar!
Eu já fui logo esperando entrar uma contagem regressiva autorizando a decolagem. Entra a guitarra pra dar a propulsão final pra música começar. Entra o riff principal executado pela guitarra, tendo a dinâmica rítmica alcançada, mantida pela bateria e pelo baixo, com pinceladas pontuais do sintetizador.
Lembra que falei do detalhe na participação do sintetizador na criação da atmosfera do EP? Pois é, depois que você ouvir a música toda sem se ater a uma elemento específico, volte ao seu início. E passe a perceber o que o sintetizador está fazendo quando entra a guitarra com o riff principal.
Voltando à música, acontece uma transição, deste tema principal para um tema de transição, no qual a guitarra passa a tocar um novo tema fazendo arpejos em stacattos. Dá aquela sensação de que se está saindo de um ponto para outro. Considero que a ausência do sintetizador nesse trecho é a causa dessa sensação de transição.
O novo ponto é alcançado quando o sintetizador retorna fazendo notas longas e a guitarra entra com um riff mais pesado e agressivo. Essa agressividade vai aos poucos sumindo até que se chega numa atmosfera leve, como se o espaço tivesse sido alcançado e a decolagem um sucesso.
Nessa parte o sintetizador assume o protagonismo e passa a executar o tema principal. E a sensação que se tem é de suavidade, como se a melodia flutuasse no espaço Aos poucos essa parte vai chegando ao fim e a banda volta ao tema principal. Aos poucos, a banda vai regressando, percorrendo o caminho inverso e somos levados a esperar o pouso que se dá no momento em que todos os instrumentos somem para deixar o sintetizador sozinho, fazendo um decrescendo, até que a voz do sintetizador desaparece e a música se encerra.
Não sei qual o critério usado pela banda para batizar o EP com o nome dessa faixa, mas foi uma decisão acertada. Ela sustenta meu ponto de vista apresentado acima do texto de que este EP sintetiza bem a diversidade sonora presente na trajetória da banda ao longo destas duas décadas. Além, claro, de sustentar a tese de que a posição e a função de cada nota foi minuciosamente planejada.
Mister Peligro já vem numa levada bem típica de surf music, com andamento bem cadenciado, um tema que se serve da dissonância para criar pontos de tensão ao longo da música, que nos leva a fazer a conexão com o título da faixa.
A condução iniciada pela bateria, bem acompanhada pelas linhas de baixo carregadas no volume, entrecortada pelos arpejos da guitarra e notas pontuais do sintetizador vão nos enredando numa atmosfera cult, que desemboca no primeiro solo de guitarra que segue numa linha de intervalos, que juntamente com o efeito escolhido para para temperá-la, nos faz imergir numa vibe psicodélica.
Essa parte da música que tem a linha melódica principal da guitarra, nessa pegada psicodélica, é linda, porque ela é toda ornamentada por linhas melódicas secundárias costuradas pelo sintetizador. Testemunhamos ali uma conversa entre sintetizador e guitarra. A guitarra usando uma linguagem mais direta, e o sintetizador uma linguagem mais rebuscada e cheia de ornamentos.
Ao longo dessa “conversa”, momentos de tensão vão se alternando até cair numa terceira parte onde o sintetizador assume o protagonismo. Nesse momento a bateria entra toda sincopada, dando aquela quebrada gostosa no ritmo e propiciando ao sintetizador gerar matizes sonoras compactas e solos cheios de groove. Me desculpem, mas terei que meter essa: Que passagem primorosa!
A música retoma o tema psicodélico que vai sendo alternado com outras partes da música até ser finalizada com o arpejo definitivo da guitarra. Voilá neném!!
Vamos pra música Tentácula. Começa volumosa, pesada, com baixo, bateria e guitarra formando um bloco sonoro quase homogêneo. A guitarra se descola e desenvolve uma linha melódica limpa e com timbre mais seco, tendo como pano de fundo camadas sonoras suaves e espraiadas.
O baixo se junta à guitarra fazendo um duo de vozes numa melodia que remete ao country estadunidense, destacando notas importantes com vibrato. Desemboca num solo de guitarra mais pujante, tocando notas mais distantes na zona dos graves numa voz, que é dobrada em melodia na zona dos médios e agudos.
Uma nova linha melódica sob a influência country surge, tendo o baixo fazendo o movimento ascendente e descendente das notas, saindo dos fundos e assumindo o protagonismo. Ao fundo escutamos a guitarra arpejando as notas, criando um contraste entre sua linha melódica mais tênue e aquela mais vigorosa do baixo.
Nessas você deve estar se perguntando, e o sintetizador, cadê? Ele reaparece e vem com suas notas pontuais, juntando-se à trama que vinha sendo urdida entre o baixo e a guitarra. Esse movimento de retirar e acrescentar as vozes dos instrumentos, somado às diferentes funções que vão se alternando entre eles ao longo das músicas, é algo que chama atenção pelo brilho e vivacidade com que são executadas.
Impressiona essa diversidade, as inúmeras partes que compõem cada música, porque as faixas são longas, a mais curta Telemetria tem 3 minutos e 22 segundos, a mais longa, Tentácula, 4 minutos e 7 segundos. O ouvinte se mantém atento, porque essa maneira de criar as músicas, adicionando elementos variados, aplicando arranjos diversos, evita o tédio.
E já que falei de Telemetria, vamos a ela. Essa música era pra ter entrado no Enigmascope Vol 1, porém, devido suas particularidades ficou de fora, uma vez que não se encaixava na proposta sonora daquele álbum. A música foi lançada como single em 2017.
Creio eu que as outras três faixas de A Nova Onda tiveram como referência, em termos de sonoridade, Telemetria. Ela serviu como base para a estruturação da identidade sonora do EP. Os elementos sci-fi estão latentes nela. São características que remetem a bandas como Devo e forçando um tiquinho a barra, até mesmo a Kraftwerk.
Isso porque essas bandas começaram a explorar de forma mais profunda os recursos eletrônicos da virada dos 70 pros 80. O resultado são sons metálicos, robóticos, sons de máquinas e instrumentos criados em ambientes laboratoriais.
Telemetria possui essas características de forma mais latente. Vejam o seu início. Ouvimos ruídos que parecem reproduzidos por computadores que fazem parte de uma nave espacial. Se você tiver mais de quarenta anos, dúvido vocês não ter lembrado de Star Treck, Star Wars (a trilogia original), Flash Gordon, Barbarella e afins.
Se tivessem feito um filme sci-fi que se passasse numa praia espacial ou coisa do tipo, Telemetria poderia facilmente ser a música tema. Porque ela é isso, uma suf music paramentada por efeitos robóticos, ruídos de instrumentos espaciais, criados nesse universo sci-fi.
Arte de capa de A Nova Onda Hipnótica dos Retrofoguetes
Falando em conjunto da obra, lembremos da relação umbilical entre a sonoridade construída para o EP e seu projeto gráfico. Na capa, o Mister Peligro, um vilão ruberista e pervertido, usa seus poderes hipnotizantes para dominar as mentes de suas vítimas através
de uma estranha engenhoca sonora.
A arte criada pelo incrível Edson Rosa (que já assinou projetos gráficos para artistas como Pitty e Ronei Jorge) traduz com precisão o imaginário fantástico que a banda propõe através dos seus temas. Fanático por quadrinhos, literatura pulp, filmes B e séries de TV, Edson usou todo esse arsenal de referências para compor o visual do disco.
Ficha Técnica
Produzido pelos Retrofoguetes e Tadeu Mascarenhas
Gravado, mixado e masterizado por Tadeu Mascarenhas no Estúdio
Casa das Máquinas, Salvador/Bahia/Brasil 2020.
Músicos:
Julio Moreno – Guitarra
Fábio Rocha – Baixo
Rex – Bateria
Músico convidado – Tadeu Mascarenhas – Teclados