A trilha sonora de Cuphead é um convite à imersão. Uma combinação harmônica capaz de injetar glicose na combustão entre som e imagem.
A imagem e som, quando se cruzam na intersecção, possibilitam uma amplitude sensorial, em função de diferentes modalidades de percepção passarem a borrar suas respectivas fronteiras.
Essa combinação viabiliza trabalhos com propostas harmonizadas e como objeto de estudo, esse artigo visa elucidar um pouco mais acerca desse encontro, tendo o jogo intitulado “Cuphead” – mais especificamente a primeira edição – lançada em 2017, para abordar e racionalizar as nuances.
Vale ressaltar que o jogo ganhou uma sequência (“Cuphead: The Delicious Last Course”), porém o último lançamento – também desenvolvido pelo estúdio MDHR e lançado em 2020 – é uma expansão, com a mesma mecânica, estética, história e tecnologia de seu antecessor. E em função do debutante possuir um plano de fundo mais profundo, tanto para análise da trilha, quanto da imagem e suas interações com o jogabilidade – que a sequência não foi selecionada para essa tratativa sinestésica.
Um ponto vital desse trabalho é a harmonização da trilha frente à dinâmica do jogo. Com trilha sonora assinada pelo percussionista e baterista canadense, Kristofer Maddigan, as quase 3h de música que permeiam a narrativa foram gravados com o apoio de uma Big Band de 13 peças, uma ensemble de Ragtime, um pianista solo, além de outro organista e até mesmo um profissional de sapateado.
Esse rico trabalho oferece um luxuoso complemento para as hipérboles retratadas nesse projeto de arrojado perfil sonoro. Com uma sonoridade que faz clara conexão com o Jazz dos anos 30 e 40 – que serviu como plano de fundo para muitos desenhos animados, como Tom & Jerry, por exemplo – as batalhas com “chefões clássicos” (o pilar principal do jogo), elemento também presente em outro títulos icônicos como “Metal Slug”, por exemplo, criam complementos e ambiências precisas para ilustrar essa temática de estilo “Run & Gun”.
Além da presença do Jazz, outro estilo que vale ser ressaltado, ainda na questão da trilha original, é o Ragtime. O termo define essa música de herança afro-americana (com foco em composição para pianos), dos músicos que atravessaram o Sul e o Meio – Oeste dos Estados Unidos e acabaram se reunindo na região do Missouri e St. Louis, por exemplo, para produzir um vasto cancioneiro. Alguns dos principais compositores foram: Scott Joplin, Charles Hunter, Thomas Turpin, Louis Chauvin e Charles L. Johnson.
Essa ramificação do groove – considerada uma síntese da música clássica europeia com os ritmos africanos – teve seu pico de popularidade entre 1895 e 1919.
Vale enaltecer que essa linguagem possibilitou uma musicalidade mais sincopada, graças às polirritmias presentes na música africana, servindo como um contraponto mais dançante para a música marcial da época.
Com cada mão tocando coisas diferentes (a esquerda focada na rítmica e acordes, e a direita com a tarefa de sincopar as notas), essa linguagem é bastante marcada no on e off beat, uma característica marcante da trilha de Cuphead (a acentuação do Ragtime).
A forma como o compositor Kristofer Maddigan mescla essa referências e as faz coexistir de maneira imersiva no jogo é exuberante. Isso ocorre em função da estética convergente com a proposta de trilha, já que a abordagem artística se assemelha aos quadrinhos do mesmo período histórico (anos 30 e 40).
A mecânica é alimentada por interações sutis, sempre pensando na intersecção do som e a imagem. O áudio dinâmico, hora intuitivo (dependente da ação do jogador), hora adaptativo (que reflete uma situação global do cenário), acrescenta um significante de emoção, valoriza contornos narrativos e contribui na fluência e unidade do conjunto como um todo.
Essa união – com sólido conceito entre todos os elementos presentes – amplifica a imersão sensorial e ajuda na compreensão narrativa, dando ritmo ao pulso dos acontecimentos de cada fase.
O aspecto nômico (fisicalidade) e a forma como os acontecimentos extrapolam a diegese é digna de nota, assim como a abordagem para conseguir articular todos os elementos presentes é fruto de grande sensibilidade.
A dinâmica é previsível, os mapas, cenários e até mesmo a jogabilidade faz referência a outras franquias de sucesso como Pokémon, Mario Bros e Sonic, por exemplo, mas o resultado é tão bem elaborado que a experiência passa longe de ser monótona.
Dessa forma, até o entretenimento é potencializado, pois o jogo surge com um trabalho de trilha versátil (timbristicamente), além de que poderia passar facilmente na TV – num formato de desenho – enquanto a fusão desses dois pilares, representa e concretiza uma concepção que valoriza a experiência da música em detrimento da expansão dos ambientes digitais.