Daymé Arocena, em um belo disco solo demonstra todas as qualidade assombrosas que nos últimos anos vem arrebatando corações de grandes nomes do jazz.
Certamente, é um prazer imenso descobrir grandes artistas, é algo que enriquece nossas vidas tão necessitadas de afectos fortes e verdadeiros. Satisfação imensa também é notar o surgimento de uma grande estrela em escala mundial, é ouvir algo e se dar conta de que aquilo, talvez, se bem cuidado e escutado, poderá se tornar um clássico.
O disco de estreia da cubana Daymé Arocena nos da essa segunda sensação, já que a primeira é garantida por todas as qualidade da garota. Sim, uma mulher-garota de vinte e dois anos, com dezoito de experiência artística. Desde os quatro anos cantando pelas ruas de seu bairro vestida com as roupas típicas de boa rumbera, onde a pequenina cantava em yorubá as canções tradicionais de sua religião. Aos oito anos ela começou a cantar profissionalmente e aos quatorze já era crooner oficial de uma big band.
A cantora foi descoberta pelo produtor, dj e pesquisador britânico Gilles Peterson em sua viagem a ilha para a produção do disco Havana Cultura. Ela que já vinha compondo uma banda de jazz apenas com mulheres chamada Alami, foi convidada a participar e daí em diante, sua exposição artística para outros públicos, aconteceu. Foi numa das apresentações do grupo que diante da potência vista em cima do palco a saxofonista Jane Bunnett, estreitou laços com as meninas e lançaram em 2014 o disco Jane Bunnett & Maqueque. Da mesma forma, diante da grandiosidade de sua participação no Havana Cultura Mix: The Soundclash, o produtor inglês não teve dúvidas em convida-la a gravar um disco solo. A fortíssima impressão artística causada por Daymé Arocena, nos mais diversos artistas e públicos é uma constante.
O disco desta nova voz do jazz, abre com Madres, um canto reverência às deidades yorubás: Oxum e Yemanjá. É certo que além deste forte estofo espiritual Daymé Arocena segue alguns outros espíritos, sendo a ancestralidade direta com Ella Fitzgerald a mais evidente. Sua voz, mas sobretudo a utilização que a cantora – instrumentista e compositora – faz dela, tratando-a como um instrumento, lhe coloca na linhagem das grandes divas.
O disco passeia por diversas cores musicais e pinta um quadro jazzístico contemporâneo belíssimo, compondo-se de diálogos seja com a música de sua terra natal, seja com tons de soul, R&B ou mesmo do pop. Sem experimentalismos radicais, o disco busca simplicidade e leveza, a inventividade nos arranjos e na colocação da voz sobre os mesmos. Desde a primeira faixa acima citada, o canto em homenagem às divindades, recebe uma base com batida rústica e marcada, porém preenchida por baixo, teclado e percussão suaves, abrindo espaço para a amplitude da voz de Arocena alcançar o Orun em sua plenitude. “Hay Ochum me madre, te quiero Cantar!”.
É preciso louvar a qualidade de compositora da cantora cubana que não recai em temas simples, exibindo um repertorio próprio de qualidade exuberante. É ouvir nascer voz e palavras, na busca da liberdade e da excelência artística. Drama é uma canção que dramatiza a relação da voz com a música, palavras e ritmos duelando num delicioso groove. Duelo esse que plama uma relação de incorporação ritual que a cantora diz ter com a interpretação de temas musicais. Aspectos esses que percorrem também a mais lenta e romântica Sin Empezar e a grooveada Don’t Unplug My Body.
Essa última mostra como essa revelação é capaz de botar no chinelo muitas cantoras, boas cantoras, que surgem ano a ano como verdadeiras novas divas e que com o passar dos anos continuam a apresentar resultados tímidos diante do alarde inicial. Nesta música a completude de recursos fica evidente, no perfeito ajuste entre o fraseado suave R&B, ou na busca de notas mais altas enquanto banca um excelente Sketch, como sua inspiração Ella Fitzgerald sucinta. Arocena é muito mais que uma boa cantora, é uma artista da voz. Já com larga experiência musical e formação técnica, em entrevista a artista diz que sabe da necessidade de modular sua voz para fazê-la percorrer diferentes modulações. Alcançando assim quase toda a amplidão da paleta de cores de que sua voz é capaz.
É o velho problema do hype e é de estranhar a pouca repercussão que o disco dela parece ter gerado, seja no Brasil, seja em outras plagas. Mesmo em seus momentos de leveza o grau de qualidade se supera, como na canção de ninar Niño, onde todo seu conhecimento como diretora de coros transforma a canção. Como também na humorada história de como sua mãe teve que aprender russo nos anos 80: El Russo, uma delícia. O disco fecha com o belíssimo standard Come To Me, que parece vindo de um passado glorioso do jazz, mas que como todas as canções do disco é apenas mais uma composição inédita e maravilhosa de lavra própria da autora.
O disco não possui um ponto alto, porque todo ele é excelente em sua diversidade sonora em seus pequenos experimentos com timbres e harmonias. Os excelentes Simbad, Oli Savill e Rob Mitchell (baixo, percussão e piano, respectivamente) formam uma base consistente e inventiva na medida certa. A produção, por conta de Gilles Peterson, marca no disco as referências à riquíssima música cubana, mas sem o aprisionamento da cantora a um ponto fixo, a algo como um regionalismo. Antes lhe abre em suas plenas potencialidades a todas as possibilidades de que sua voz é capaz de alcançar.
Acredito ser um disco muito importante, tanto pra novíssima safra da música cubana, quanto mundial. Neste disco vemos nascer uma grande voz do jazz e nos foi impossível não a adjetivar da forma como ela se apresenta: Sublime.
Aqui uma amostra:
Ficha Técnica:
Daymé Arocena: Composição, Vocal, Percussão
Neill Charles: Baixo
Miguel Angel de Armas: Piano
Julio Cezar Gispert: Timbales
Omar Gonzalez: Baixo
Yasek Manzano: Trumpete
Rob Mitchell: Piano
Maria Julia Nunez: Onkokolo, Percussão
Oli Savil: Bongôs, Cajon, Congas
Simbad: Baixo, Percussão, Hammond, Piano, Produção
Adrian Valdés: Congas
Yelfris Valdés: Flugelhorn, Trumpetes
Gilles Peterson: Produção