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Bruta Flor (2015) – Cíntia Savoli

Cíntia Savoli em ação!
Cíntia Savoli em ação!

Bruta Flor (2015) brota no cenário do rap nacional com muita força, apresentando os espinhos e as plantas venenosas que somente com muita luta podem ser superadas para alcançar a beleza de um campo florido.

Paz, Justiça e Liberdade

Um dos índices mais fortes nos dias de hoje em nosso país para avaliarmos a posição politica e a perspectiva ética de alguém é saber o que se pensa sobre o nosso sistema carcerário. Em tempos onde a ignorância e a vingança tentam posar de justiça e sabedoria, é raro encontrar quem realmente se coloque a favor da reabilitação do ser humano, quem reconheça que é a sociedade – sistema político, econômico e social – quem produz os seus problemas, seus desviantes e seus monstros. Sendo assim, Cíntia Savoli, já abre seu disco deixando claro de que  lado ela está. Ao colocar como introdução e nos intervalos entre as faixas, as angústias reais de um homem preso (que nesse caso representa as dores na população carcerária) sobre seu futuro, abre espaço para todos os outros tópicos que ao longo do disco serão expostos e problematizados.

Bruta Flor brota no cenário do rap nacional com muita força, apresentando os espinhos e as plantas venenosas que somente com muita luta podem ser superadas para alcançar a beleza de um campo florido. Como excelente jardineira, a Mc trabalha o terreno assumindo as lutas do povo negro e pobre das periferias, poetizando nossas tragédias e problemas cotidianos. Buscando os extratos mais profundos onde as raízes – as verdadeiras causas  – de nossas mazelas foram plantadas e aos poucos vai desfolhando e trazendo a luz os verdadeiros culpados. Burguesia podre que comanda esse arremedo de democracia em que vivemos, matando milhares de jovens e construindo a terceira maior população carcerária do mundo. E com excelência vai arrancando através do poder de seu canto, as ervas daninhas da consciência, ideia fraca é mato.

Em suas nove músicas, esse álbum (EP) de estreia consegue mapear com muita intensidade as nossas lutas e unificá-las com uma potência poucas vezes vista. A vida difícil e os problemas enfrentados nas periferias, a necessidade de posicionamento político radical diante de todas as ideologias que pretendem jogar irmão contra irmão, que no fim das contas pretende fazer das vítimas os culpados.

Artista natural do Distrito Federal, por lá ela começou sua carreira e há quatro anos se radicou em Salvador, para nossa sorte foi em solos baianos que seu primeiro disco floresceu. Cíntia já vinha se destacando nos palcos da cidade e em fortes participações, como no último disco do grupo Nova Era. Possuidora de um flow muito singular, canta suas rimas com a clareza e a força de um tiro de fuzil, deixando transparecer em meio à agressividade de sua expressão, uma essência amorosa e revolucionária. O disco é pesado no conjunto, entre as rimas, flows e os beats, como nas participações, o amor fica como força motriz que subsidia a revolta, “porque é preciso endurecer, mas perder a ternura jamais.”

É importante ressaltar que o rap feminino brasileiro vem disputando cabeça com cabeça entre os melhores lançamentos dos últimos anos. E nos parece que esse é um excelente sinal de que finalmente o hip-hop (apesar do gigante abismo que ainda existe) vai cedendo espaço às guerreiras que representam outras perspectivas de luta, outro olhar  e outros lugares de fala diante das lutas comuns.

O disco conta com participações de muitas cabeças caras da cena soteropolitana e candanga do rap: Morango NE, Galf, Diego 157 (que também assina a excelente produção), Ravi Lobo, Tiago Negão, Samuel PX e o grupo Vandalismo Poético. Talvez pudéssemos dizer que o disco se situa naquele espectro do rap nacional que podemos chamar de old school, no que tange a fazer um rap de protesto, sem espaço para solilóquios, ou para temáticas mais underground. A pegada é contestação social e política do início ao fim, obviamente com tudo atualizado e numa linguagem moderna e condizente com o seu tempo. Não existe cheiro de mofo na música de Cíntia Savoli.

E essa modernidade pode ser constatada por uma ideia que atravessa todo o disco. As faixas se sucedem com força e se intercalam com as falas, também muito fortes – como as citadas no início do texto. Numa dessas intervenções não musicais temos um trecho impactante de uma análise social e política de Ras Mc Leo falando sobre racismo e da falta de oportunidades para o povo negro e pobre. O que demonstra um excelente uso e absorção da cultura do remix e da ideia de colagem. Que nesse caso recebe dos discursos e das falas originais – ou cotidianas – o impulso que unifica as ideias presentes nas rimas e as ligam melhor (se é que isso é possível) com situações reais, com personagens vivos e atuantes. Ideias essas que dão de certa forma o tom do disco, uma força absurda retirada de situações dolorosas, ideias certeiras numa perspectiva estética que foge do comum, uma verdadeira surra de cansanção nas ideologias opressivas. Pra você aí, ficar se coçando e despertar para os problemas que são de todos, presidiários, periféricos, mulheres, crianças, negros, brancos e outros, ou seja, do conjunto da sociedade.

Sim, uma surra de cansanção e urtiga desta Bruta Flor, porque é preciso proteger nossas flores, é preciso lutar para que consigamos viver em paz e ter liberdade e as oportunidades necessárias para plantarmos e cultivarmos nossos jardins, afinal, como aludimos acima, a flor é bruta e guarda suas armas para se proteger da sujeira e da iniquidade e seguir lutando.

Nota: 

Baixe o disco aqui.

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