Decifrando a lírica rebelde de Ludwig Van Beethoven. Um espetáculo sublime que ocorreu na Sala São Paulo e que Guilherme Espir nos conta !!
A música erudita é formada por um conjunto complexo de nuances. Imersa num contexto instrumental que muda como uma metamorfose de luzes e sombras, a música ganha ares épicos, enquanto delineia passagens que ilustram as lutas, os anseios e o universo criativo dos compositores.
O saxofonista Gary Bartz – que tocou com o Miles Davis na revolução do Jazz Rock (Fusion) que permeou os anos 70 – dizia que musicalmente falando, o Jazz devia muito para compositores como Beethoven, por exemplo. O motivo? Em termos de estrutura eles já desafiavam a linguagem e a forma, a única questão era que eles não tinham um naipe de metais.
Em termos de estética parece que esses universos estão distantes, mas na realidade é possível encurtar esse espaçamento quando percebemos que grande parte dos maiores músicos de Jazz, possuem formação clássica, como é o caso do baixista Ron Carter, por exemplo.
Essa ponte com o Jazz se faz necessária, pois em termos revolucionários, Ludwig foi tão transgressor e vibrante quanto o Bebop do Charlie Parker. No entanto, ainda existe um descolamento muito grande entre essas esferas, principalmente quando levamos em consideração que o Jazz foi um movimento popular, enquanto a música clássica sempre foi o som da elite.
Em 2020 o universo celebra os 250 anos do nascimento do compositor alemão. Desde sua morte – em 1827 – muitos estudiosos tentaram separar o homem do mito. O ser criativo e o ser humano, quando na verdade o próprio criador desse infinito particular sempre fez questão de extrapolar os limites da linguagem com uma carga emocional que era uma extensão de conturbado cotidiano.
Sua vida foi um relato pungente e o mais puro reflexo de sua música. O Jazz é um referencial interessante para começar a entender o erudito em sua rica fauna e flora de arranjos, composição e dinâmica, mas ainda assim é importante ter contato com esse idioma para que se possa compreender a magnitude do trabalho de um gênio que desafio a surdez em nome do poder de cura das vibrações sonoras.
Foi com esse ímpeto que a Sala São Paulo no último sabádo, trouxe o renomado regente francês Thierry Fischer para recriar uma das maiores obras do compositor, ao lado da orquestra sinfônica de São Paulo e o coro da OSESP. Interpretando a Missa Solemnis em Ré Maior, recriando e celebrando todo o esplendor de cada um de seus atos. Composta entre 1819-1923 essa peça estreou em abril de 1824, Em São Petesburgo, a pedido do príncipe Nikolai Borisovich Galitzine.
Numa época onde o mestre já lidava com problemas, pois em 1818 tinha perdido a audição completamente. Esse acontecimento foi cabal para o rumo de sua obra em seus últimos anos e essa missa é um clamor imenso em meio a tantos problemas de saúde, complicações financeiras e óbvio desafio de continuar criando de forma prolífica sem ao menos ouvir o tom que fazia as notas reverberarem no ar.
Uma obra moderna ancorado nos dogmas tradicionais da Igreja, a Missa ressalta o destino do homem perante Deus. Esse tom dramático é o que dá o tom e elucida todo o contexto de luta que Ludwig teve que perseverar para conseguir continuar com uma carreira tão prolífica.
As harmonias, os temas, as modulações e o contexto desse trabalho engrandecem as capacidades do ser humano. Não é uma ode à Igreja, é um momento de solene reflexão frente às capacidades do ser humano, retratadas por uma das mentes mais caóticas e vibrantes de todos os tempos.
Talvez o texto da Missa passe essa visão de que um dos maiores pilares da música ocidental estava engrandecendo a mística da Igreja, mas é o homem que está na linha de frente desse tortuoso caminho que é emoldurado pelos solistas, o coro e o trabalho da orquestra.
Beethoven suplica em “Kyrie”, de joelhos, com a mesma paixão de quem valoriza cada nota, mesmo sem conseguir ouvi-la. Um dos paradoxos mais tristes da história da música, cada capítulo dessa narrativa é amplamente bem pensado e construído. Com “Gloria” ele enaltece a paixão pela música enquanto demonstra um latente sofrimento, expresso aqui pelo tom ascendente de sua linguagem.
“Credo” surge como um mantra, enquanto “Sanctus” parece exorcizar todos os medos do maestro que canaliza suas frustações a cada passagem e mostra uma alma perturbada, mas que encontra no caos o porto seguro de suas inseguranças. É vibrante em “Benedictus” e absolutamente desafiador em “Agnus Dei”.
Foi com extrema cautela e zelo que Thierry e cia recriaram tudo isso. Foi um espetáculo irretocável e que em pouco mais de 80 minutos conseguiu responder uma pergunta que nem mesmo o próprio Beethoven esclareceu em vida. Qual foi seu objetivo com essa obra?
Para quem estava presente na Sala São Paulo o ímpeto ficou claro. Mais do que enaltecer o criador, Ludwig conseguiu contestar o homem. Parece até arrogante tentar definir essa peça, mas arrisco dizer que o objetivo principal foi nos despertar de um coma e nos fazer confrontar nossos medos, utilizando o elo da fé como cordão umbilical que tenta encurtar as distâncias entre o sagrado e o terreno, assim como o raciocínio que envolveu o Jazz e o erudito no início do texto.
A missa engrandece o homem e mostra que apesar dos pesares nós precisamos encontrar uma resposta e a música foi o idioma que o compositor escolheu para alçar os homens aos céus, sob o pressuposto de quem tem fé, não no criador, mas na vida, uma existência dúbia que apesar de ter sido de grande sofrimento para o alemão, nunca foi uma desculpa para interromper sua veia criativa.
É como ele mesmo disse em sua famosa dedicatória: “Vinda do coração, que possa retornar ao coração”.
-Decifrando a lírica rebelde de Ludwig Van Beethoven
Por Guilherme Espir