Charlie Parker teve sua vida contada em Bird do diretor e ator Clint Eastwood, declaradamente amante deste gênero musical. Lester Young teve sua vida em Paris contada no comovente Por Volta da Meia Noite, filme em que foi interpretado por outro grande sax tenorista, Dexter Gordon. Isso para ficarmos em dois exemplos já consagrados. Documentários sobre a vida dos gênios do jazz pululam na internet, mas aqui indico a vocês a história contada por seu protagonista.
Recentemente tivemos a oportunidade de vivenciar a discussão se as biografias sobre músicos brasileiros deveriam ser inspecionadas pelos biografados, interferindo diretamente no trabalho do biógrafo. Esse “cuidado” revela o medo desses músicos em revelar determinados fatos de suas vidas, preocupados com possíveis “manchas” nas imagens impecáveis construídas ao longo da carreira. Não é o caso de Saindo da Sarjeta. Mingus vai fundo na própria história, expondo seus medos, complexos, personalidades e fatos pouco gloriosos de uma vida conturbada e cheia de altos e baixos. No caso de Mingus todas as searas de sua vida estão diretamente ligadas à sua música e ao seu método de criação.
Saindo da Sarjeta é muito mais do que uma coleção de relatos extravagantes para impactar, chocar, fazer rir e compartilhar em rodas de conversas a fim de mostrar o quão alucinado era Charles Mingus. Sua autobiografia revela a ligação íntima entre a vida e a música de Mingus. Não bastasse ser este o registro emocionante e valoroso da sua história pessoal e do próprio jazz a partir da segunda metade dos anos 40, Saindo da Sarjeta revela o talento do baixista, para além do modo como manipulava os sons. O texto é rico em estilo literário, conceitos e metáforas, se mostrando sedutor e de leitura aprazível.
O primeiro capítulo reúne todos os elementos a serem desdobrados ao longo do livro. A leitura pega o leitor de assalto convidando-o a acompanhar o ritmo alucinado e conturbado da vida do músico, tanto no aspecto físico quanto mental. Os conflitos existenciais foram vivenciados i
Desde a infância foi assombrado pelo fantasma do racismo, começando dentro de casa quando o pai dizia que os membros de sua família não eram negros por terem a pele “mais clara”. Isso causou traumas profundos dos quais Mingus jamais se livrou. Entrando, na pré-adolescência experimentava os efeitos dessa educação recebida no lar pelo pai. Quando saia nas ruas sofria o racismo como os negros e isso o deixava confuso na medida que aprendeu em casa não ser negro. Os erros da educação familiar eram sempre corrigidos pela educação do mundo.
A perseguição desde a infância do homem branco levou à militância contra o racismo e à conscientização sobre a causa civil dos negros nos EUA. Contudo, Mingus possuía uma personalidade esquizofrênica, em algum grau pelo menos. No primeiro parágrafo do livro ele diz ao psicólogo possuir dentro de si três Mingus. Essa percepção de si dá um sabor especial à narrativa do livro. Para entendermos melhor esse ponto temos que conhecer os três Mingus. Transcrevo o primeiro parágrafo do livro, primeiro momento do diálogo entre Mingus e o psicólogo.
A distinção dessas três personalidades convivendo juntas na psique de Mingus mostra a compreensão que tem de si próprio e estabelece o modo como a narrativa será construída. Isso porque é o primeiro Mingus quem conta a história, relatando os acontecimentos envolvendo os outros dois. O primeiro Mingus se caracteriza pelo autocontrole, capacidade de analise e tomar decisões conscientes, planejadas, além de ter força e frieza suficientes para amparar os outros dois em seus momentos de descontrole, dor e frustração. Momentos em que esses sentimentos se manifestam são constante. O terceiro Mingus é o protagonista, o segundo o ator coadjuvante.
Faz parte da índole do baixista idealizar as relações humanas, seja no âmbito pessoal ou profissional. Há sempre a presença de ações despretensiosas buscando melhorar a condição do negro na sociedade, de fazer da música um fim em si mesmo, de idealizar a figura feminina, de constituir laços de família sólidos e harmônico, constituindo uma visão extremamente romântica da vida.
Mas tudo isso se desfaz quando “os outros”, em suas decisões e ações, frustram as expectativas em torno das idealizações criadas pelo terceiro Mingus. A questão se mostra mais profunda pelo fato dessas idealizações conduzirem as ações de Mingus. Isso traz à tona toda a ingenuidade dessa personalidade desarmada que se entrega despida às determinações de sua alma. Temos a configuração perfeita de alguém que se torna alvo fácil dos predadores da “selva” de asfalto e concreto. Nesse momento explode o segundo Mingus, destruidor, selvagem, capaz das maiores barbáries contra si e aqueles que o machucaram, seja seu empresário, amigo ou a mulher que ama.
Quando o segundo Mingus sacia sua sede de destruição, o terceiro surge e se deprime, se arrepende, afogando-se na própria dor, levando-o a ultrapassar os limites da sanidade. Nesse vai e vem de personalidades que governam a vida de Mingus, somos colocados diante de seu corpo jogado na sarjeta de forma literal. Entre essa briga de personalidades vemos o Mingus sedento por sexo, o gigolô, o junk, o que odeia os brancos com seus valores e seu mundo, o gênio musical, o louco, o criminoso, o que não encontra lugar no mundo, o irresponsável e enfim o Mingus que encontra a redenção!?
Não sei se isso realmente acontece, embora ele a busque constantemente. Neste sentido vou até além, confessando que terminei o livro e não posso dizer se Charles Mingus realmente conseguiu sair da sarjeta. O que sei é que trata-se de um dos grandes gênios do século XX.
Editora: Jorge Zahar Editor – Rio de Janeiro
Ano de publicação: 2005
Gênero: Autobiografia
Tradução: Roberto Muggiati
Título Original: Beneath the Underdog
Tradução autorizada da primeira edição norte americana, publicada em 1971 por Pantheon Books, uma divisão da Random House, de Nova York, Estados Unidos