Coruja BC1 chega ao seu segundo disco Psicodelic (2019) e entre erros e muitos acertos produziu um disco sensacional e que lhe firma de vez!
A apreciação de discos hoje é uma atividade em baixa, pois os signos do tempo são sempre feitos para serem consumidos no modo online, pique fastfood. São diversos elementos que concorrem para que o disco seja uma obra coesa e esteticamente um objeto completo. Desde os anos 60 do século passado, discos deixaram de ser meras coleções de singles e ganharam um status de obra de arte. Curiosamente, hoje aprecia-se singles numa rotação alucinante e presta-se pouca atenção a obras como um todo.
E aqui começa a minha jornada com Psicodelic (2019) segundo disco do Coruja BC1, rapper paulista que ao longo de sua carreira vem buscando se firmar no cenário nacional como mais do que uma promessa. A capa desse seu segundo disco é o primeiro elemento (junto ao título) a nos chamar atenção e sendo bem sincero a capa de Psicodelic é pouco convidativa.
Depois um outro desacerto evidente, busquei que o título fizesse sentido com as canções e… nada. Por pouco não desisti. Nessa rapidez dos tempos e com a quantidade de discos sendo lançados, era melhor deixar pra lá. Debates são bons pois nos instigam a pensar a opinião dos outros com independência e razoabilidade. Entre amigos num grupo de whatsapp, debatíamos sobre esse disco do Coruja BC1 e como ele não agrada a alguns exatamente por esses erros. Fui ouvir com atenção…
Atravessando um oceano de lágrimas na braçada!
O segundo disco do Coruja BC1 possui sim um eixo central que atravessa todo o disco e que se convencionou chamar de “conceito”. O primeiro bloco de músicas do disco são daqueles começos que fisgam o ouvinte na primeira audição, pela força das ideias, pela musicalidade agressiva. A transformação de uma tragédia pessoal num clamor como o que ouvimos em “Lágrimas de Odé“: “Não traga a guerra pro nosso terreiro” é algo muito forte para os nossos dias. E na sequência: “Essa é pra botar minha quebra no jogo” em “Fogo“. Nessas duas frases das músicas que abrem o registro, podemos resumir todo o disco.
Resume por um motivo bastante simples e por isso mesmo talvez passe batido por muitas pessoas nessa rapidez, fibra ótica. Coruja BC1 nos coloca um problema que assola hoje a comunidade negra com uma assertividade comovente: não devemos lutar entre nós mesmos, viramos um grupo difuso que só lacra na internet, causando problemas uns pros outros. Precisamos combater e nos elevar acima dos ruídos da internet, de um modo que consigamos resistir e vencer os milhares de ataques que sofremos como povo.
O single “Apócrifo” já tinha ganhado um clipe que traduz muito bem essa ideia de confusão transmitida pela música. É um excelente exemplo do que mencionamos acima. O descartável, o raso e mesmo aquilo que brilha com ares de grandeza intelectual no meio do nosso povo estão presentes para nos colocar uns contra os outros. A sequência com “Gu$tavo$” traz uma ideia que vem do Djonga, mas que está presente no disco do Coruja BC1 de um modo geral: trabalhar pelo nosso povo é a única coisa que importa na cultura hip hop.
Vamos reafirmar uma ideia que nos parece importante: Mc tem função social sim senhor, não adianta falar de doença mental e de racismo sem fazer absolutamente nada sobre isso. O levantamento de pautas necessita de seu complemento prático, senão é apenas um produto e recai no vazio e no oba oba. O “Interlúdio” nesse sentido é rico demais, na medida em que mostra o quanto as patologias que nos adoecem tem uma origem social, política, econômica por serem originariamente racial.
Segue-se três faixas mais relax, falando de amor. Eu acho que odeio a ideia de lovesongs, tenho pensado nisso. Veja, não odeio faixas onde se fala de amor, mas parece que existem duas formas de falar de amor, rimando com dor ou não sendo óbvio. E me pareceu que nesse bloco de faixas Coruja BC1 conseguiu dosar bem a mão ao falar de relacionamentos conseguindo um equilíbrio entre elas de modo a ser mais pop e sem deixar de nos levar a pensar.
Não há, pelo que percebemos, o recurso desonesto de repetir uma formula fácil à exaustão. “Éramos Funk” é a melhor dessas três, por fazer do relacionamento finito uma analogia àquele “pega pra capar” que acima mencionamos. O vazio de relacionamentos que degringolam de um extremo a outro, versus a necessidade de trabalhar as fases da relação com uma alteridade. Está aqui, senhoras e senhores, como transformar uma música sobre amor em algo para além do drama pequeno burguês da classe média branca.
Pesada também é “Acorde” com a participação fina do mano Zudizilla, que ainda discorre sobre relacionamentos e consegue mostrar como aquele exercício da alteridade é fundamental para mantermos relacionamentos saudáveis. Seja no funk, no soul, no samba, ou mesmo no rap de internet.
Chegamos ao terceiro bloco de faixas como a cadenciada “Digital Influencer” e mais um capítulo sobre os ruídos causados pelos sabedores de internet. Abertura pro rap com o samba é a tõnica em “Camisa 12” com participação da voz gostosa da Késia Estácio, trazendo o nosso 7×1 na imagem de como temos sempre muitos dos nossos sucumbindo às dificuldades que nos são impostas. Nesse sentido Coruja BC1 foi muito sagaz pra se levantar após sua saída da Laboratório Fantasma e voltar a independência solo. Ter montado um equipe e pensado suas ações ajudou bastante.
Ssssskkkkkrrrrrr, trapzeira nervosa e ancestral com “Ogum“. Autotune ligado e os caras desfilando com tranquilidade. Coruja BC1 e Diomedes (esse mano é de verdade), onde vemos o “caminho” muito verdadeiro pois protegido pelos nossos orixás. Sem apropriação religiosa, a ancestralidade está presente no disco de Coruja como a força indigesta que os tileles não conseguem alcançar. Boy Killa, Akil Mabill e Obigo colam na faixa seguinte: “Kimpa Vita“. Fechando o disco uma real pedrada que nos remete ao primeiro bloco de canções onde o mano não para de alertar sobre o mercado.
A necessidade de ter visão no jogo (de como o mercado mastiga pretos e depois cospe apenas o osso) é a temática de Skrr. Tem preto no rap nacional servindo de menestrel e uma das coisas mais interessantes de Psicodelic (2019) é exatamente a negritude e a clareza diante do estado de coisas que assola o rap nacional!
O segundo disco de Coruja BC1 coloca-o no lugar que muitos já esperavam. O de um artista que é extremamente consciente de seu lugar dentro do debate nacional sobre negritude e de um talento grandioso na música. E isso é o “conceito” que Psicodelic eleva. Não é um mero desfile de questões importantes. É sobretudo uma força que ao longo de 14 faixas faz um exercício quase faraônico de nos esclarecer para que nos unamos. Não é sobre saúde mental. É sobre saúde. É sobre a vitalidade da nossa música. É sobre a vitalidade do nosso povo.
Com Psicodelic (2019) Coruja BC1 consegue mostrar toda a sua versatilidade musical e ao mesmo tempo traçar uma linha que amarra todas as faixas a despeito da capa e do nome, mostrando o artista importante pro rap nacional que ele é.
– Coruja BC1 consolida sua caminhada com o disco Psicodelic
Por Danilo Cruz