Cinema Fora de Cena DVD 2.1 Deluxe – Um investigador sem cordas, pensando o cinema em um artigo que resgata a história do cinema nacional
Primeiramente, eu gostaria de agradecer ao Joaquim por ter me convidado a fazer os seguintes comentários sobre os episódios de “Vivências chave”. Sempre é um desafio escrever, e encarar esse desafio sempre é um prazer quando se trata de escrever sobre algo que se gosta. Outro agradecimento ao Oganpazan por disponibilizar o seu portal enquanto plataforma de lançamento do projeto e destes textos e dos outros volumes. Vida longa ao Cinema fora de cena e a este site pelas iniciativas.
Quando recebi esse convite, passei a pensar sobre um questionamento que me persegue desde quando me envolvi com o cinema e o audiovisual. O que significa hoje fazer cinema? Ao mesmo tempo que temos filmes e diretores brasileiros despontando em festivais internacionais, tanto festivais mais voltados a um cinema dito “artístico” como aqueles que estão construindo uma carreira por uma via mais industrial, as políticas públicas que permitiram o crescimento do cinema nacional e possibilitaram a existência desses filmes hoje estão sendo sufocadas. Há um perigo de se voltar à época de Collor, ao fim da Embrafilme, quando produziu-se cerca de 4 filmes por ano no Brasil. De forma geral, a população brasileira mal sabe que o cinema brasileiro é um dos mais importantes e mais respeitados do mundo.
E, ainda sim, o cinema persiste. Até ano passado houve comoção por um filme que se tornou popular o suficiente para não ser discutido apenas por universitários e pessoas envolvidas com cultura. No campo político dificuldades e confusões se acrescem, e ainda sim a arte vai encontrando brechas para que possa sobreviver de alguma forma. Eu acredito que todo bom cinema tem a cara do seu país, e o fato do Golpe Militar e de o lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol pertencerem ao mesmo ano não é mera coincidência. Naquele momento, já contando com alguns filmes precedentes, o Cinema Novo dava o seu primeiro salto com mais fôlego, com este filme e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, sendo indicados à Palma de Ouro do Festival de Cannes. Os Fuzis, de Ruy Guerra, recebia o Urso de Prata por direção no Festival de Berlim, e o cinema nacional consolidava-se frente ao circuito do cinema internacional e se apresentava enquanto uma subversão dos filmes da Vera Cruz – uma tentativa fracassada em São Paulo de fazer um cinema industrial hollywoodiano -, ecoando as realizações anteriores já um tanto experimentais e regionais do mineiro Humberto Mauro, dialogando com a irrupção da modernidade no cinema europeu – partindo de aproximações com o neorrealismo italiano, e no caso de Glauber, claramente filiando-se a uma corrente construtivista como os soviéticos na década de 20 – e regurgitando todas as contradições históricas que atravessavam o Brasil. Por bem e por mal, o pensamento cinematográfico brasileiro posterior está todo vinculado a este momento específico. Um momento de insurreição no início de uma das épocas mais conturbadas da nossa história recente.
Se, por um lado essa carga histórica é algo que atravessa o nosso cinema, por outro nos últimos 40 anos, e principalmente com o advento do digital em um preço mais acessível, o cinema tem abandonado um discurso da especificidade cinematográfico – pelo qual lutou por anos para estabelecer-se enquanto arte respeitável(1) frente às outras – para começar a pensar outras formas, não só de narrativa e linguagem, como foi o caso a partir dos anos 40 com II Guerra Mundial e mais intensamente a partir dos anos 60 com os novos cinemas em consonância com a Nouvelle Vague francesa, como ele também passa a flertar mais intensamente com outras áreas da arte, a repensar as suas formas de fazer – afastando-se dos seus modelos narrativos e formais – e inclusive as suas formas de exibição – o vídeo é cada vez mais presente em instalações e outros trabalhos de arte. O cinema é uma arte relativamente nova, e parece estar passando por um momento de transição no qual cada aspecto seu tem sido repensado e questionado. Isto cria uma incerteza e uma atitude um tanto quanto rígida dos setores mais conservadores envolvidos com cinema. Constantemente cinéfilos falam mal de acadêmicos, mas mal tem consciência do quão academicizado é o seu comportamento e forma de consumir cinema.
Existem muitos exemplos de casos no qual o cinema – ou o audiovisual, para usar um termo mais guarda-chuva – tem se enveredado por outras vias e se beneficiado disso. Bill Viola é um artista que tem proposto trabalhos muito interessantes a partir do vídeo, e mesmo partindo de dispositivos novos, está mais em contato com uma arte do passado – alguns dos seus trabalhos tem uma forte influência do Renascimento na composição e cor, muitos dos seus temas remetem à espiritualidade e à natureza – do que muitos filmes que seguem à risca um manual de narrativa clássica. Pensar e articular novas possibilidades na linguagem do cinema não é esquecer do que já foi feito, mas antes pensar e medir como, de qual forma é mais coerente retratar e formalizar um interesse. Naomi Kawase, por outro lado, tem pesquisado o cinema praticamente como um diário audiovisual, articulando uma relação entre sua própria vida, a própria presença nos filmes, e um vocabulário cinematográfico que é seu: ela se distancia de modelos altamente veiculados pela indústria, mas ainda sim abre uma porta para um contato direto da sua vida, que pela relação de imagem e som chega em uma sensibilidade das quais estas outras formas não dão conta. E assim o cinema vai se reinventando e permanecendo nesse eterno estado de metamorfose.
Voltando a pensar o caso específico do cinema brasileiro, o nosso cinema foi algo que, a partir do Cinema Novo quando aceita a sua precariedade como ponto de partida estético, foi um cinema de invenção. Todas as limitações de estrutura forçavam-nos necessariamente a encontrar saídas únicas e novas. O cinema não só se voltava para essa condição de precariedade, que por fim era e é a condição da nossa história e governo, como ele estava sendo condicionado por ela, e os nossos melhores filmes souberam compreender isso e proporem experiências fortes a partir das ferramentas que tinham em mãos. Um filme como Copabana Mon Amour parece com um delírio, é uma subida com câmeras enormes de película às favelas, uma performance de mais de uma hora que se dá ao deboche, ao extravasamento, que se constrói com planos sequências longos de ações desvairadas. Fora de um mínimo conhecimento da época, pode parecer pura piração do Sganzerla, mas quando se compreende isso vê-se que o seu cinema é uma aposta formal, sim, mas que também está o tempo todo tentando captar algo de uma situação traumática, de tratar de algo condicionador, pesado, algo que não é possível de ser captado e verbalizado e que precisa recorrer a toda uma outra organização, de ordem mais caótica, para ser capaz de responder à altura a um momento no qual a própria realidade já era muito mais sórdida do que aquela ficção.
Levando em conta essa reconfiguração do cinema pelo seu contato constante com outros meios, e pensando essa certa tradição histórica que continua nos orientando e dando amparo nos momentos mais loucos desse país, o que é fazer cinema hoje no Brasil? É claro que a resposta não é só uma, até porque fazer cinema já não tem mais o seu sentido original e está se tornando cada vez mais diverso e infiltrado em outros campos. Porém, acho que este projeto é uma das maneiras interessantes de se pensar em saídas. Os modelos narrativos tão caros ao cinema não são descartáveis ou foram completamente esgotados e não faltam exemplos que demonstrem isso, mas ao mesmo tempo o audiovisual continua investigando a si mesmo e tensionando os seus limites. É no mínimo revigorante encontrar vídeos que lidem com o rap – possivelmente uma das indústrias mais formatadas da música popular – e que não estão preocupados em serem meras ilustrações de versos ou querem só registrar MCs em suas habituais poses de poder (meras poses, como no fim todo mundo sabe). Ao contrário, os vídeos aqui tentam incorporar certas coisas do rap e do hip hop na sua forma de operar: pensam o sample, a fragmentação, abraçam as modulações no som pra fazer um tipo de registro que não quer se caber em moldes, que busca um contato mais direto com o que se filma, mas que sabe que sempre está mediado por uma câmera, e uma câmera tem limites. É dentro dessas limitações de equipamento, de tempo, de mil corres de quem tá envolvido nesse meio tem que fazer pra sobreviver – lucrar com rap, viver de fato de rap é pra poucos – que as possibilidades criativas vão se articulando. A limitação como um disparador criativo.
Por último, mas não menos importante, acho que devo frisar que pra além dos vídeos individuais, o projeto tem o seu trunfo quando é pensado como um todo. Vivemos em contato com uma indústria que vive cooptando ideias, modos de viver e expressões que na sua intenção nada ou pouco tem a ver com o Capital, mas que passam por um processo de mercadorização e são revendidos em larga escala. Todo artista que lida com uma grande instituição estará sujeito a essas forças e terá que ceder a elas para se inserir. Ao pensar em circuitos alternativos, em outras formas de distribuição e exibição – e isso é tão importante em se pensar no cinema como é no caso da sua linguagem – cria-se a oportunidade de realmente agregar pessoas, vontades e desejos de se construir algo que não esteja simplesmente submetido à indústria. Há uma possibilidade de pesquisa, expressão e conexão que estão para além de uma lógica de views ou de reconhecimento de um público.
Talvez a arte seja uma das formas mais instigantes para se pensar política, justamente porque nos permite uma liberdade a qual de forma geral não temos acesso, e pensar em um circuito alternativo, uma cena que não está pensada com fins mercadorizados, é promover uma forma de política, que aproxima públicos, profissionais e pessoas. Isso sem pretensões de vanguardismo – a ideia de vanguarda pressupõe estar a frente de algo, e estar a frente pressupõe que a arte é linear, quando ela é torta, transversal e sempre sujeita a se alimentar do passado para se projetar no futuro. A vanguarda queria destruir coisas e ela tinha bons motivos pra isso – muitas certezas estavam sendo questionadas e ela tinha uma tradição e instituição repressora por trás. Hoje vivemos em inconstante incerteza, e talvez seja mais interessante pensar em estar junto e em construir do que abandonar. O presente é plural e quer ser mais, e é só com uma rede de contatos e de trocas que talvez isso seja possível. As formas clássicas e modernas do cinema abrem-se para um leque de possibilidades infinitas.
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-Cinema Fora de Cena DVD 2.1 Deluxe – Um investigador sem cordas
Por Eduardo Camargo
Conheça a trilha sonora do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)
Conheça também a trilha sonora do filme Copacana Mon Amour:
Notas de rodapé
1.Cabe lembrar que apesar dos discursos mais pedantes e elitistas serem hoje associados com a imagem do cinéfilo, o cinema nasce quase como um truque, como algo muito análogo ao circo e ao vaudeville. No início os filmes eram desprovidos de estrutura narrativa e registravam breves acontecimentos, buscam coisas espetaculares como animais, outros países ou homens musculosos levantando peso, e até em alguns casos pornografia. Os nickelodeons (cinemas que custavam cinco centavos, por iss o nome) eram essencialmente um entretenimento de operários.