Oganpazan
Discos, Resenha

Cores e Valores – Racionais Mcs

Cores_e_Valores_Racionais

Cores e Valores mostra que os Racionais Mcs continuam os mesmos. Viva! Porém a música se mantêm em constante mudança. 

“Doze anos de espera e só meia hora de música! Puta que pariu! Que merda!” Declarações dessa natureza caracterizam bem a recepção de Cores & Valores, novo álbum dos Racionais MC´s, que transformou as redes sociais em um verdadeiro muro das lamentações virtual. Em comparação às opiniões negativas, as positivas cabiam dentro de um fusquinha e ainda sobrava espaço. Um festival de “álbum fraco” pra cá, “álbum ruim” pra lá, mais adiante vinha outro dizendo “estar decepcionado”, havia indignação suficiente para seguir por todas as direções apontadas pelos pontos cardinais. Isso não me surpreendeu em nada, afinal houve a mesma comoção negativa em 2002 ao lançarem Nada Como um Dia Após o Outro e o tempo se encarregou de levar as pessoas a digerir aquela sonoridade, muito a frente do seu tempo naquele momento.

Já estava preparado para uma possível incompreensão do álbum destiná-lo a ser alvo de opiniões negativas e mais uma vez ter que deixar o tempo se encarregar por fazer justiça. Porém, a surpresa me acertou em cheio. Não podia ser diferente, pois o motivo de tanto chororô (juro que cheguei a pensar que os Racionais tinham perdido de 7 a 1 pra Alemanha) era o tempo de duração do álbum – aproximadamente 32,16 minutos. Se o objetivo dos indignados era tocar o álbum numa das edições daquela famosa rave Universo Paralelo, faz muito sentido considerar o álbum ruim considerando apenas a duração. A insatisfação quanto a curta duração do álbum, embora compreensível, não pode ser colocada como fator determinante para construir um juízo acerca da qualidade de Cores & Valores ou de qualquer outro álbum.

Os Racionais continuam os mesmos, mudou a sonoridade da sua música, mais pesada, mais tensa, mais direta, como nunca antes fora. Contudo, os caras continuam de cara fechada, críticos, comprometidos com a causa periférica, expondo a realidade da ótica de quem é alvo e sofre os efeitos da marginalização social e institucional. A transformação sonora sempre foi a tônica do grupo paulista.

Cada álbum possui independência em relação aos demais, cada qual preserva sua identidade própria justamente por estarem os Racionais em busca constante de renovação sonora. Fica claro haver a necessidade de criar e não reproduzir antigas formas e fórmulas. Criar em muitos casos exige tempo, paciência, inspiração. Por mais planejamento e insistência em produzir, nada garante um resultado satisfatório para o artista. Os doze anos sem lançamento de álbuns foi o tempo necessário para haver criação e a manutenção da característica mais importante que a duração e a quantidade de músicas em seu álbum: sua originalidade.

A sociedade mudou e com ela as relações sociais. Os anseios, os desejos, os interesses das pessoas são agora de um país que consolida um modelo político/econômico socialdemocrata. Ao lado do aumento do poder aquisitivo do cidadão comum está a criação dos programas sociais, a diminuição da pobreza e das barreiras sociais, ao menos do ponto de vista econômico. Agora a periferia vai às compras, frequenta ambientes sociais antes exclusivos das classes dominantes. O acesso ao lazer torna-se realidade para quem antes estava destinado a se contentar com o boteco, a porta de casa ou sentar-se diante da TV em seu tempo livre.

O consumo passa a ser um hábito das classes até então desfavorecidas. O ditado “toda ação gera uma reação” se aplica perfeitamente a esse novo contexto social, resultado de um processo de doze anos de governo PT. Coincidência ou não, mesmo período de hiato de lançamento de álbuns dos Racionais. A reação vem de cima pra baixo. O ressentimento das elites sociais pela ascensão socioeconômica da classe trabalhadora nos levou a viver sob a constante tensão dos preconceitos regionais, sociais e mesmo raciais. Pipocam nas redes sociais atos de violência contra nordestinos, moradores das periferias, negros, o apoio à violência contra “marginais” seja ela causada pela polícia ou pelos justiceiros.

A origem desse quadro de ódio direcionado aos moradores da periferia está nesse ressentimento da classe média. Esta vê no compartilhamento de determinados espaços da cidade com pessoas provenientes da periferia uma ameaça ao status VIP de seu estilo de vida. O regime de signos presente na fala, no vestuário e no comportamento dos jovens da periferia faz essa elite tremer, pois agora tem de estar lado a lado em aeroportos e shoppings centers com pessoas que “tem a cara de sua empregada doméstica”.

Cores e Valores vêm expressar essa situação e ser a voz que vem da periferia para relatar seu ponto de vista sobre as transformações que sofreram. Apresenta-se como elemento catalisador da atual condição da periferia e as novas situações de opressão surgidas das mudanças sofridas na última década. Suas músicas reverberam o novo cotidiano das quebradas evidenciando as tensões originadas dessa nova situação socioeconômica. Na faixa Eu Compro, Ice Blue expõe o preconceito sobre o “favelado” mesmo quando este tem condições de comprar o produto que deseja: “pois o racismo é disfarçado há muitos séculos/ Não aceita o seu status e sua cor.” A música está repleta de referencias à nova situação econômica da periferia, às situações que causa para seus habitantes e que moldam suas personalidades. 

Não esqueçamos: 2014 ficará marcado como o ano dos rolezinhos, que tiraram o sono de muita gente em São Paulo. Outra marca registrada de 2014 são as declarações de Sherazade defendendo os boys cariocas, aplaudidos de pé por terem feito “justiça” com as próprias mãos algemando um jovem negro numa barra de ferro na zona nobre do Rio. O sensacionalismo televisivo e sua participação direta na construção de estereótipos ligados à violência urbana, que legitima a ação punitiva por parte da população, saem na voz de Edi Rock em A Escolha que Eu Fiz. O mesmo Edi Rock relata em A Praça o confronto entre o público presente no show dos Racionais e a polícia militar paulistana na edição da Virada Cultural de 2007.

A rima do rapper apresenta o outro lado dos acontecimentos, distinto daquele noticiado pela mídia oficial, presente na música em fragmentos de áudio das notícias onde podemos ouvir Caco Barcelos e William Bonner narrando a versão “oficial” dos fatos. Os excessos da polícia são denunciados, bem como o papel formatador de opiniões da mídia televisiva, sempre dedicada em conservar o preconceito e a marginalização de tudo relacionado à periferia. Não dá pra acusar os Racionais nesse álbum de “traidores do movimento”.

A atualidade dos temas abordados em Cores e Valores já seria motivo suficiente para considerar o disco bom e relevar sua curta duração. As letras não põem panos quentes em seu conteúdo, não se filtra o que deve ser dito para se apresentar um produto de fácil aceitação do público; o discurso se constrói a partir do que é preciso ser dito. O álbum desde antes de ser reproduzido no player já indica o clima tenso e agressivo do som que virá. A capa não podia ser mais pesada! Em outros tempos o álbum viria com capa alternativa para ser exposto nas lojas de departamento e venda de CDs como acontece nas bancas com as revistas de mulher pelada. Aliás, estou espantado por comentários pixando a capa de Cores e Valores não terem pipocado nas redes sociais acusando ser um estímulo à violência, glamourização da vida bandida e por ai vai. Incrível a monopolização das críticas pela curta duração do álbum!

Os Racionais tomam de assalto o ouvinte, que se vê jogado num turbilhão sonoro de batidas frenéticas, melodias arrastadas construindo a atmosfera gangsta do álbum.  A curta duração das músicas reforça a sensação de euforia mesclada à tensão de término repentino de uma faixa e início de outra. Esse ritmo é contínuo, mantendo-se até o último minuto. Não significa, como podem pensar alguns, que o andamento se mantém frenético até o término do álbum. Na verdade há picos de frenesi alternados com momentos mais aflitivos.

Com isso, só posso considerar a experiência de ouvir Cores e Valores semelhante à experiência de alguém viciado em crack quando está doidão. A viagem tem altos, baixos, é curta e quando passa te deixa noiado. Nessas condições é possível ser levado à revolta e indignação quando não se consegue repetir a experiência. Porém, a diferença é que para repetir a experiência de Cores e Valores basta colocar o álbum pra tocar novamente. 

A contemporaneidade do álbum revela a ligação orgânica do grupo com as questões da periferia. Cores e Valores expõe as mudanças ocorridas nas quebradas ao longo desses doze anos e o modo como a elite vem lidando com essa situação.

Gravadora: Boogie Naipe

Data de Lançamento: 25 de novembro de 2014

Nota:  

 

Matérias Relacionadas

Agbeokuta AfroJazz Baiano, groove instrumental, história e potência na Roma Negra

Danilo
4 meses ago

Shuggie Otis e a retomada de Live In Williamsburg

Guilherme Espir
2 anos ago

Conjura lança Peculiar, seu segundo single

Carlim
4 anos ago
Sair da versão mobile