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Country Music Negra? Conheça artistas negros importantes na construção do gênero musical

Charley Pride

A Country music possui uma história fascinante, mas poucas pessoas sabem da participação negra e de sua forte contribuição!

A coisa sobre DeFord Bailey, Ray Charles e Charley Pride, as duas ou três pessoas negras que sabemos estar na country music, que foram aceitas é que os músicos os aceitaram quando a cultura não os aceitou. Há uma verdade na música, e é muito ruim que nós como cultura não conseguimos abordar essa verdade” Wynton Marsalis 

Como todo e qualquer gênero musical, o universo da country music é um riquíssimo exemplo de grandes artistas, sonoridades diversas e de amplo desenvolvimento ao longo de todo o século XX e ainda hoje. Mas não raro, quando somos instados a falar sobre a country music, possuímos uma imagem estereotipada do que seja esse gênero cheio de subgêneros e de uma riqueza sonora e lírica muito grande. Parte desse estereótipo está ligado à imagem dos “caipiras” – algo semelhante ao tabaréus brasileiro – pessoa do campo chucra e incapaz. O que pouca gente sabe é que essa forma musical tem em sua gênese e em seu desenvolvimento muito da cultura negra americana também.

Trio de músicos afro-americanos registrados nas Montanhas Great Smoky, na região dos Apalaches

O grande documentarista americano Ken Burns lançou Country Music (2019), mas um petardo de mais ou menos 16 horas da história desse gênero musical de seus inícios até o ano de 1996. Um dos maiores documentaristas – senão o maior vivo – Burns já tinha feito um projeto nos mesmos moldes com a série documental Jazz (2001), e essas produções são parte de uma extensíssima filmografia documental que vai de filmes sobre grandes escritores, a esportes como o Baseball, e grandes nomes do Box, passando por um belo documentário sobre a ponte do Brooklyn e grandes guerras. A obra de Ken Burns é de uma extensão muito grande e resumi-la é um trabalho ingrato. 

A primeira cena do documentário Country Music nos apresenta o quadro do pintor Thomas Hart Benton, chamado: “Às fontes da música country”. Aqui temos uma interpretação pictórica do que será tratado ao longo do documentário, em primeiro e segundo plano temos pessoas brancas dançando e tocando instrumentos típicos do estilo, porém bem ao fundo podemos ver um homem negro tocando banjo e uma roda de homens e mulheres negras escravizados dançando. O espaço geográfico, os meios de transporte, as raças, o sistema social e religioso e os instrumentos que compõem as raízes desse estilo estão plenamente retratados no quadro com apuro técnico e beleza.

Porém, o que nos interessa aqui é esse plano em profundidade, algo que com certeza também representa a forma como a contribuição negra a música country foi apagada, produzindo em nós a ideia de que country e negro são palavras rivais. Publicamos um longo artigo sobre a presença negra na história da formação dos EUA como hoje o conhecemos, com a “conquista do oeste”. Ora, se a ideia de que Cowboys – palavra utilizada para se referir pejorativamente aos negros que eram vaqueiros no Oeste americnano – só podem ser brancos se afirmou, consequentemente essa forma musical que apela muito para essa cultura do oeste e dos cowboys, será uma interdição para homens e mulheres negras.

O fato é que durante a conquista do oeste, como ressaltamos no artigo anterior, a população negra chegou a ser de 25% na região. Os cowboys originais tinham uma enorme porcentagem de homens negros, o que nos leva a deduzir que essa música nascida por volta dos anos 20 naquela região, possui forte contribuição da cultura negra, como a pintura do Benton nos mostra. E um primeiro elemento que precisa ficar escuro é que não foi apenas o banjo, instrumento central nessa estética musical que participou dessa criação. Durante o século XX e até os dias atuais artistas negros deram e continuam dando contribuições grandiosas para essa cultura musical. 

Uma locomotiva na boca! 

Nos primeiros anos de formação da música country, DeFord Bailey é um nome incontornável, o gaitista que contraiu poliomielite quando criança e precisou passar um ano acamado, foi uma das primeiras grandes estrelas do gênero. Estamos na emergência das primeiras gravações de disco em larga escala com música popular, assim como do crescimento da rádio. O jovem DeFord é o primeiro artista a se apresentar no programa da WSM, emissora que criou aquele que viria a ser a meca do country music, o Grand Ole Opry.

Gaitista grandioso que aprendeu a reproduzir sons da natureza e dos trens que passavam em sua janela enquanto se recuperava da pólio de modo autodidata, DeFord Bailey foi um enorme sucesso durante o que se convencionou chamar “Big Bang” do Country.

DeFord Bailey

No entanto, nem todo o pioneirismo do mundo é passível de vencer o racismo, após os grandes sucessos “Pan-American Blues” e “Fox Chase”,  brigas com a direção da rádio o levaram a se aposentar precocemente. Bailey foi demitido em 1941 da rádio que ajudou a estrear, e durante muitos anos, só tocou gaita para os seus amigos até morrer em 1982, tendo uma volta aos palcos do Grand Ole Opry já um programa ao vivo para o público, em 1974.

Porém, antes do DeFord Bailey a presença de negros americanos já está sendo enconberta e de certa forma apropriada sem os devidos créditos. Quando o “big bang country” explodiu, gravando duas sessões lendárias, com Jimmie Rodgers e a Família Carter, o start inicial para o que viria a ser a country music se fez pelo produtor Ralph Peer. Com essas sessões, os artistas participantes se tornaram pilares fundamentais da então surgida música country, na época chamada pejorativamente de HillBilly. Lesley Riddle foi parte fundamental da Família Carter, sendo o seu “gravador” 

Do final dos anos 20 até meados dos anos 30, Riddle percorreu os montes Apalaches para “capturar” canções em comunidades negras para a família Carter, além de ser parte importante na forma de tocar da Maybelle Carter, tendo-lhe ensinado o estilo de guitarra que ficou conhecido como “Carter Scratch”; Isso, por si só já nos mostra que além da música country ter nascido de um amalgama de partes da cultura negra com a branca, da forte herança de melodias e de canções do século 16, 17 e 18 inglês, e da inscorporação do Banjo como instrumento que veio da África com os homens e mulheres negros escravizados. Outros desenvolvimentos de ordem técnica e de origem negra, assim como a música das igrejas negras colaboraram também para o desenvolvimento do Country.

O músico Lesley Riddle não buscou carreira na música, aposentando seu violão nos anos de 1940 e apenas em 1965 ele pegou sua viola novamente para registrar algumas canções a pedido de Mike Seeger, um pesquisador musical americano. Existem também relatos de como Hank Williams aprendeu a tocar com um músico negro – Hank a maior estrela da história do contry – Rufus “Tee Tot” Payne , foi nas palavras do póprio Hank: “Toda Educação musical que eu precisei”. Da mesma sorte, o maior criador dos inícios do jazz – Louis Armstrong – gravou junto a Jimmie Rodgers, assim como Arnold Schultz ensinou muito ao grande mandolinista Bill Monroe um das estrelas do que veio a ficar conhecido como Bluegrass. Havia um certo apagamento das fronteiras raciais quando se tratava de música, porém quando se tratava de imagem social, mídia e showbusiness, o racismo permaneceu intacto.

Arnold Schultz

É muito importante lembrarmos que estamos em um período de formação do  mercado fonográfico onde os “race records” foram discos direcionados à população negra, enquanto o então hillbilly eram direcionados a classe trabalhadora branca. Pesquisas mostram que até o momento da grande depressão dezenas de sessões “integradas” aconteceram entre músicos negros e brancos. Porém esse fenômeno não perdurou. E de meados dos anos 30 em diante essa troca passou cada vez mais a ser efetuada de modo distante.  

Alguns anos depois, já na emergência da segunda guerra mundial, a música americana começa a construir uma profunda mudança com o surgimento das grandes orquestras de jazz, as Big Bands, e esse movimento encontraria seu equivalente na música country. Não é possível afirmar que o country tenha se apropriado do beat “swing” do jazz, mas é fato que um grupo fundamental da música country desenvolveu seu próprio modo de solar  e incluiu certo groove em seu estilo: “Bob Wills & His Texas Playboys”. Se esse movimento não nos demonstra uma clara apropriação do modo de fazer do jazz negro, por outro lado nos demonstra como certas mudanças ocorrem concomitantemente de acordo com o tempo. Influenciando músicos, descolocando modos de fazer e incorporando-os.

“São as histórias cara, preste atenção nas histórias” Charlie Parker

Há relatos de que o grande Charlie Parker nascido no estado sulista do Kansas, um dos maiores gênios que já pisaram na terra e um dos desenvolvedores do Be-Bop, ficava vidrado nas jukebox’s ouvindo música country. Outro nome fundamental que também sempre admirou a música country e em 1962 lançou o clássico Modern Sounds In Country & Western Music, produzindo a Parte II no ano seguinte em 1963. Ray Charles, que como muitas crianças negras ouvia música country no rádio e já tinha tocado em Honky Tonks na Flórida, gravou dois discos sensacionais se valendo do repertório country & western e de sua inegável genialidade para arranjos e orquestração. 

Os anos 60 então eram marcados pelo desenvolvimento do som de Nashville a “City of Music”, que privilegiava arranjos orquestrais com apelo pop e suave. A gravação de “Modern Sounds” foi uma afirmação potente contra o que então era pura resistência contra uma pegada mais rock’n roll para a música country pelos produtores de country music em Nashville. 

“Não é uma tentativa de soar como o passado, É realmente uma tentativa clara de Ray Charles não apenas dizer, ‘Eu gosto de música country e posso fazer música country. É uma tentativa de falar sobre os sons modernos da música country.” 

 Charles L. Hughes, autor de “Country Soul: Making Music and Making Race in the American South”.

Essa afirmação do estudioso está de pleno acordo com toda a mudança lírica e sonora sofrida pelo country durante os anos 60 e que é bastante ressaltada no documentário Country Music do Ken Burns, com a emergência de novos e inovadores nomes no cenário como Merle Haggard e Waylon Jennings por exemplo. Ao mesmo tempo, estamos na década de crescimento e explosão do movimento de direitos civis, e é nesse período que a história da Country music viria o surgimento do primeiro superstar negro do gênero. 

“A exceção que confirma a regra, orgulho da raça” 

Charley Pride

A country music não é um gênero de música racista, porém está certamente ancorada, e se desenvolveu reproduzindo racismo e a segração racial eram naturalizados. A cultura racista da branquitude pode ser facilmente averiguada na forma como essa música se desenvolveu, incluindo homens e mulheres negras. E esse dado da realidade não pode ser inequívoco se tomarmos a inserção de Charley Pride na história deste gênero; A história da vida e da luta desse homem que carrega o orgulho no nome é na verdade a forma que temos de entender como a exceção confirma a regra nesse caso. 

Filho do Delta do Mississipi, Charley Pride cresceu ouvindo o Grand Ole Opry, e essa é a música que o formou, cedo desenvolvendo nele o desejo de ser outra coisa que não catador de algodão como seu pai. Desde cedo, como qualquer outro garoto negro da região, Charley sentiu o racismo em suas diversas variantes,  viveu com seus onze irmãos e seus pais em uma cabana com 3 quartos, andando mais de  6 km para frequentar a escola, que possuia ônibus apenas para brancos. Com o exemplo de Jackie Robinson (primeiro negro em uma liga branca de baseball), o jovem Pride intensificou o desejo de romper barreiras, assim como seu ídolo. Muito bom também com um taco de baseball na mão, chegou a jogar na liga negra e depois jogou numa liga menor em Montana. 

O cantor e compositor country Darius Hucker, que foi um dos influenciados pelo pioneirismo e sucesso de Charley Pride

Em Montana, ele foi visto cantando num bar local uma canção do grande Hank Williams pelas estrelas do Grand Ole Opry, Red Foley e Red Sovine. e foi encorajado a seguir para Nashville a fim de tentar se transformar num artista. Já em Nashville recebeu a atenção de Cowboy Jack Clement, então produtor e compositor do selo Maverick  Com um registro gravado pelo produtor, começaram a procurar quem pudesse lançar o disco e quem pudesse ajudá-lo a entrar na cena  O nome de Faron Young é muito importante pois, ele é a figura que coloca Pride na roda e o apresenta nos bares da cidade com ele, Pride cantando uma música e Faron cantando outra, alternando a apresentação para evitar hostilidades. 

O excelente guitarrista e produtor Chet Atkins que tocou com a Família Carter foi o responsável por ajudar no lançamento utilizando a estratégia de mostrar a voz mas não a foto de Charley Pride aos chefes da RCA. Os primeiros singles de Pride foram vinculados sem menção a sua raça, o que levou a audiência a gostar do seu trabalho sem saber quem ele era. Em uma apresentação ao vivo, após Charley Pride ser apresentado sob muitos aplausos ao aparecer no palco, a plateia se calou, o cantor fez uma piada sobre usar um permanente no cabelo para apresentação, o público riu e o show foi um sucesso. 

Após a apresentação ao vivo, e o conhecimento público de que Charley Pride era Negro, uma estação de rádio retirou Charley da programação, o que levou Faron Young a chantagear a emissora e avisar que se não tocassem os discos de Pride não tocariam os dele. Em pouco tempo, a carreira de Charley Pride deslanchou e sua excelente voz e composições alcançaram a marca de 29 hits e 12 discos de ouro. O cantor foi eleito como o melhor cantor de country music por dois anos seguidos e inspirou outros nomes a adentrar a country music como o excelente Darius Rucker. Sua obra é gigantesca e vale muito a pena ser conhecida, Charley Pride nos deixou no ano passado, vítima de complicações do Covid-19.

Porém, essa inserção bem sucedida não é a regra, ainda por volta dos anos 60 e começo dos anos 70 outros cantores e cantoras negras tentaram a sorte nesse gênero, não conseguindo o mesmo sucesso e no caso de Linda Martel, inclusive sendo expulsos do cenário por conta do racismo. Apesar de ter alcançado o 22º lugar nas paradas com a canção “Color Me Father”, presente no único disco gravado pela  Linda Mattell: “Color me Country (1970)”. Apesar de ter aparecido no Grand Ole Opry poucos meses antes de lançar sua estreia em disco, a cantora foi expulsa do cenário por um imenso cancelamento de shows por parte de produtores e pelos xingamentos racistas sofridos em apresentações que restaram. 

Obviamente uma excelente cantora, uma mulher negra num dos ambientes que mais tiveram mulheres com destaque na música, desde o começo, não foi tolerada.      

“Você cantava e eles gritavam nomes e você sabe os nomes que eles chamam de você”, ela disse à Rolling Stone 

Além de Pride e Marttell, outros cantores negros surgiram na country music nos anos 70, e Stoney Edwards foi um que conseguiu seguir com a sua carreira lançando disco e por vezes entrando nas paradas de sucesso. Edwards lançou cinco discos pela Capitol, mas só embarcou na carreira musical por conta de um acidente de trabalho que quase o matou. Nascido em uma fazenda na Carolina do Norte, o jovem sempre sonhou em se apresentar no Grand Ole Opry, e após constituir família se muda para São Francisco onde trabalhava numa usina siderúrgica.

Stoney Edwards

Stoney foi gravemente envenenado por dióxido de carbono após ficar preso dentro de um tanque lacrado. Em 1970, se recuperando do acidente, o cantor foi flagrado por Ray Sweeney em uma apresentação numa feira beneficente em favor de Bob Wills. Sabendo do interesse das gravadoras em outro cantor negro de country, Stoney Edwards assinou contrato com a Capitol Records. Inspirado em Merle Haggard e Lefty Frizzell, o seu estilo era o Honky-Tonk. Por toda década de 70 o artista teve uma carreira estável com músicas suas tendo sido regravadas por nomes de peso como Brenda Lee e George Jones, nunca alcançou o mesmo sucesso de Pride, mas ocasionalmente colocou canções nas paradas de sucesso. Nos anos 90 sua carreira e sua saúde começam a declinar e em 5 de abril de 1997 Stoney Edwards morre vítima de um câncer no estômago.

OB McClinton

Filho de um reverendo e fazendeiro em Memphis, Tennessee, Onie Burnett McClinton cresceu ouvindo Hank Williams e tentou carreira como cantor de Soul Music. Apesar de nunca ter gravado soul, suas composições foram gravadas pelo James Carr e inclusive foram canções título de discos desse artista. Pioneiro em comercializar seus discos pela televisão, o “Chocolate Cowboy” como o OB McClinton se referia a si próprio, lançou diversos discos nos anos 70 e infelizmente morreu com apenas 47 anos em 1987.

O grande”Big Al Downing”.

Por fim, mas não menos importante, temos a figura do cantor, compositor e pianista Big Al Downing que apesar de pouco falado é uma figura de relevo na história da country music e do rockabilly. Ainda no ano de 1960 Al Downing colocou seu piano no single “Let’s Have a Party” da grande cantora de rockabilly Wanda Jackson, quando era parte da banda Bobby Poe and The Poe Kats, banda de apoio da rainha do rockabilly. Já com o single “I’ll Be Holding On” lançado em 1974, o artista ficou no topo das paradas da Disco por três semanas, além de ter feito bastante sucesso na Europa.  

Entre 1987 e 1989, Big Al Downing viu sua popularidade crescer e assinado com a Warner Brothers emplacou diversos singles de sucesso. Depois, já tendo mudado para a gravadora Viners Records seguiu gravando e obtendo sucessos em uma carreira que atravessou cinco décadas; Big Al Downing tem o seu nome no Rockabilly Hall Of Fame, foi nome constante em apresentações no Grand Ole Opry além de ter ganho o prêmio como artista revelação pela Academy of Country Music.    

Do seus começos até os anos 70, a country music passou por diversas fases, com o desenvolvimento de sub gêneros, estilos e formas de produção e em todos esses aspectos a presença negra é marcante. Se o número de artistas é pequeno, sua importância para esse desenvolvimento é inegável e mesmo artistas que não tiveram sucessos longevos se mostraram extremamente competentes e em alguns casos até inovadores.  Somente no final do século XX, artistas negros voltaram a surgir em profusão novamente no country music, mas isso é papo para outro momento. 

-Country Music Negra? Conheça artistas negros importantes nesse gênero musical
Por Danilo Cruz

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