Brisa Flow iluminando nossos pensamentos: Hip-Hop e contracultura em Janequeo (2022)

Brisa Flow lança o seu terceiro disco com uma aula magistral para nos lembrar que o Hip-Hop é contracultura: Janequeo (2022)

Brisa Flow
Foto por Camila Sánchez
Artista Bonikta

 

Grandes líderes são importantes, porém formar um povo é necessário. Valorizar artistas e pensadores como Brisa Flow perpassa necessariamente por um exercício de visualizar a cultura Hip-Hop como aquilo que ela é: contracultura. Sua absorção pela indústria capitalista e a reprodução de seus ideais de verticalização e transformação das suas expressões em meros produtos, tende cada vez mais ao esvaziamento de sua força revolucionária. 

Há no trabalho da artista mineira Brisa Flow um movimento que conjuga a vida e a arte, como acontece entre os grandes, feito através de um aprofundamento da experiência de sua construção identitária e de um pensamento diferencial! Um movimento límpido e de fácil apreensão das forças que ela conjuga em núpcias nos ofertando música como um devir que se bem captado nos redimensiona em nossa própria experiência de mundo.

Em seu trabalho mais recente, Janequeo (2022) a MC e musicista oferta um trabalho que desde já concorre para se colocar como um dos mais importantes na história do rap nacional. Estamos em um período histórico mundial decisivo onde mais uma vez o fascismo se mostra em toda a sua sede de poder. Uma tradição que se iniciou ainda no período das cruzadas, se tornou colonialismo, neocolonialismo, emergiu na sua terra mãe como Nazismo, encontra novamente atores que investem aí o seu desejo. 

Todos os ideais colonizantes de aniquilação da diferença, do desejo de submeter e explorar até a morte povos não europeus, ressurge em um século XXI conjugado com uma nova era do planeta Terra, o Antropoceno. O controle de populações inteiras através das redes sociais e de suas bombas de fragmentação cognitiva, o extermínio cotidiano da população negra e indígena em nosso país, a destruição de biomas fundamentais para a vida humana. É nesse caos, que Janequeo (2022) se coloca como um ponto fora da curva. 

Tendemos por diversos motivos a “consumir” obras de arte como mera diversão, ou o que dá quase no mesmo, objetos de adoração e projeção de nossa subjetividade, com todas as doenças que ela carrega. A experiência estética que nos deveria impulsionar para além daquilo que nos é mais comum, muitas vezes é subjulgada por necessidades vis. Como uma expressão do duplipensar reafirmamos tudo aquilo a que pretensamente somos contra: capitalismo, desigualdade, marginalização e empobrecimento da vida, aniquilação da diferença, preconceitos, etc.  

O deus mercado faz muitos e muitas aplaudirem práticas que estão na origem de tudo aquilo contra o qual se voltou e vem construíndo o pensamento insurgente contracultural, negro e latino do Hip-Hop. Essas contradições comuns se travestem de valorização, de apoio, de luta coletiva quando na verdade são apenas reificações. Há uma pretensa necessidade de valorizar os artistas coisificando-os e colocando-os em estantes, em rankings, através de pseudo critérios estéticos tomados como verdade. Quando nada mais são do que recortes aleatórios e pouco criteriosos, pois derivam na maior parte das vezes do não conhecimento do grosso da produção e ou apenas do gosto pessoal. 

Brisa Flow
Foto por Camila Sánchez

O caminho do meio entre os problemas que enfrentamos enquanto humanidade e o fetiche da mercadoria dentro da cultura hip-hop recebe um brilhante exemplar com Janequeo (2022). São muitas as direções nas quais Brisa Flow nos arremessa, seja como expressão de um pensamento realmente insurgente que não apela a clichês, seja na sua própria forma de confecção. Não há nomes incensados pelos criadores do hype no terceiro disco da MC, o que de saída nos mostra como a independência se expressa na construção do trabalho na forma das parcerias construídas e como isso se reflete na intenção estética e política. 

A pluralidade de ritmos com os quais o disco é construído coaduna perfeitamente com a intenção de buscar refletir a riqueza do pensamento indígena em Abya Yala. A atualização poética de sua ancestralidade que Brisa Flow nos apresenta como poesia e música, abre-nos na direção de re-conhecer o que nos é mais próprio ao mesmo tempo em que nos coloca na posição de entender a necessidade de uma etno diversidade dentro da cultura Hip-Hop nacional. 

Enquanto país colonizado por Portugal e depois subalternizados pelas culturas francesas e estadunidenses por parte da classe dominante, somos sempre tentados a pensar – quando já não o fazemos espontaneamente – sob formas etnocêntricas brancas, independente da melanina. Produzimos em termos intelectuais a avaliação de nossa cultura sob pressupostos ora europeus, ora estadunidenses, como se fossemos meros reflexos. O amor cantando por Brisa Flow nos impulsiona para o rompimento destes padrões, patriarcais, cognitivos, epistemológicos, heteronormativos, acadêmicos europeus, rumo ao reconhecimento do que nos é mais próximo. 

Ao nomear o seu disco com o nome da guerreira mapuche Janequeo, Brisa Flow termina por empreender a mesma força de contra efetuação popular, através de um produto estético. A questão que se coloca é: quem é capaz de comprar em sua integridade e singularidade esse disco, encarnando-o? Pois, não é possível ouvir faixas como “Bonde das Maloks” sem amar realmente artistas como Sodomita e Monna Brutal e tudo que elas são. Estamos aqui, certamente muito além de representatividade, o rolê aqui é de devires, de tornar-se outro, de reconstruir a nossa própria humanidade para além do humano. 

Passeando por sonoridades como o drill, R&B, trap, reggaeton, boombap e house, é bonito ver como o ritmo e a poesia de Brisa Flow flui sempre além de modismos, amarrando tudo de modo coeso como um rizoma estético. Sucessor dos não menos importantes Selvagem como o Vento (2018) e Newen (2016), Janequeo (2022) junta-se a discografia de uma artista que vem construindo uma cartografia [unica dentro do rap nacional. Produzindo na marra, construindo alianças com outres artistas e formas de produção, que ainda trazem duas pequenas pérolas que deviam ser mais ouvidas: os EP’s Free Abya Yala (2020) onde experimentou com o jazz orgânico e um EP junto a B.art Lo-W Tape (2018). 

Foto por Camila Sánchez

A observação atenta desses trabalhos acima citados, nos mostra o real significado de contracultura dentro do Hip-Hop, ao mesmo tempo que nos revela expressões da menina, “una caminante” de origem Chilena, revelada ao mundo em Sabará – MG. Que segue hoje caminhando em direção ao passado, construindo assim uma possibilidade de futuro, outra. Brisa não canta em castellano para alcançar o mercado internacional, apesar de ter legitimidade suficiente para isso, mas para se aliar a outres parentes como a Abi Llanque. Em ritmo marrons, resistência que a leva a junto com Ian Wapichana a denunciar e firmar a luta contra o “Etnocídio” e ainda assim a entoar uma linda homenagem àquela riqueza supramencionada em “Originária”. 

Os produtores presentes no disco: Alvin, Suntzil, Drôga, Tidus, Gustavo Lessa, Vinicreize, Victor Prado, Marco Caramellis, são os responsáveis por um disco que segue ao longo de 13 faixas como uma experiência estética singular de tecnodiversidade dentro do hip-hop. Pois as sonoridades aqui são veículos de pensamento poético que embebido em uma busca da sabedoria e de uma filosofia originárias dos povos de Abya Ayla, se faz como um outro empreendimento artístico. A uma potência Janequeo que nos leva a pensar na miséria de um mercado que toma batidas como mera repetição, e Brisa Flow a encarna para nos mostrar o quanto é possível extrair diferença neste processo. 

Qual será o critério capaz de medir o gradiente de beleza contida em músicas como “Camburi e Dentro dos seus Olhos”? Nas duas faixas, como em diversas outras, um outro pensamento, um outro amor nos inspira a seguir buscando outras formas de nos relacionarmos com o outro, bicho, pedra ou gente. É uma das potências Janequeo, a de atualizar o amor como real força revolucionária, e dentro desta perspectiva não transformar o rap em uma monocultura, pois aqui no Brasil ele certamente não é. 

É curioso, mas muitas vezes percebemos um ethos do agronegócio presente na crítica e na produção intelectual que se volta ao rap, quando em um país de dimensões continentais não cessamos de perceber a diversidade de expressões. Há quem queria tratar o rap como soja transgênica, quando ele é grama, rio, abacaxi e cebola. Aqui mais uma vez Brisa Flow nos ensina a perceber a força ancestral que deveria nos relegar a um outro entendimento da natureza. É neste sentido, por fim, que percebemos o trabalho presente em Janequeo (2022) como algo tão importante quanto o perspectivismo ameríndio do Viveiro de Castro, como as produções intelectuais de pensadores fundamentais como Ailton Krenak. 

Em sua forma poético musical, Brisa Flow nos oferta um convite a re-pensar o mundo, pelas lentes da contracultura do Hip-Hop, a MC reencanta um mundo que está aí, sempre sendo embotado por uma visão de mundo e por políticas coloniais. Obrigado!   

-Brisa Flow iluminando nossos pensamentos: Hip-Hop e contracultura em Janequeo (2022)

Por Danilo Cruz 

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