André Mourão problematiza os impactos dos avanços tecnológicos em nossa relação com o mundo que nos cerca em Câmera Analógica.
Quando lançou, em 1984, o seu Neuromancer, William Gibson vislumbrou os rumos que a humanidade tomava a partir dos enlaces entre esta e os aparatos tecnológicos que desenvolvia. Anteviu um mundo onde homem e o aparato tecnológico por ele criado se integravam ao ponto de se criar uma outra realidade na qual o ser humano acessava a partir de cabos que viabilizavam esta conexão.
O conceito de matrix, popularizado pelo filme das, agora, irmãs Wachowski, estava na história de Gibson, que concebeu uma humanidade vivendo cada vez mais conectada a essa matrix, uma concepção do que viria a ser a internet e o modo de vida humano a partir do seu desenvolvimento.
Vivemos cada vez mais imersos no mundo virtual, o que vem mudando nossa percepção do que seja realidade, ao ponto do ambiente virtual e do ambiente físico terem o mesmo peso quanto ao que consideramos real. O que fazemos no mundo virtual pode ser reflexo da nossa vida material, assim como esta pode ser reflexo da nossa vida virtual. Está cada vez mais difícil identificar as fronteiras entre estes territórios … em muitos casos podemos até mesmo especular se ainda há tal demarcação.
Gibson e as irmãs Wachowski foram certeirxs em sua representação da humanidade integrada à matrix. E muito embora a ficção represente o futuro constituído de avanços tecnológicos irrealizáveis no período representado ( vide De Volta Para o Futuro que previu um 2015 no qual as pessoas se locomovem através de carros voadores), há algo no qual a realidade supera a ficção no que diz respeito a sofisticação tecnológica.
Somos transportados para o interior da matrix sem a necessidade de cabos, um resquício da era analógica. Acessamos a realidade virtual digitalmente, através de toques nas telas de nossos smarthphones. Vivemos a era digita e nos afastamos cada vez mais do analógico. Aqui chegamos ao ponto onde podemos nos questionar quais os efeitos dessa assimilação voraz da realidade pela tecnologia digital e quais os impactos disso sobre as relações do ser humano consigo e com o mundo que o circunda.
Assim como podemos pensar se um culto ao período analógico seria uma solução à questão colocada. Essas reflexões vieram à mente enquanto ouvia Câmera Analógica, primeiro álbum de André Mourão, lançado na última sexta feira, dia 18 de junho.
Isso ocorre não apenas pela imagem evocada pelo nome do álbum, mas pela temática que perpassa o setlist que o compõe. Trata-se de abordar as tensões entre o virtual e o real, a partir do dualismo analógico x digital.
A primeira faixa Anos 80 aborda a desumanização através da tecnologia, a condução do ser humano aos limites da existência na busca pelo aperfeiçoamento técnico. A tecnologia da década de oitenta ainda nos coloca diante de um mundo concreto. Filmes como Blade Runner, De Volta Para o Futuro, Exterminador do Futuro, dentre outros, ainda nos mantem diante de um mundo tangível.
Esse contexto de previsões futurísticas diatópicas é abordado por André na letra da música, que aponta para questões ligadas ao processo de fundição entre ser humano e tecnologia. Fazendo uso de uma levada groovesca, que se relaciona com a levada eletrônica, criando uma atmosfera tecnológica.
Em Câmera Analógica, faixa 3, que dá nome ao álbum, apresenta a ideia central ao redor da qual o conceito do álbum se constrói. A saturação do virtual nos afasta cada vez mais da materialidade da vida, das sensações captadas por nossos sentidos e que nos fazem sentir o mundo que nos cerca. Perde-se a dimensão do toque, a sensibilidade por ele provocada.
Essa metáfora se apresenta através das situações que giram em torno das interações do casal, geradas pelo manuseio da câmara analógica. Daí somos despertados do sono dogmático do digital e somos transportados para a vivência sensível.
Olho no Olho, marchinha que nos convida a tirar a cara da tela do smartphone e curtir a folia pelas ruas da cidade em festa, reforça a crítica à imersão virtual. Esta música foi vencedora do 35o Festival de Marchinhas de São Luiz do Paraitinga, edição de 2020. Preparando-nos para o lançamento do álbum, foi lançado o videoclipe de Olho no Olho, que você pode conferir clicando aqui.
Na medida que vamos avançando na audição do setlist que compõem o álbum, damo-nos conta de estarmos num ambiente formado de uma grande diversidade sonora. Trata-se do ponto forte de Câmera Analógica, a heterogeneidade sonora, o fato de não se poder defini-lo sonoramente dentro de um único gênero musical.
Nesse sentido quero destacar a faixa Da Nascente à Foz, música que traz um clima futurista por investir em efeitos pontuais ao longo da sua composição sonora. Há uma camada de som criada pelo teclado responsável por uma sensação onírica ao fundo, aclimatando o transcorrer em primeiro plano da melodia cantada.
Entra a contribuição singular da cantora Suzana Salles, que fez parte do movimento cultural Vanguarda Paulista, fazendo parte da banda Isca de Polícia, que acompanhava o compositor Itamar Assumpção. Contribuição que não se restringe à interpretação da música, mas pelo acréscimo de elementos composicionais que deram à música o caráter interventivo através das partes “ruidosas” onde há quebra dos fluxo principal da música.
Os músicos que participaram como banda base da gravação de Câmara Analógica a cantora Bárbara Eugênia, o tecladista Dustan Gallas (Cidadão Instigado) e o baterista Bruno Buarque (Criolo, Karina Buhr, Céu). Câmera Analógica conta também com a participação de Gustavo Galo (Trupe Chá de Boldo) na faixa Roque e tem produção assinada por Felipe Botelho (Trupe Chá de Boldo e diretor musical do Teatro Oficina).
FICHA TÉCNICA DO DISCO
Produção – Felipe Botelho
Coprodução – André Mourão
Mixagem – Renato Medeiros
Masterização – Oswaldo Martins
Engenharia de som – Fernando Narcizo, Bruno Buarque, Felipe Botelho, Remi Chatain
Gravado entre Outubro de 2018 e Outubro de 2019 no Estúdio Minduca e nos estúdios da Estúdios Sim Escola de Música
Sopros gravados no Estúdio Guevara por Remi Chatain