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Dabliueme em uma missa afro rap: Aqui JAzz (2021)

Dabliueme

Em seu 17º disco, o MC e produtor cultural Dabliueme sampleia a música brasileira em uma missa afro-festiva que chamamos: Aqui Jazz (2021)   

“Meia dúzia de fuzil, mandar o mainstream para PQP, guerrilha salve o povo preto/indio do Brasil”

Muitos artistas da nossa música produzem grandes obras e passam a vida vendendo a janta para comprar o jantar, são esquecidos em vida para após a morte ressurgirem em algumas esporádicas homenagens. Passam então, alguns deles a ser reivindicados ao cânone da música popular, como grandes construtores que o foram. No ano passado Aldir Blanc não possuía dinheiro para o tratamento de saúde que precisava, foi ajudado com doações mas infelizmente não resistiu e faleceu. Um dos maiores compositores que esse país já viu, dono de imensos sucessos, foi homenageado com o seu nome servindo ao edital que foi o responsável por ajudar muitos artistas no país inteiro. 

Artistas são feitos para habitar o espírito de uma nação, de um grupo e ou de uma cultura em específico. Porém, no regime de produção capitalista os valores da arte são transformados em cifras através de uma mais valia que expropria e mata sonhos. O regime de visibilidade por sua vez, seleciona através das leis do mercado alguns poucos para habitar um olimpo mundano ao qual transformam em figuras de sucesso midiático e lhes rendem milhões. É o processo da indústria cultural, esse vendedor de sonhos,mercador de fórmulas prontas, avalistas de imagens vendáveis. 

É curioso, mas mesmo muitas pessoas que entendem essa lógica acima mencionada, permanecem no mesmo registro que criticam, ouvindo e debatendo uma meia dúzia de artistas do mainstream. Dabliueme segue mandando esse mesmo mainstream e essa corrida de ratos da indústria cultural para a puta que pariu. Dabliueme segue há vinte anos lançando discos, não apenas habitando as cenas, o que já seria louvável .Dabliueme lança discos com muita qualidade, mas Dabliueme não chega aos ouvidos e aos espíritos de muitas pessoas. 

Com Aqui Jazz (2021) o Mc, produtor musical e cultural Dabliueme propoem uma missa faro, em homenagem a todos os grandes da nossa música, sampleando seus poderes, se apossando de sua herança que é de todos nós. Um ritual que já pode ser percebido na excelente capa do disco, obra da Letícia Goulart, onde podemos ver um corpo deitado sob flores com o microfone em pé e o gato preto por cima. A astúcia felina é talvez um dos signos que possam nos ajudar a compreender a resistência de Dabliueme, que diante das frequentes tentativas do sistema de lhe levar ao ostracismo, sempre caiu de pé. 

O trocadilho entre aqui jaz e Aqui Jazz é outra imagem potente que de saída nos leva a pensar no quanto artistas enfrentam a morte constantemente, sempre na corda bamba, abrindo mão de muita coisa para seguir seus sonhos. Sonhos aliás, que são sempre generosamente partilhados, sonhos que se materializam para viver no regime do virtual hoje a um clique de serem acessados. Aqui Jazz (2021) nesse sentido é também uma gira, uma incorporação, uma missa de corpo presente onde de Raulzito a Itamar Assumpção, de Glória Gadelha à Chico Science são deglutidos com a antropofagia necessária ao rap que se constitui através da cultura do sample. 

“Papo de Exu não faz curva, papo de malaco não faz curva, terceira visão não fica turva”

Nesse processo Aqui Jazz é também um ebó ricamente ofertadoao rap nacional, porém sem gourmetização, sem pique festa da MPB, Dabliueme convocou uma rapá pesada para compor essa oferenda. A banda afiadíssima no groove traz o monstrinho Juliano Braga na guitarra e baixo, os teclados de Killa Keys e a batera com o José Araujo seguro na cadência do groove. Os Djs Bndee e Subrinho riscando bonito nas quadradas e colaborando nessa mistura de orgânico e digital para que a oferenda tenha a cara do hip hop, que ainda traz nos feats o PMC (clássico do rap nacional), Monkey Jhayam e Rabay, que ajudam a abrilhantar o trampo. 

O disco é composto de 8 faixas e desde o play inicial o corpo é convocado sem esquecer do espírito, na melhor tradição africana que não se rende ao cristianismo detrator do dorpo em favor da alma. O disco equilibra, dosa, harmoniza o groove, a cadência das rimas, a elegância e agressividade das rimas num blend rico de misturas mas que não recai em um ecletismo pueril. Ricamente ornado musicalmente, Dabliueme aborda temáticas necessárias com uma poesia pungente e urgente, com um flow saudável o suficiente para dispensar respiradores num período histórico de “doenças respiratórias graves”.

Cadências de funk/soul na levada do groove dialogando em jogo solto com maracatu, citações de samba-rock (salve Killa Key), vibrações do mangue-beat,ironizando a bossa nova, alegorias de bandas de pífano, resgate de paisagens sonoras de África. ecos de jazz. A construção do disco é primorosa e passa como um raio pelo play, energizando nossa vida em momento histórico tão sombrio, nos oferecendo a possibilidade de conhecermos melhor nossa história musical. Transformando essa mesma história numa narrativa sem mágoa, sem ressentimentos, em algo nosso também como é de direito modernizando e atualizando as referências de Candeia e João Donato. 

Dabliueme nos traz linhas da rua, do gueto, curtidas em suas vivências, mirando no mainstream, nos falsos profetas, nas políticas públicas de apoio à cultura que fica sempre na mão de alguns. A segurança sobre aquilo que faz há mais de vinte anos, expressa: “Se o Hype for isso, me contento com a Calçada!”, ao seu modo reafirmando que seu estilo também é muito pesado, e nos resta lhe conhecer. É bonito entrar em contato com artistas como o Dabliueme pois agora nos cabe descobrir os outros 16 trabalhos que ele já lançou entre solos, discos com o grupo que fez parte e coletâneas. E já começamos o lobby aqui com a Straditerra para colocar os trabalhos nos streamings. 

Num cenário onde quem começou ontem já reclama da invisibilidade, onde os novos ricos não suportam críticas, onde ególatras passam o dia nas redes sociais entre tretas vazias  e declarações idiotas, Dabliueme oferece a sua própria feira de mangaio. Com produtos da terra, produções colaborativas, ideias certeiras musical e poeticamente, sem vender imagens e subjetividades idiotizadas e facilmente vendáveis. Rompendo a linha evolutiva da MPB, mesmo se assentando também aí, retrabalhando a tradição com vigor e muita originalidade.

A excelente mix e master tem também a mão do Dabliueme que dividiu a mix com  Gabriel Soter, mostrando que a artesania do underground está em dias com o que insistem em eleger como os melhores do ano. Só que superior em sentido e na forma, mesmo que ninguém veja, mesmo que ninguém escute, mesmo que não venha milhões, a resistência resiste, em forma de guerrilha cultural, estamos vivos mesmo que mortos, Aqui Jazz(2021)

Se você até aqui, deixamos abaixo o primeiro audiovisual lançado pelo Dabliueme da faixa “Vamos Brindar o Cansaço” num feat fuderoso com o MC não menos importante Monkey Jhayam!

-Dabliueme em uma missa afro rap: Aqui JAzz (2021)

Por Danilo Cruz

 

 

 

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