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Dark e Carol “RDC” no single Madrugada Fria

Em seu priDark e Carol "RDC" no single Madrugada Friameiro single, Madruga Fria, o Mc Dark mostra através de sua poesia como as madrugadas de Salvador podem enganar até os melhores termômetros.

Um raio que atravessou as noites e os dias de Salvador, com um barulho intenso, frio e com um brilho gigantesco, chamando atenção de grandes nomes da cena local pela qualidade de sua música. Resgate, agressividade, criatividade e postura. Dark (que conta nessa faixa com a participação da Carol “RDC”) é um daqueles moleques que conseguem estabelecer uma prosódia de rua inconfundível e original. Com uma verdade que a própria sintaxe que ele produz demonstra em si mesma e é capaz de elevar conversas e modos de falar cotidianos da favela ao status de arte, pelo seu apuro em ajustar com naturalidade forma e conteúdo.  Levando-nos a pensar de onde uma coisa dessas surge, de que forma se conseguiu fazer uma síntese tão perfeita da nossa situação enquanto sociedade.

Um narrador inteirado, dando-nos de graça a visão de dentro do crime, tal qual dava também o grande mestre Sabotage. Vivências subvertidas pela arte e transformadas em ensinamentos de como funcionam os mecanismos de genocídio do nosso povo preto. Obviamente que de certa forma os rappers são em geral filhos da periferia e possuem a vivência das ruas, mas Dark trouxe-nos outra perspectiva nessa música. Mostrando uma forma que não é comum, a ideia dada pelo mano possui uma força que só é concebível se entendermos que se trata de alguém com muita experiência e talentoso suficiente para trazer isso pra gente com a transfiguração que só a arte consegue. Provavelmente esse lançamento de alguns meses atrás já está de algum jeito soterrado pela quantidade de lançamentos que se seguiram a ele, mas sua atuação na cena resgata. Hoje Dark é um Mc. É uma peça rara do grupo Contenção 33 e ao mesmo tempo vem disputando e ganhando algumas batalhas de freestyle.

A audição mais atenta e com um pouco de sensibilidade nos faz entender essa música e o chão racha de novo, fazendo-a emergir gloriosamente com sua simplicidade e a singularidade de seu flow. Trazendo pro “jogo” uma visão muito forte, que nos dá durante a audição a impressão de estar conversando com alguém dentro da boca, numa noite dessas em que fomos buscar alguma droga. Uma sabedoria/reflexão que encontramos muitas vezes nas figuras que não conseguimos dar o devido reconhecimento. Por conta de algum vício, de um trabalho “inferior”, ou mesmo dos caras que tem uma história de contravenção. Nosso preconceito de cada dia.

Dentro de uma sociedade desigual e racista como a nossa é difícil encontrar um entendimento político e social acerca dos problemas da violência urbana que consiga incorporar a visão dos que estão do lado moralmente condenável. A forma como o poeta organiza as palavras em sua música nos dá duas sensações durante a audição. Num primeiro momento possuímos a certeza de estar diante de um relato feito por alguém que seguiu caminhos tortuosos em sua vida e transformou – sabe-se lá quando ou porque – essas experiências numa música. E num segundo momento, para os que buscam escutar com mais atenção, a certeza de que são relatos e visões críticas sobre quem de fato participou ou sabe como funciona o crime e que tem de fato fortes ideias pra dar, sobre o todo dos mecanismos funcionando para encher os necrotérios.

Sua verdade e sua arte deixam isso muito claro pela forma e pelo conteúdo da música. O ritmo e as palavras casam com perfeição em sua intenção estética. É tempo de mudanças no rap, onde ritmos muitas vezes parecem falar mais alto que as ideias que são dadas. E sim, muitas vezes (a depender da proposta) o ritmo é mais importante, o que não diminui a música. Porém, nesta música do Dark o ritmo é extremamente adequado, haja visto que é necessário se ligar mais em seu flow e nas ideias que este carrega do que numa ritmicidade que ande crescendo com a letra. Por vezes possuímos a ideia errada de que determinada música poderia ficar melhor com uma produção de alto nível. Não é o caso aqui, em absoluto, a produção modesta e de certa forma tosca melhora a música, ou antes, faz com que ela tenha o efeito que é necessário.

Alguns não sabem como são as Madrugas Frias de Salvador e sua música interfere diretamente nos termômetros que atuam em Sal City. Na terra do calor, o poeta consegue subverter totalmente nossa sensação térmica da cidade, ao narrar à vida daqueles nossos irmãos que empenham o futuro de uma vida para enfrentar as putas. Ao mesmo tempo em que tece fortes reflexões sobre os manos que entram nessa treta para deixar falha e “passam a decorar o chão”. Ou que se envolvem nas facções cheios de emoção, mas não reconhecem o quanto a vida vai ficando mais miserável na mesma medida em que se embrutecem, tornando-se mais frios, quanto mais se envolvem. Mas não para por aí e vai fundo no sistema carcerário demonstrando como muitos se tornam mais frios enquanto as velas vão apagando em uma cela de presídio. Em uma imagem muito forte que dialoga com o tempo das prisões e o sentimento daqueles irmãos encarcerados que vê o tempo passar enquanto os corações congelam.

Dark conseguiu o feito de fazer uma música que traz a gramática inteira do crime, sem filtro e transfigurada pela arte, mostrando-se capaz de servir ao mesmo tempo como hino para quem é do movimento rap e como alerta para quem está entrando nesse jogo. Uma música que só aparentemente é uma visão unidimensional, pois na verdade abarca três visões pelo menos sobre o nosso contexto nas favelas. São vários que podem boiar no corre. Os meninos que estão no movimento, os sacis, a própria polícia – conseguindo trabalhar essas três visões do conflito ancorado sobre o tráfico de drogas sem tomar partido e ao mesmo tempo denunciando todo o sistema. Sem dúvida uma poesia muito forte que é  também uma potência imensa do rap brasil que ainda não foi escutado com a devida atenção. 

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