A música no Cinema Novo: Quando Deus e o Diabo se Manifestam nas Lentes dos Trópicos
Ainda falando sobre as relações entre música e cinema, vale destacar que a inserção do elemento musical no universo cinematográfico é um fenômeno da maior importância. A trilha sonora é formada por vários componentes; como vozes, ruídos, o silêncio e também a música (podendo ser de base erudita ou popular).
A capacidade de ampliar a experiência estética do cinema faz da música um dos recursos mais utilizados para captar a atenção do espectador. Mas, é um tipo de produção diversa daquela que é destinada aos discos e shows ao vivo. “Música de filme é coisa diferente: tem de ser parte da imagem, ter o ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem”. Escreveu Glauber Rocha sobre o processo de construção da trilha musical de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), filme fundador do Cinema Novo.
E uma coisa é certa, o filme elogiado por Fritz Lang e Buñuel marcou um momento histórico das relações entre a música popular brasileira e o cinema. Mais a frente, o texto abordará especificamente essa questão. Por enquanto, é necessário ressaltar que a trilha musical de Deus e o Diabo, composta pelo genial Sérgio Ricardo e o próprio Glauber, é tão impactante e integrada ao texto do filme que sobrevive além dele e transforma-se em uma nova plataforma capaz de traduzir o conteúdo do longa em sua essência e de forma autônoma, assumindo existência própria.
Arte na era da informação
No final dos anos 60, o diálogo entre as diversas artes e os meios de comunicação ia de vento em popa no Brasil. Música popular e erudita, poesia, artes plásticas, teatro, cinema, rádio e televisão pareciam aproximar seus idiomas, ou se esforçar para tanto. Pareciam compartilhar as mesmas expectativas em relação ao futuro que se delineava e juntos experimentavam a construção de novos códigos de linguagem adequados às recentes condições culturais e sociais que se estabeleciam no país.
Basta lembrarmos dos grandes festivais televisionados da música popular ocorridos naquele período que, embora financiados por vultosos investimentos de patrocinadores em busca de visibilidade para seus produtos e serviços – e portanto, servindo antes de tudo aos seus interesses comerciais – apresentavam ao grande público as mais sofisticadas e recentes inovações ocorridas no campo da música e da estética. (Coisa impensável nos dias atuais. O que explica a aparente ausência de novidades no mass media é o fato dos investimentos agora estarem concentrados nos produtos culturais de aceitação ampla e irrestrita, “em fórmulas de sucesso”, impossibilitando a existência de novos espaços de inovação na indústria cultural).
Outro dado importante é que a era da informação deixava de ser um esboço para se tornar uma realidade. A transmissão de dados via satélite e a invenção do computador não se limitaram apenas a conquistas quantitativas na área tecnocientífica – foram fenômenos de grande impacto que causaram efeitos diversos na vida humana – e assim também promoveram profundas inquietações nos setores da cultura e do comportamento. A ampliação do acesso a informação e a elevação da velocidade de sua transferência possibilitou àquela geração uma nova percepção da realidade, onde a integração e paralelismo entre todas as coisas de nossa existência humana ficavam mais evidentes. Passado, presente e futuro. O regional e o cosmopolita. Contemplação e ação. Arte e mercadoria. Socialismo e capitalismo. Elementos pertencentes a uma realidade complexa virtualmente acessada por todos.
Enfim, artistas de várias orientações estéticas, percebendo o poder dos veículos de comunicação na difusão de mensagens para o grande público e compreendendo que aqueles mesmos instrumentos de comunicação de massa estavam em um momento de expansão e abertos (como nunca mais estariam) à inovações e experimentalismos, aproveitaram o quanto puderam essa oportunidade histórica para implementar suas originais ideias. A Tropicália é um típico exemplo de um processo artístico vanguardista que transitou com muita desenvoltura pelos meios midiáticos, se considerarmos suas pretensões conceituais (nem sempre palatáveis ao gosto médio) e sua exploração não usual dos códigos comportamentais vigentes.
Embora a ambígua receptividade do público em relação as apresentações de Caetano Veloso, com a canção Alegria, Alegria, e Gilberto Gil, com Domingo no Parque, no III Festival de Música Popular Brasileira de 1967, transmitido pela Rede Record, a premiação de ambas as canções, sendo a de Gil consagrada com o segundo lugar, demonstra que a abordagem revolucionária, corajosamente defendida por esses artistas na ocasião, embora não degustada por todos com a mesma apreciação, sinalizava uma tendência geral de abertura nos padrões convencionais da canção feita e distribuída para as multidões.
Não a toa que, em 1968, os tropicalistas estreavam na TV com o programa Divino e Maravilhoso, na emissora Tupi. Vale lembrar também, que antes das novelas lançarem as estratosféricas celebridades televisivas, eram os grandes festivais da música popular brasileira dos anos 60 e 70 que ocupavam o papel de verdadeira ante-sala do sucesso midiático. Um laboratório de onde saíram os grandes produtos comerciais da indústria cultural brasileira da época.
Ou seja, havia muita grana disponível para a criação de novidades. O capital internacional se acumulava em solo brasileiro devido ao estimulo e salvaguarda do regime militar desenvolvimentista, que através de facilidades fiscais, oferta de energia barata e infraestrutura necessária garantia o estabelecimento das transnacionais no país. Com isso, a indústria do entretenimento, publicidade e de comunicação ganharam novo impulso.
O Brasil entrara definitivamente na era urbano-industrial e, embora a tensão e brutalidade do período, a esperança de novos tempos injetava o ânimo necessário nos mais criativos de nossa intelligentsia. Havia uma efervescência cultural de extraordinária dimensão que só agora, quase meio século depois, podemos nos dar conta e compreender melhor. Afinal, passadas todas essas décadas, as sementes plantadas naquela estação hoje apresentam-se como árvores maduras que frutificaram. É impossível não relevar isso.
E Glauber Rocha? É preciso entender que esse brilhante artista é fruto de seu tempo histórico. Segundo o notório sociólogo Norbert Elias, os gênios são uma construção histórica e social, no sentido de que um artista genial não se faz sozinho e sua arte só se concretiza no diálogo com seu tempo e/ou com as gerações vindouras. É preciso condições históricas propícias e capacidades individuais adequadas para que um artista tenha sua obra reconhecida e legitimada amplamente. Ou seja, Glauber Rocha soube muito bem adequar seu talento às oportunidades que seu tempo lhe oferecia.
Inquieto e provocador, Glauber mantinha relações culturais em vários níveis. Escreveu para periódicos, publicou livros, trabalhou para a televisão e procurou dialogar, tanto em sua arte, como em seu posicionamento político, com os vários setores de nossa sociedade. Esteve sempre atento às questões da história e de seu presente. Estava preocupado com todas as novidades de sua geração. Pensava o Brasil enquanto processo e que era necessário continuar sua construção. Glauber Rocha foi um artista que acreditava ser possível criar uma arte popular consciente e de alto nível, acessível ao grande público.
Naquele período, a música popular era a grande porta-voz das artes. Maestros, poetas, artistas plásticos e cineastas se aproximaram dos músicos populares e devido a essa aglutinação muitos deles obtiveram projeção para além dos círculos restritos em que atuavam. No âmbito fonográfico, a Tropicália sintetizou magnificamente esse espírito de convergência com o lançamento do disco Panis Et Circensis (1968).
Porém, o movimento tropicalista não se resumiu a gravações de álbuns e shows coletivos ou obras orientadas por um arcabouço conceitual único, mas representou um conjunto de manifestações e atitudes artísticas múltiplas que possuíam em comum a discussão sobre a sociedade e a cultura brasileira frente ao mundo urbano-industrial. Um tipo de projeto de (re)descoberta e (re)construção do Brasil cultural aos moldes do Modernismo radical de 22, fundado no trabalho de pesquisa profunda sobre nossa brasilidade. O Cinema Novo, segundo Caetano, também foi uma grande inspiração para o movimento devido o seu compromisso com a elaboração de uma arte crítica e autenticamente brasileira, inspirada em nosso contexto sócio-cultural.
Glauber Rocha inaugurou oficialmente o Cinema Novo em 1964, com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ele possuía consciência sobre as novas responsabilidades que o cinema assumia no Brasil a partir de então, e em relação a música cinematográfica refletiu: “Acho que o cinema brasileiro tem, nas origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música”. Quase uma década antes, o samba dos morros cariocas já ocupava seu lugar no cinema nacional através do longa Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, com a presença das composições do sambista carioca Zé Keti (destaque para A Voz do Morro). Porém, ainda imperava, no conjunto do filme, uma trilha musical pautada em arranjos tradicionais, inspirados nas orquestrações de rádio e do cinema internacional, criados por Radamés Gnattali.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é inovador em vários aspectos, mas o que interessa agora é sua contribuição histórica em termos de trilha musical. Nesse clássico do Cinema Novo, a musicalidade regional nordestina – não estereotipada – encontra-se em destaque, enquanto a obra de Heitor Villa-Lobos (escolhida justamente por sua pulsante e etérea brasilidade) complementa a intenção dramática.
Na verdade, a música dos cantadores do sertão são a grande inspiração do argumento e roteiro do filme. “Foi através dos cantadores que achei as veredas de Deus e o Diabo nas terras de Cocorobó e Canudos”, confessa Glauber. Foram as invocação de amores perdidos e as histórias de crimes terríveis cantadas pela boca de figuras como cego Zé (devidamente registradas pelo cineasta em suas andanças pelo interior do sertão nordestino) que originaram as desventuras de Manoel e Rosa.
Sérgio Ricardo, um experiente músico e um dos pioneiros da Bossa-Nova é convidado por Glauber para criar a trilha musical de Deus e o Diabo na Terra do Sol. É interessante o deslocamento do cineasta do nordeste para o sudeste em busca de um compositor para seu ambicioso filme. O que nos sugere uma questão: por que Sérgio Ricardo, um cara ligado à tradição do samba, um calouro em matéria de canção sertaneja, foi sua escolha? Rocha responde: “Sérgio Ricardo, embora seja sambista com mistura de morro e asfalto, tem paixão pelo nordeste e tem a vantagem de ser cineasta”.
Anos antes, os dois artistas haviam desenvolvido uma amizade por intermédio de Nelson Pereira dos Santos. Sérgio Ricardo não era só um competente músico mas um artista múltiplo que transitava com desenvoltura tanto nos meios artísticos intelectuais quanto na grande mídia. Sua versatilidade profissional e seu conhecimento de cultura de massa interessavam a Glauber. Todos sabem que os filmes de Glauber Rocha não tiveram grande bilheteria, mas seu diálogo com os elementos da cultura midiática é perceptível em alguns de seus trabalhos. Basicamente, pode-se notar essa relação na aproximação da narrativa de Deus e o Diabo com os filmes de bang-bang italianos, de extremo apelo popular na época, e na escolha de um compositor de música popular brasileira reconhecido para a recriação, na trilha musical, da tradição dos cantos nordestinos a partir de uma releitura cosmopolita.
Esse tipo de visão glauberiana antecipa os tropicalistas e os inspira. Caetano Veloso era a figura mais midiática do movimento e, naquele tempo, exercia sua função frente aos meios de comunicação como “articulador” da tropicália, fazendo das entrevistas uma extensão de sua performance artística. Consciente da amplitude de sua exposição e do poder das palavras no rádio, na televisão e nos periódicos, utilizava isso à seu favor. É impressionante – e basta uma rápida pesquisa em vídeos históricos de suas declarações nos anos 60 e 70 – a quantidade de referências que Caetano faz à Bossa-Nova, ao Concretismo, ao Modernismo e ao Cinema Novo, entre tantas outras conexões com a cultura popular legítima. Um procedimento de exposição indireta ao grande público de todo esse acervo tradicional ou revolucionário de nosso precioso repertório cultural. A ideia era falar e fazer uma arte sobre as nossas próprias contradições, a partir de nós mesmos.
Deus e o Diabo são dois polos de uma mesma realidade. Assim como a luz e a escuridão. O prazer e a dor. A esperança e a desilusão. E entre os antípodas a manifestação de toda a extensão de nossa existência contraditória. Na realidade nordestina brasileira do século XX: A capital e o interior. O mar e o sertão. O coronel e o sertanejo. O caminho da salvação ou da perdição. Mas, no entanto, o que importa de verdade é a condição do ser humano perante esse fato. Manoel e Rosa devem seguir o beato Sebastião ou o Cangaceiro Corisco? A estrofe de abertura da trilha musical anuncia: “Vou contar uma história na veia da imaginação/ abrandem os seus olhos pra enxergar com atenção/ É coisa de Deus e o Diabo lá nos confins do sertão”. A infinda luta entre o bem e o mal. A permanência dialética do cotidiano humano. A verosimilhança é uma marca da arte de Glauber Rocha.
Sérgio Ricardo recebera os cordéis que Glauber Rocha havia preparado a partir dos textos dos cantadores do sertão. Tinha pouco tempo para produzir as canções e com o agravante de que ainda estava em processo de edição de um de seus filmes. A toque de caixa criou as músicas, sendo algumas improvisadas a espera de uma aprovação de Glauber. Porém, aquele material bastou para que Rocha ficasse satisfeito e maravilhado com os resultados. Era preciso algo realmente tocante, em que a sensibilidade estivesse acima da técnica. Deixando a simplicidade desvelar os sentidos mais profundos ali contidos. Glauber estava atrás de uma música que fosse capaz de explicitar o âmago de nossa brasilidade. E sobre a trilha sonora de Deus e o Diabo, arrematou: “É assim que nossa música no cinema funcionará sempre como a explicação profunda da alma brasileira”.
– A música no Cinema Novo: Quando Deus e o Diabo se Manifestam nas Lentes dos Trópicos
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