Junto ao seu parceiro fiel e produtor Tiago Simões, o MC baiano Galf AC soltou o seu primeiro disco em 2024.
“Vencendo há 30 anos correndo na São Silvestre, velocidade é força quando sabe o que te rege”
Em seu trabalho mais recente, Galf AC vem renovado com um disco onde durante as 9 faixas, o seu parceiro de longa data Tiago Simões assina 6 produções, que são complementadas por beats do Jumar Paralelo e do Ivan Timbó. Estamos no terreno do rap com compromisso, mas a viagem não deixa de ser prazerosa e intensa. Nos últimos três anos, Galf AC que possui uma longa trajetória na contracultura baiana, do grindcore ao rap, vem se destacando pelo “volume” e qualidade dos lançamentos.
No campo da arte de Galf AC, Cremenow Deluxe Collection chega com uma proposta lírica extremamente pertinente, onde o MC reflete em suas linhas sobre violências e equilíbrio mental de modo dialético. Abrindo perspectivas políticas onde as desigualdades raciais e sociais estão presentes como subtexto dos versos que ricamente ilustrados com jogos de palavras e imagens poéticas desenham uma subjetividade crítica e criadora de outras possibilidades de vida. Em termos de flow, em muitas das faixas presentes no disco, Galf busca uma pegada mais melódica em muitas das faixas.
Atualmente, o MC baiano Galf AC constrói uma obra que rompe com o circuito da “novidade” presente na ideia de um mero produto, se diferenciando das estratégias de marketing preparadas para fisgar uma audiência já programada para receber mais do mesmo. O artista baiano tem apostado na “repetição”, lançando um vasto e importante material ao longo dos últimos três anos (“Velocidade é Força”). Não é errado pensar que sua obra tem sido sempre – nos últimos anos – um continuum veloz e volumoso, a questão é que esta não tem em momento algum de sua trajetória caído na mesmice e nem se arvora ao hype.
A repetição que pode ser atribuída aos lançamentos de Galf AC, diz respeito à velocidade com que o artista encabeça, se alia e solta projetos, porém nunca se repetindo. Dentro da perspectiva dos modos de produção musical hegemônicos atuais e sua ligação umbilical com o marketing digital, o MC baiano repete a força em velocidade estonteante, ao invés de entrar no game de “criação e conceito” ou de “treta”, presença constante em redes sociais, etc… Enquanto, muitos artistas se rendem a produção de “conteúdo”, Galf AC vem atropelando na produção de alianças e de arte.
Dentro desta lógica, o seu volume de produções solo, assim como de participações e colaborações tem se repetido e se ancorado em um certo modo semelhante de produção, o “do it yourself” da cultura hip-hop underground. E nesse sentido, Galf AC vem sempre se repetindo no modo diferenciado de produzir, de entrar em contato com produtores diversos. Através de alianças que resistem aos modos hegemônicos onde as “águias andam com águia”, no dizer e no ser meritocrático e neoliberal presente em muitos atores do cenário rap no Brasil.
Se afastando cada vez mais de quaisquer interesses comerciais que comuniquem com o mainstream e com a indústria cultural, Galf AC segue trabalhando para expandir sua arte, refinando-se, experimentando e lançando trabalhos que a cada vez surpreendem os ouvidos atentos. Em nosso país, o “mainstream” virou um local de repetição vazia, o império do mesmo, a noção de identidade se transformou artisticamente em clichês consumidos avidamente por um público que não espera e é incapaz de superar desafios a uma escuta que fuja dos modos pop consagrados de produção.
Em seu trabalho, Galf AC é um MC que tem um espaço buscado e finalmente conquistado, onde sua arte floresce tal qual os girassóis que ele utiliza como imagem poética na faixa que abre o disco, buscando sempre a luz da invenção que segue sempre em direção a ideias solares. Em sua arte, há um chamamento que o tem levado a trabalhar com produtores de muitas partes do Brasil e do mundo. Não é algo simples. Galf AC teve trabalhos seus produzidos por produtores e beatmakers da Inglaterra (Giallo Point), Equador (Mauricio Martillo), assim como produtores do nordeste, sul, sudoeste e centro oeste do Brasil. E neste movimento inédito no rap nacional, o MC baiano tem conseguido entregar a cada vez trabalhos novos, pequenas peças que estão aos poucos pavimentando um reconhecimento no subsolo do rap nacional.
“Primavera faz sol, 16:20, fogo na city, os girassóis que não desiste. faz sem limite, babilônia anda em crise, satélite e antenas que emitem, sinais de interferências nesse ciclo de mesmice”
Nas três faixas que abrem o disco, todas produções do Tiago Simões (Cremenow Studio), uma questão cara a Galf AC transparece de modo cifrado para quem não está familiarizado com sua caminhada e com a sua obra. Há em todo o seu trabalho um reflexo de si mesmo, de suas questões enquanto homem preto e MC que trabalha dentro da perspectiva da cultura Hip-Hop. Vivemos quase a metade da segunda década do século XXI, onde o mundo envolto por um neoliberalismo fascista, padece em guerras de extermínio, em pleno antropoceno – uma nova era geológica – onde as mudanças climáticas fruto do modo de produção capitalista, ameaça a vida em nosso planeta.
Diante desse cenário, onde a apologia ao consumo foi abraçado por muitos dentro da música rap, e a política se tornou não a busca pelo bem comum, mas antes o reforço de uma individualidade tacanha dentro da sociedade do espetáculo, a música de Galf AC é uma linha de fuga criadora. Abrindo com “Retorno ao Girassol”, uma produção com pitadas de reggae music, Galf traça uma lírica e um flow apaziguador diante das dores que cercam a vivência nos grandes centros urbanos. A busca por uma fuga do caos em que vivemos, porém uma fuga ativa, para espaços mais harmônicos e para um entendimento de nós mesmos como mais do que meras mercadorias e consumidores destas.
Na sequência, quase como uma continuação, “La Luna” é o retrato da violência urbana e da importância de nós buscarmos uma cura para todo o assédio e opressão que nos é imputado pelo sistema em que vivemos. Aqui, um boombapão mais cru – Tiago Simões – onde o MC faz uma forte elegia à ética como um modo de ser diante dos outros que não propague afetos ruins. Já em “Ilha Bela”, de onde tiramos a citação acima, possuímos uma espécie de fechamento dessa trinca inicial. Aqui, Galf AC vai em direção a comunicação no século XXI, mostrando que o ruído é aquilo que impera. E dentro dessa problemática, ainda que a saída principal deva ser uma proposta coletiva, o indivíduo precisa aprender a jogar esse jogo de xadrez contra aquilo que o capital e o racismo e a impossibilidade de comunicação lhe impõem.
Essa toada vai seguir ao longo do disco, sempre uma descrição acurada das mazelas sociais que nos atinge como sociedade e como humanidade, através de uma lírica potente que se equilibra entre problemas “humanos” e suas especificidades raciais de onde o MC fala. Ao mesmo tempo, equilibra as descrições dos problemas com a equiparação de suas soluções individuais, que servem menos como prescrições a serem seguidas do que como formas sobre as quais pensar.
Poderíamos seguir tentando ilustrar as faixas seguintes presentes no disco, porém, acreditamos ser mais válido chamar atenção para o escopo geral que pensamos está nessas primeiras três músicas. Como dissemos, a obra de Galf AC vem repetindo temas e se diferenciado nas formas, produzindo diferenças muito únicas e próprias de suas singularidades como homem e artista, num raro registro onde a vivência e a arte realmente se comunicam de modo dialético gerando um resultado “diferencial” de tudo que tem sido produzido no rap nacional.
O lance no final das contas é mais simples: Escute o trabalho de Galf AC e tire suas conclusões!
-Cremenow Deluxe Collection, Galf AC fugindo do Hype!
Por Danilo Cruz