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Criolo e um tríptico no trap: mercado, cultura hip-hop, raça e política!

Criolo lançou – em homenagem a sua irmã – “Cleane”, música apresentada com um audiovisual grandioso e produção do Tropkillaz, um trap doido! 

A cultura hip-hop se mostra e se esconde de muitas formas, em sua obra Criolo é um caso ímpar desta cultura. Quando ia desistir estourou, quando o sucesso se consolidou caminhou para gravar com grandes nomes da música brasileira em outros territórios musicais. Disco de samba elogiado por crítica e público, turnê e disco com Ivete Sangalo cantando Tim Maia, um EP com Milton Nascimento e em suas últimas três produções, duas junto ao Tropkillaz atacou de Trap/funk. São seis discos nos últimos 10 anos, desde o grande sucesso de Nó na Orelha, quando deixou de ser Doido. 

Lembro que ali mesmo em 2011, enquanto saia da escola em que começava a carreira de educador, ouvindo o então lançado Nó na Orelha e o para mim recém descoberto Ainda Há Tempo (2006), caminhando pela avenida Bonocô em direção ao Engenho Velho de Brotas, eu ficava me perguntando como as pessoas viam as mudanças de um trabalho para outro. A resposta mais óbvia é evidente diante do sucesso estrondoso que se seguiu, porém nos últimos anos ouvindo em retrospecto e percebendo a forma como o rap alcançou a classe média, passei a me questionar. O questionamento, tinha por base a utilização de certos modos de fazer música rap e a utilização de referências “caras” a classe média universitária que se mija de emoção ao ouvir Monet, Fellini, mitologia grega e todo esse aparato simbólico e cultural que muitas vezes ela domina mal.

Sempre achei estranho que essa classe média e o sucesso de muitos artistas dependesse desses tokens, e que muitos outros, quando utilizam uma linguagem mais crua, mais rua, logo mais ancorada no hip hop, não os abala, independente da qualidade e ou do estilo. Nunca foi o caso do Criolo, mas isso cresceu e se tornou forte dentro do mercado cultural nacional. O trap aí incluído como uma estética mais despojada e festiva, zoeira, para muitos dos guardinhas mera gozolândia, e certas vezes realmente reificadora de uma violência plastificada e não vivida pelos seus atores mas que serve muito bem como apelo mercadológico, rappers com armas de airsoft. 

Há por sua vez uma discussão muito importante, sobre como o mercado dominado pela branquitude utilizou e utiliza o rap como elemento de desmobilização dos negros. Diante de uma possível tomada de consciência por parte da juventude negra com a cultura hip-hop, a inserção e a valorização de uma estética que constrói apenas versos sobre violência, bala, droga, as “putas” sentando, é certamente uma estratégia de controle eficaz. Não é difícil nesse sentido, entender como a glamourização desses elementos e sua repetição em looping infinito, constrói um ecossistema destrutivo e reafirmador de violências e preconceitos, os quais o próprio rap tenta timidamente se desvincular.  Os algoritmos obviamente trabalhando firme para lhes entregar sempre as melhores músicas para jogar freefire e counter strike, enquanto rolam seus feeds, postam selfies, e as balas reais seguem vitimando cada vez mais. 

Neste sentido, três lançamentos de Criolo vão de encontro a todos esses problemas acima levantados, Sistema Obtuso (2020), Fellini (2021) e a recém lançada Cleane (2021). E é aqui que há um desvelar da potência do hip-hop quando um artista como Criolo se põem a pensar e produzir arte. As três músicas lançadas com audiovisuais, são verdadeiras análises poéticas cirúrgicas do teatro do absurdo em que nós estamos vivendo nos últimos anos. Retratos em movimento que nos apresentam signos ricos em interpretações para o entendimento crítico do contexto em que estamos inseridos enquanto cidadãos e admiradores produtores da cultura hip-hop.

Das ilusões neoliberais de coachs que influenciaram subjetividades a entender a vitória da favela como algum nível de conquista material, passando pelas queimadas criminosas de nossas florestas, o recrudescimento do racismo e do genocidio do povo negro até o empilhamento de mais de meio milhão de corpos, algo que tocou seu próprio sangue. Criolo enceta um tríptico que nos leva a pensar sobre o abismo em que estamos caindo, tal qual Alice no país das maravilhas, enquanto muitos dormem durante a queda. Apresentando múltiplas dimensões dos problemas que nos soterram mas ancorando-se dentro de um ponto de vista que parte da favela e dos pretos.   

E junto a todas essas pautas, através de procedimentos diversos há uma constante nessas faixas, que é quase um apelo visando comunicar com as novas gerações, especificamente a do Trap. Um artista como Criolo, isso já deveria estar claro, não escolheria essa estética atoa. Não são poucas as linhas em que Criolo chama atenção para as armadilhas do mercado, suas ilusões e cantos de sereia. Em um mercado – do trap – onde as “novidades” são geralmente mais do mesmo, e a saturação é uma constante, principalmente quando vai se subindo de patamar até o mainstream, as três faixas referidas mostram um Criolo doido com a faca nos dentes!  

No ano passado em meio ao furacão devastador da pandemia durante o governo Bolsonaro – o que se configura numa desgraça sem precedente nenhum em nossa triste e cruel história – e sua completa falta de aptidão humana, Sistema Obtuso foi lançado com um audiovisual. Há nessa dupla – música e vídeo – uma disrupção fundamental e que foi muito pouco comentada que se refere a uma relação inexistente entre a narrativa do audiovisual e o conteúdo lírico da faixa. Com a direção Denis Cisma, o cenário entre o presente de grileiros e grandes latifundiários que passaram a boiada com o apoio do criminoso Ricardo Salles e o “futuro distópico” também “vivido” neste último ano de genocídio, servem como uma assustadora pintura em movimento do que estamos vivendo. 

Musicalmente, Criolo utiliza todos os maneirismos clichês presente no trap e o esvaziamento cultural muitas vezes promovido por seus atores mais proeminentes, para chamar atenção para e levantar isso como um problema. Com a produção pesada do Tropkillaz, o que podemos perceber e imediatamente deduzir é como uma música destas tem um efeito pedagógico muito melhor e mais potente do que vídeos de ameaça feitos na internet diante de qualquer bobagem falada por algum “trapstar” do momento. Isso nos parece é o princípio básico do hip-hop, educar, não decalcar as leis do crime para dentro da cultura.   

Fellini 

“Tristes trópicos/ Claude Lévi-Strauss/ O que vem de fora nos aculturando/ Dizima a quebrada, maltrata meu mano/ Não tem 17, na cinta, um cano/ Porta Juliete, Fellini chapando”

O procedimento de pensar o Trap enquanto forma cultural, sabemos que essa música é um subgênero do rap, porém com suas próprias especificidades, nos apresenta cenários e contextos que nos EUA, são no mínimo insalubres. Há uma esquizofrenia entre os que se põe a pensar sobre o rap no brasil, assim como entre os que o produz, que diz respeito a uma importação sem nenhuma base reflexiva dos pressupostos do local de surgimento dessa cultura. É de certo modo, um comportamento que se assemelha muito a fé irrefletida, se surgiu em “meca” podemos novamente decalcar aqui e estaremos sendo fiéis aos princípios sagrados de origem.

Criolo em Fellini meio que como o diretor italiano mergulha nesse campo onírico que muitas vezes se transforma em um pesadelo. É, nos parece ao que se refere o MC quando nos mesmos versos, cita Claude Lévi-Strauss e o seu clássico Tristes Trópicos, aculturação através do Trap que ao se atualizar em terras brasileiras sem reflexão modifica os indivíduos, os fazendo se adequar a uma forma que não lhe pertence por completo. Esse procedimento sempre gera no fim das contas caricaturas, como a classe média acima citada que posa de conhecedora da cultura universal, mas que consome mesmo é livro de auto ajuda. Esse chamado continua nas referências ao cinema novo em contraposição ao François Truffaut, um dos totens da Nouvelle Vague francesa. 

Porém, principalmente ao apontar que ao contrário do que pregava a antropofagia, ao ser apenas assimilado por um subgênero estrangeiro, os indivíduos não se fortificam com as qualidades da origem, antes parecem adotar apenas suas fraquezas. Daí o jogo entre antropofagia e hemorragia, que é essa sangria de corpos pretos aos milhares em nossas favelas, onde os nossos heróis estão matando e sendo mortos, nas quebradas do país. 

Desta vez, o audiovisual veio chapado apresentando dimensões mais bonitas e o MC no papel desse educador, deste mediador, entre uma realidade do mundo onde a luta por melhores condições de vida necessitam da crítica desta mesma realidade e de seus atores impeditivos. Novamente, a direção ficou a cargo de Denis Cisma, com a luxuosa ajuda de Rodrigo Elias (direção de 3D) e Ricardo Camargo (direção de fotografia), em uma animação ancorada numa estética negra. 

Cleane 

Um traço curioso com a cultura hip-hop e sua história diz respeito aqui no Brasil a um “enrijecimento” artístico por parte de grandes nomes da cultura e ao mesmo tempo, por uma desvalorização por parte das novas gerações que desconhecem a história e muitas vezes adentram o mercado musical em um estilo sem conhecer a cultura. No jazz americano, mas também na música instrumental brasileira – se se quiser um exemplo nacional – o desenvolvimento não ocorre por atropelamento e apagamento, não existe a noção de ultrapassado, ou será que Charlie Parker seria capaz de chamar Louis Armstrong de ultrapassado, ou Paulo Moura chamaria Pixinguinha de velho, de old school? 

Esta ponte traçada por Criolo nessas três produções diz respeito a isso também. Formas totalmente absorvidas pelo mercado cultural tendem a trabalhar com noções de ruptura, é só pensar no rock e a noção de juventude rebelde que de certo modo desaguou em uma avalanche de velhos escrotos e reacionários. Essas rupturas beneficiam a não continuidade de mestres, o apagamento das histórias e uma seletividade mercadológica que geralmente encontra-se de mãos dadas com a meritocracia. A cultura hip-hop no Brasil padece atualmente deste mau, mas é sempre bom lembrar que calça de homem não veste menino. 

É muito bonito que neste último lançamento Criolo tenha presentificado sua irmã, uma das centenas de milhares de vidas vitimadas por um governo neo-liberal e fascista, que hoje começamos a saber como lucrou bastante com o genocídio em curso. Cleane, traz novamente a produção de Tropkillaz, e se configura em mais um ataque lírico fundamental do Criolo neste momento em que estamos vivendo. Mais uma vez podemos perceber como a faixa vai de encontro ao pensamento ou melhor, a ausência dele, por parte de adolescentes adultos, que hoje dominam uma fatia grande do mainstream e do trap. Um bando de isentos, que diante de um genocidío se compraz com brincadeirinhas na internet, dancinhas no tik-tok, tretinhas virtuais, orações ao deus capital e musiquinhas para zoar, se divertir e chapar. Como se nossa realidade atual não fosse já um pedaço alucinatório da realidade.

É inevitável não ver nos versos iniciais de Cleane um correlato bastante atual do clássico My Generation do The Who, quando Roger Daltrey mimetiza a urgência adolescente em alguns versos da música onde gagueja. O mesmo procedimento é utilizado por Criolo: 

“Fa-fa-faz arminhas pre-pretos morrendo

 Mo-mo-monetiza com pretos morrendo 

Dinheiro pra nós pra sair do veneno

“Ninguém tá ligando pra pretos morrendo”  

E aqui, de certo modo é possível denotar uma crítica ao rap como um atual cabine de empregos e realizações de sonhos materiais, onde a representatividade negra é utilizada como justificativa automática para qualquer coisa. Um escudo anti-crítica e um filão empreendedor capaz de abarcar posturas e ideias estapafúrdias, discussões sem sentido ou banais demais para se dar atenção, principalmente em um momento como esse. Obviamente, que não são os pretos e as pretas que monetizam com essa representatividade senão as próprias redes sociais e de streamings, enfim, a branquitude que detém o poder e nos coloca todos a trabalhar para ela.    

O clipe apresenta uma das minhas heroínas deste Brasil “grande sem porteira”, que a mãe do Criolo, a dona Maria Vilani, por afinidades eletivas, pois é nordestina e filósofa e uma das história que o hip-hop me deu que eu mais aprecio. Dar aulas no noturno é uma guerrilha e quando eu descobri que o Criolo e dona Vilani estudavam juntos, nunca mais esqueci e sempre comento em sala de aula. Com a direção de Helder Fruteira, Criolo aparece junto ao seu pai (seu Cleon Gomes, com o black mais chave) e mãe, em uma homenagem combativa a sua irmã, Cleane. 

O roteiro apresenta uma sequência que é bastante sugestiva, em um primeiro take o artista sentado com as mãos na cabeça – para tentar manter o juízo – diante de uma série de livros abertos em sua frente ao chão, para na sequência aparecer com o feno que alimenta a monstruosidade do presidente e de sua base, caindo em sua cabeça. O trabalho dos dançarinos Vinicius (Pitbull), Moara Sacchi, Nicolas Cabaneco se destaca como uma inserção do break no clipe, lembram? é um elemento da cultura e cabe no trap também. 

Família, conhecimento, revide, contra-efetuação, educação para os nossos, em tempos de “esquece” repetido como uma palavra de ordem entre diversos nomes da cultura pop preta e periférica, Criolo nos relembra sua irmã Cleane e os outros quase 600 mil mortos em nosso país. Nos relembra que o rap, o trap e quaisquer outros sub gêneros musicais do rap podem e deveriam fazer parte da cultura hip-hop. Os problemas permanecem os mesmos, o tempo avança e as tecnologias precisam de reflexão para que nos favorecem, Criolo nos entrega essa aula, dividida aqui em três momentos, resta-nos aprender.    

-Criolo no trap com Tropkillaz é Doido! 

Por Danilo Cruz 

 

 

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