Um artigo, breve reflexão sobre a mídia do rap nacional enquanto quinto elemento e a necessidade de uma junção com o rap underground!
Em recente texto publicado aqui mesmo no Oganpazan (leia aqui), abordando a força e os problemas que o rap underground nacional enfrenta, falava-se sobre a dificuldade de cobrir as produções do rap underground nacional em um país de dimensões continentais. Dentro do espectro desse problema, fica claro que essa dificuldade se dá muito por conta do fato de que a mídia especializada no rap nacional é “amadora”, apesar de produzir em muitos casos com uma qualidade infinitamente maior que a mídia profissional.
Há nesse sentido muitas similaridades entre os dois afazeres, pois ao final e ao cabo, trata-se de dois elementos da cultura Hip-Hop, o rap e o quinto elemento, que deveriam caminhar juntos; o trabalho de “informar e pensar a cena” por conta da mídia do rap e o desafio de manter-se “produzindo fora dos padrões da indústria” para os artistas do rap underground. Esses dois pólos do hip-hop buscam com seus trabalhos romper o desafio de encontrar leitores e ouvintes, um público. O que em tempos de internet encontra o imenso desafio dos algoritmos, as óbvias dificuldades financeiras e a necessidade de ter coragem para não se render às regras e processos instituídos pela indústria cultural.
A falta de braços para a produção nos dois casos é talvez um dos maiores problemas, de um lado artistas que não conseguem produzir material de divulgação de qualidade, de outro a ausência de “redações jornalísticas”, minimamente capazes de responder e-mails, assumir pautas e pesquisar com tempo hábil aquilo que não chega. Ora, esse ruído colocado entre um e outro, alcança frequências ensurdecedoras nas redes sociais. Ali, neste campo aberto onde todos lutam contra todos, as queixas, os apagamentos, o “abuso de autoridade” transforma-se em um espetáculo grotesco.
Artistas se queixam da falta de atenção, enquanto as mídias reclamam da ausência de apoio, e nesse interstício instala-se a produção de clickbaites, o discurso da meritocracia, a produção institucionalizada do jabá, a reprodução de releases, cada um se vira como pode. Ausência de comunicação, a completa falta de um consumo consciente, a busca por atenção a todo custo, vai abrindo caminho para os coachs, marketeiros, que vendem fórmulas de sucesso, assim como para uma produção midiática que não pode ser chamada de pensamento, logo que não é parte do 5º elemento.
Quem ganha grana com o rap não investe em iniciativas como Bocada Forte, Noticiário Periférico, InversoRap, Submundo do Som, RapTV, O Fino da Zica, Vandalize, entre outros sites e canais realmente especializados na cultura hip-hop. Essas que deveriam ser as vitrines, a mediação especializada e formadora de um público informado e consciente da cultura hip-hop. Artistas vencem editais, investem em impulsionamento, mas nunca separam valores para parcerias publieditoriais com as mídias especializadas, muitas vezes optando por se vincular a perfis com números rentáveis e zero conhecimento, tentando vencer assim o algoritmo.
Os sites permanecendo “amadores” precisam encontrar o público e optam por reproduzir muitas vezes o que vai gerar clicks, aquilo sobre o que todos estão falando e que será ajudado pelo algoritmo por conta do engajamento. A ausência de tempo para pesquisar, absorver e produzir “conteúdo original” é a grande dificuldade que os produtores sérios de mídia enfrentam. Ainda assim, temos como acima mencionamos, canais e sites com produção de excelência mas que certamente poderiam ir muito além se estrutura tivessem. Da mesma sorte, o rap nacional encontra no underground uma produção que não se rende ao som da moda, que não adere às formas de produzir que estão em alta, seguindo o caminho da inventividade e da resistência. Porém sofrendo com a ifoodização em termos de retorno financeiro, os streamings. Sem conseguir juntar um público para sua arte, sem conseguir entrar nas playlists da moda, resta-lhes a mesma resistência das mídias que permanecem.
Nos dois campos acima mencionados, encontramos uma visão que entende a cultura hip-hop como modo de fazer intelectual/estético e campo de resistência política, um deveria se retroalimentar do outro. O que por enquanto está longe de acontecer. Resta-nos o desejo de que em algum momento esses dois campos dialoguem e trabalhem mais próximos, pois assim poderemos vislumbrar a produção de um público consumidor mais informado e consciente. Quem sabe começando a enfrentar esse que é um dos problemas mais importantes do cenário: produzir um público para o underground.
Separamos aqui como ponte para essa reflexão 4 discos que consideramos produções muito necessárias do rap underground nacional, para indicarmos, confira abaixo:
Nairóbi & Thestrow – Diatribe Vol. 1 (2022)
Esse disco pra mim foi realmente um portal sob diversos sentidos. Após escutá-lo algumas dezenas de vezes, ocorreu-nos procurar saber de onde surgiu esse trio de alienígenas das rimas e batidas. E é nesse momento que você percebe que a curiosidade é uma benção e um fardo, delicioso é verdade, mas um fardo. Os dois curitibanos Nairóbi e Thestrow são nomes fundamentais do rap underground nacional, donos de uma caminhada e de uma discografia gigantesca. Os dois são uma excelente porta de entrada para a histórica e potente cena do rap underground no Paraná, com Thestrow tendo feito parte do icônico Inthefinityvoz junto com o Dow Raiz, enquanto o Nairóbi possui discos, participações e muita história por lá.
Junto a esse trio temos o iceman, Traumatopia, beatmaker produtor responsável pelos 15 insanos beats que compõem Diatribe Vol.1 servindo de tapete mágico para as linhas pesadas dos MC’s. Já a faixa que completa a conta: “SanguenoZói” é obra de ninguém menos que Nave, tá bom? Com colagens, loopings, melodias pegajosas, Traumatopia produz realmente esse topos que traumatiza aqueles acostumados com o mais do mesmo quando se trata de beats. As linhas que compõem o mapa lírico traçados pelos geógrafos da rima Nairóbi e Thestrow cartografa os problemas que atravessam o gueto, a cidade e a cena hip-hop; com muita vivência e em pegada vanguardista esse é um disco necessário.
João Redmann – Auto Retrato Quebrado (2022)
Em seu álbum de estreia João Redmann busca epifanias e não catarse. Com apenas 20 anos, e tendo começado a lançar seus singles em 2021, o artista estreia com um trabalho sólido, fora da curva e instigando-nos a ficarmos atentos aos seus próximos passos. Esse cartão de visitas ora apresentado, traz no bojo uma estrutura abstrata que busca através das faixas tecer um “Auto Retrato Quebrado” ao ritmo de experimentalismos, trip-hop abordando problemas que fraturam a relação eu e o mundo.
Um dos pontos de destaque: “Duvidando do processo pra não ser produto enlatado”. Sob essa premissa podemos destacar várias outras questões que atravessam esse disco, de uma visão anticapitalista, as escolhas músicais, uma lírica por vezes abstrata e até aos nomes que compõem os feats do trampo e que constituem de certo modo uma rede de apoio do underground nacional. Redmann é de Joinville – SC e traz para o seu trampo nabru, Matheus Coringa, Ieti, SBG e Heloo e Ogoin. As produções ficam por conta de Chiarelli! e do Redmann, contando com instrumentais de Chiarelli e inc. e a identidade visual do trabalho tem a capa e a contra capa assinada por Lessa Gustavo.
Estamos diante de uma estréia que merece muita atenção, pois João Redmann apresenta um trabalho sólido em suas propostas estéticas e políticas, bem amarrado conceitualmente numa perspectiva de nos levar à auto-reflexão, a uma introspecção que talvez nos remeta a uma epifania. Se for possível sentir-se um com o mundo, esse auto retrato quebrado é um bom caminho.
Davzera – Cozinha Marginal (2022)
Há coisa de 7 anos mais ou menos, desde o tempo em que suas produções eram assinadas como Beirando Teto, Davzera vem cozinhando dezenas de singles e feats no melhor estilo “nouvelle cousine under nacional”. Pratos apresentados com muito rigor estético, propondo texturas outras seja nos beat como na lírica. Esse apreço e esse cuidado fez do artista ao longo dessa caminhada um cozinheiro único dentro do rap underground nacional, tendo admiradores do seu trabalho, de norte a sul do país.
Produtor e MC’s invulgar, Davzera passou um bom tempo de sua carreira trabalhando com singles e somente a partir de 2019 começamos a receber discos da sua cozinha. Esses trabalhos só vieram a reafirmar um talento já conhecido pelo submundo do rap baiano e nacional. Coração Sujo (2019) e Vale do Silício (2019) abriram esse novo período onde seu público passou a receber refeições completas: entrada, prato principal, sobremesa e cafezinho. Depois vieram Low Carb (2020) e agora fomos agraciados com Cozinha Marginal (2022).
Com beats de Apolo 808, Eric Beats, pedrvso e Bonbap além de um beat do próprio Davzera, esse novo apresenta 8 faixas com feats do grande Eloy Polêmico (Rancho Mont Gomer), Bãovivão e do Big Alien. Chapação muito bem apresentada em pratos muito bem elaborados, cozidos com mensagens sui generis, tá servido, deguste sem moderação!
Ieti – Radar de um Filme Sujo (2022)
Aqui um outro nome que estreia com um álbum fora dos padrões comuns de produção no rap nacional, buscando sua própria singularidade e começando a forjar um estilo próprio. O carioca Ieti apresenta Roteiro de um Filme Sujo (2022) e nos convida a capturas de imagens de um passado presente em sua caminhada como experiências aqui refletidas em forma de raps; processo que de acordo com o artista é doloroso, mas foi jogado ao mundo com esmero para quem possa se identificar. É certamente um trabalho melancólico o disco que o carioca ieti nos oferece, mas que nos impulsiona a refletir sobre nossas próprias vivências.
Há que se destacar a produção de Lessa Gustavo, trabalho primoroso encontrando uma lírica muito bem urdida pelo ieti que convidou o cearense Bakkari, OFAV, VND, Tarcis, yung l.o, e Pedro Saci, alcançando um excelente resultado final. Esse time produziram um disco que se remete ao passado em termos de vivência e rememorações que buscam reflexões no presente, aponta por outro lado para o futuro de uma série de produções, seja dos envolvidos aqui se põe em pé de resistência ao comum do modus operandi do rap nacional.
Após dois EP’s lançados, ieti chega com um álbum de estreia marcante para quem quer ouvir outras formas de produzir rap. Diretamente de um dos berços do rap underground nacional, o MC se filia à tradição inventiva local com muita qualidade e maturidade estética.
-Cultura Hip-Hop, o Quinto Elemento e o Rap Underground: Uma reflexão e 4 discos!
Por Danilo Cruz