Brisa Flow – Selvagem Como o Vento (2018) Um disco subestimado, uma artista subestimada, a mc BrisaFlow é uma das melhores da cena atual!!!!
O lançamento de Selvagem Como o Vento (2018) no início de dezembro passado foi recebido por nós com bastante alegria, por diversos motivos, e um deles foi fortalecer a certeza que já carregávamos conosco: Brisa Flow se reafirma como um dos maiores nomes da cena brasileira de rap. E quando falamos da cena atual, a colocamos aqui, no rol de artistas do hip hop que possuem dois discos lançados. Talvez seja um critério doido, mas não sem objetividade.
Em termos de arte, o que conta são as obras, e em meio a diversos possiveis, utilizamos o critério disco como um distintivo de algo que permanece e projeta, apesar das invibilizações e jogos de cena. Djonga, BK, Baco Exu do Blues, assim como Flora Matos e Tássia Reis, possuem dois discos cada, mas incrivelmente as mulheres não são colocadas nesse seleto rol, dos melhores de uma geração, ou pra usar o termo da moda, não são colocadas no “hype”. Produzem com dificuldades infinitamente superiores, entregam materiais no mesmo ou em nível superior aos homi, e mesmo assim, estão ali, devidamente colocadas no seu lugar: Rap Feminino.
Dito isso, o outro fato importante é notar que dois anos após o excelente disco de estréia Newen (2016) Brisa Flow mais uma vez apresenta uma obra de arte que eleva o nível, do conjunto da produção na cena. É bom lembrar que antes do seu segundo disco, ela soltou em parceria com B.Art, uma Lo-W Tape(2018), finissima.
Em Selvagem Como o Vento (2018) Brisa Flow segue lapidando com esmero e muita força uma qualidade que lhe é peculiar: a capacidade de dizer coisas fortes de modo leve. O seu timbre vocal de apelo doce, possui a força de poeticamente nos alertar para questões que são de vida ou morte. E nesse último pacote de canções ela realçou essa qualidade a enésima potência.
Os beats tiveram construções entre o eletrônico e o analógico, mas o fato é que a organicidade do álbum ultrapassa essas categorias, pois o cuidado com o qual o disco foi preparado e sua qualidade, deixa esses detalhes técnicos para trás. E é exatamente a palavra cuidado e a palavra atenção, as que melhor definem para nós o que esse disco possui de tão importante, para esse momento, mas também para as novas gerações que um dia farão contato com ele.
O release que recebemos elege os temas: movimento e resistência, como os principais sobre os quais o disco seria a expressão. De nossa parte, entendemos dando um passo atrás, que é o cuidado de si e do outro, assim como a atenção ao momento e a tradição, o que possibilita a construção dessa ideia de movimento e a resistência necessária para vivermos sempre em busca da felicidade e do bem comum.
É a atenção ao contexto social, histórico e político o motor que faz a artista nos chamar a atenção para o fato de que apenas nos mantendo em movimento poderemos resistir aos tempos sombrios que nos assalta. A ideia de que precisamos fazer o baile seguir resistindo juntos, permanecendo e ficando vivos, é uma expressão do próprio cuidado de si, que entende a alteridade como elemento constitutivo de si mesma. Cuidado de si que é capaz de reconhecer através de uma necessária auto exegese, que o desejo pode e deve assumir outras expressões de modo a não reconhecer os padrões normativos. Dito de outro modo, as expressões da sexualidade, mas não só, o desejo em suas diversas expressões, é sempre político.
Mas também no diálogo com outras linguagens constitutivas do rap como a música eletrônica em faixas como Fumaça e Liquidez, parceria sua com 1Lum3 e beat do Gustavo Lessa, DevidaMente Controlada e na faixa título: Selvagem como o vento. as duas produzidas por Jonera. Aquela boa e velha malandragem se faz presente, com a sagacidade, malemolência e a busca por algo verdadeiro, na produção de Amargo na faixa Zona de Segurança. Onde aquela relação de alteridade acima mencionada, encontra um excelente exemplo aqui, juntamente com a noção de cuidado de si.
Sua identidade ameríndia se faz presente logo na faixa de abertura, Violeta Se Fue, onde de algum modo a rapper emula a herança do seu Chile pré ditadura, ao se referir a grande Violeta Parra. Ao mesmo tempo em que diagnostica o momento e a si mesma, com a mesma força/suavidade que busca o outro e a instauração de outros mundos possiveis, mesmo restritos a um quarto. Amor e amizade como célula revolucionária, aliança e cuidado com o outro que se prolonga na faixa seguinte, Fique Viva outra produção de Amargo.
Todos esses movimentos denotam o disco como portador do vento como uma força da natureza, assim como as músicas presentes se tornam uma espécie de pneuma (sopro divino em latim) político e ético. Algo que precisamos respirar fortemente nesses tempos, da mesma forma que precisamos desse devir-vento, para não nos aprisionarmos em doenças, ou padrões, no medo da repressão, que de hora em diante se fará mais forte do nunca em nosso país. Brisa Flow cavalga em sua vassoura de bruxa esse vento ético/político e musical/poético, para nos trazer: cuidado, atenção, movimento e resistência.
O disco finaliza com sons de chuva e trovão, no entanto, a doçura, a atenção e o cuidado que Brisa Flow nos dispensa ao longo de todo o álbum, nos tranquiliza, pelo menos durante a audição. E terminamos a obra com aquela sensação de que findada a tempestade, o sol nascerá de novo, não importa quanto tempo dure, nós resistiremos e podemos contar com ela.
Escute Selvagem Como o Vento (2018), e veja como um dos maiores nomes de sua geração permanece sem ser reconhecida, mas não desiste de nos entregar sempre o melhor que sua música tem a nos oferecer.